Digressão de olhos negros

Sobre as inconstâncias:

um mote de fel.

Sobre a aridez das túnicas roxas:

um adro de verdades ilusórias.

Dialética no ser,

perscrutar estrelas na superfície do chão;

o infinito brota macio no nada

e o nada que macio, além de infinito,

pulveriza a semente filosófica.

Pele arrancada do corpo do Filho do Homem

e a divina centelha do cérebro

nas rugas das árvores,

no grito festivo da cigarra.

Ao reflexo de gota da lágrima:

reflexão à surdina.

Minhas mãos colheram

a existência tênue da lasciva inútil.

Estágio estético,

estágio ético,

estágio místico (etiquetas de Kierkegaard).

Mescla disforme, aberração.

Berro contra o enigma da digressão de olhos negros.

A película do lago ao crepúsculo

expulsa o ministério do amor e da quase morte à sina.

Para dentro, um mergulho

na água repleta de sal

que faz saltar e não sucumbir ao fundo

a questão?

À tona, ao superficial, ao supranatural.

Na hora fecunda, moscas impertinentes gravitam

gravemente, platonicamente desmancham-se,

demandam-se para outras glebas,

alucinações, equações matemáticas, matérias no prisma

da luz da catedral metafísica.

Vitrais amenos, raivosas dores.

Na verdade, enquanto eu de cócoras,

à beira do abismo, previno o surto,

golfinhos gozam-se na linha do mar bravio.

As rochas rugem na espuma do sêmen.

A gravidade, elíptica, comanda a maré

e assim, fogueiras eternas

lamberão os hereges

numa praça central da criação.

Impunes para não aprenderem

que o homem não pode

saber que aprender pode

apreender uma sapiência

ainda, a saber, se aprende mais,

e mais,

e mais,

e mar,

e mar,

e céu,

e céu,

e fogo, e sangue, e olhos

negros, negros, negros.

Profundos, febris,

beirando a necrose vital,

beirando a lucidez etílica do louco,

ao alfabeto climático do animal,

a pureza terrível da rosa decepada.

Do instante anterior à agonia

da mãe que rebenta o filho

e adormece na liquidez de seu suor,

de seu leite inaugural

e ao cálcio consumido pela terra,

que refaz a ruga da árvore,

que modela a folha,

que reproduz a sombra

e cobre de incógnitas

o despertar do futuro:

piedade e cólera.

Ontem, sonhei nitidamente

que acordava hoje

e esta lembrança

reconfortou minhas pálpebras,

reconfortou meu desespero,

reconfortou minha história,

reconfortou meu cansaço,

reconfortou minha sede,

reconfortou minha esperança.

Estou vivo,

pertenço ao mistério.

Já posso me levantar

e dizer enfim,

quem sou eu?