DOIS DIAS
Depois dos dias vazios
da hora marcada
do corre-corre
do aperto no ônibus
do cochilo no metrô
do estresse no trânsito
do olhar vigilante do chefe
das ações sem sentido
que executo nesse tempo
É quando existo de verdade
quando sinto meu respirar
quando sorrio sem obrigação
quando digo o que penso
quando choro se a raiva me toca
quando durmo pelo dormir
quando acordo para mim
E procuro me encontrar
me enxergar
me escutar
me aventurar
me arrepender
me cuidar
Mas só depois dos dias vazios
os cinco nos quais eu vegeto
como drone hominizado
como cão robotizado
nos quais não há sonhos nem possibilidades
só ordens a cumprir
metas a bater
concorrentes a superar
coisas para vender
Quando passam esses dias
é que reparo nas cores do mar
no frescor da manhã
no aconchego da noite
na paisagem da cidade
no cheiro das flores
nas asas das borboletas
no lamento de quem sofre
no sorriso de quem vence
na pessoa que dorme comigo
no sol que entra pela janela
no olhar pidão de meu filho
nas rugas que saem
nos anos que não voltam
Só aí é que estranho o cotidiano
e as coisas mais banais de meus dias
Só aí preencho meu tempo de cor
de sentido e melodia
de formas e de calor
É quando vivo e sei que vivo
sinto meu ser e sei o que sinto
Depois dos dias vazios
O resto é domínio do relógio
do estômago e do dever
do tempo alugado
dos sonhos vendidos
da vida enfadonha
dos desejos perdidos
Existo dois dias por semana
Depois dos dias vazios.