Uma canção de amor para Salomé
Uma canção de amor para Salomé
Na madrugada insone, a me revirar inquieto, um pássaro veio cantar pra mim, a compartilhar solidariamente o seu pesado fardo de desconforto
O vento, raivoso e ironico, me traz uma banda desafinada, na qual um cantor roufenho grasna estridentes frases de um linguajar importado de outro planeta
Solicito, pressurosamente, asilo político nos versos de meu poeta de cabeceira; construo uma blindagem a rever mentalmente os momentos inefáveis de amores vividos
E o tantalizante som da bateria rompe as barreiras frágeis dos meus tímpanos, torturando invejosamente o mar de recordações em que meu barco navega.
(...)
Quantas ardentes elegias eu te fiz, minha amada! Multidões delas foram poucas para expressar a torrente de amor com que me banhavas o corpo e a alma.
As muitas vezes em que me prostei contritamente aos teus pés, a me penintenciar, não foram suficientes para saldar as miriades de beijos que de ti usurpei.
Minha própria vida, em ato de total desespero, te ofertei numa bandeja de prata, enquanto tu dançavas num monumental iceberg de brutal indiferenca
E ali, naquele harakiri não consumado, morreu fulminado o shogun que te amava sem mordaças, amortalhado nos marcados lençóis das conveniências.
(...)
Tornei -me um esquivo, um esgrimista permantemente a evitar golpes mortíferos; uma fera acuada nos penhascos do desalento, um degredado num deserto de sal
Ainda se me afigura longa e tortuosa a estrada pra Shanadu; o firmamento está áspero e escuro, assustando o anjo que me faz companhia por tempos imemoriais
Queria te falar de amor, Todavia, as palavras que garimpo a fórceps nas minhas entranhas, recusam-se peremptoriamente a compor uma sedutora canção
E enquanto este resto de noite se esvai numa aurora pintalgada de uma precoce viuvez, tomo de uma náufraga garrafa de vinho tinto, a me embebedar com mais um dia que nasce.
Terras de Olivença, Lua minguante de Janeiro, com o mês já caminhando para o seu final, de 2020.
João Bosco