Filhos e temores...
“Alguém me reconhece num retrato de menino. Não sou eu: é minha antiga paz.” (Roberval Pereyr)
Não podia mesmo ficar lhe presenteando com bonecas.
Falsas bonecas feitas em fábricas! Melhor fosse ter lhe
dado um poema especial, surgido do âmago deste ser!
Eu, que pra você, mesmo que estivesse maltrapilho e
imundo, sempre aos seus olhos fui um rei admirável...
Não podia mesmo ficar lhe presenteando com bonecas.
Você era esperta demais para ganhar presentes fúteis.
Sempre foi à frente do seu tempo, sempre viva e fina!
Eu, que mesmo fora dos padrões fui sempre o pai mais
lindo da terra, o mais inteligente e perfeito. O modelo...
Agora tenho tido muitas noites cheias de nada! É que
pelas minhas veias correm saudades diluídas e rubras,
fazendo-me em pedaços... Tenho vivido muitas noites
plenas de vazio. É que você cresceu e tem me fugido
pelos vãos dos dedos, minha menina tornou-se grande...
Tenho tido muitas noites apinhadas de nada, busco no
vácuo o bebê que corria pela casa, que enchia de alegria
todos os momentos de ócio, quem me conhece jura que
não choro nunca, pobres diabos iludidos pela face rude
que carrego. Choro de saudade de um tempo que se foi...
Não podia mesmo ficar lhe presenteando com bonecas.
Uma não ia jamais entender a outra. A vida que corria
nos seus olhos não se daria com a face fria da boneca.
Seu brinquedo colorido certamente perderia o brilho,
ficaria jogado pelo chão da casa, perdido num canto...
Não podia mesmo ficar lhe presenteando com bonecas.
Vai que por um momento você se distraísse e deixasse
de olhar para mim com aqueles olhos felizes. Aí seria
eu que arrasaria o brinquedo, com medo de perder um
segundo da sua existência, muitos me chamariam tolo...
Não podia mesmo ficar lhe presenteando com bonecas.
É que nunca tive tempo para frivolidades e tentei fazer
de você uma dama de verdade, desde cedo. Não percebi
que era uma criança e teria que viver como tal. Cresceu
depressa demais; mas, será sempre a vida do meu corpo...
Não podia mesmo ficar lhe presenteando com bonecas.
Meu amor era grande para gastar com brindes práticos.
Queria apenas vê-la passeando pelos caminhos da casa,
sem se apegar a um brinquedo; perda de tempo e vida
olhando olhos que não brilham, olhos que se desbotam...
Não podia mesmo ficar lhe presenteando com bonecas...
Eu é que queria sempre ser o alvo dos seus cuidados e
mimos, o centro da sua atenção por toda a eternidade!