pobre história

em 1789

quando eclodiu a grande revolução

a égalité trouxe abraços apertados entre negros e brancos

a fraternité quebrou algemas e distribuiu sopão aos pobres

e a liberté abriu longas asas sobre a guilhotina

iguais e fraternos homens livres

com cabeças separadas de seus corpos

não pensam

não regurgitam salmos

não gritam impropérios

e não precisam de penachos

que lhes enfeitem os chapéus

em 1789

o grande grito de direitos humanos

pisou no solo de sangue seu pasodoble

em procissões de deuses destronados

rei que era rei virou piada coroada

a morte bateu à porta do palácio

depois desceu a ladeira da miséria

escorregou nos portões da bastilha

fincou sua bota bem no centro

bem no centro daquela ilha

o poeta escondeu-se na latrina

o pintor enfiou-se embaixo da saia da prostituta

o músico soprou sua flauta para a ginga da bailarina

e como se fossem nascidos todos do pé da mesma fruta

suas cabeças rolaram juntas no cesto da guilhotina

isso tudo aconteceu em 1789

e agora que estamos em 2019

(poderia ser qualquer ano terminado entre zero e nove)

a república assumiu-se coisa pública

e gorda e feia e cheia de celulite

roda bolsinha em wall street

pede com a boca quase sem dente

que algum árabe ou presidente

durma com ela num hotel de luxo

na mais rica e bela suíte

a égalité foi vista pedindo esmola

na entrada da golden gate

mas também na porta de uma escola

e até mesmo numa praça de tóquio ou do rio de janeiro

ubíqua como ela só com seu dengo e seu doce cheiro

anda por todos os lugares e já foi vista na guerra

entre tribos africanas e sim por aí ela dança e erra

chutada das igrejas e dos palácios de presidentes

já a outrora poderosa fraternité

vende rosários bentos aos turistas sorridentes

que frequentam todos os domingos as homilias papais

não se importa com seus trapos e farrapos

nem de ter por cama a folha de alguns jornais

diz ao repórter que a entrevista

que é feliz assim pobre e sem perspectiva

fecha-se portanto o grande ciclo

daqueles gritos de 1789

mas antes que algum raro leitor me cobre

e para que eu possa em paz ir embora

vou terminar essa triste história ao dizer

que a senhora dona liberté

não tem sido vista nem de noite nem à aurora

há muito esquecida como um velho bilboquê

e assim se encerra e se acaba o conto da revolução

com uma rima tão pobre e sem perdão

como foi lá em 1789 no grito a sua eclosão

9.6.2019