Assim Cheiram as Flores do Jardim Selvagem
Dedico este conjunto de composições poéticas a um "mim" que mutilei com olhar cândido. Também dedico a siglas, acontecimentos, lugares, números, formas geométricas. Nada de antropofilia. Nada.
Poema I
O que o Espírito deseja
é que em si nada seja
e com tudo graceja
gaivota que acima das nuvens voa
e relâmpago que uma árvore estima
em dia de sol, sem ínfima
garoa.
Harpa serena
a ser tocada fio a fio
por pétalas delicadas de sol
a teia que a aranha tecera pequena
entre o tomateiro e o boldo.
Nem mesmo parece que é dia de semana
-e quando não é?
Sento, sorrio e admiro
como a lua.
Poema II
Como pôde à minha porta o silêncio bater
tarde da noite, a insultar-me dizendo-me:
‘’Saia já dos teus sonhos!’’?
Há tanta coisa nos discos, nos livros,
Nas palavras tolas que vociferam por aí,
E não há coisa alguma que me diga
Ou que sorria sem antes mentir coragem
Frente ao mais leve suspiro de alívio.
Há força nos passos, e no seu movimentar,
Peso que neste mundo afirma
Não ser eu peso algum para Espírito algum,
Senão motivo de sorriso a ponto de
Outra Monalisa ser produzida,
E constantemente, não em série,
Sempre nova.
Não há luz que se renove.
Há luzes que nascem.
Poema III
O corpo na cama a pensar
“Se lá se vai a chuva, é capaz de voltar.
Por que então já não abrir o guarda-chuva?”
E de repente rumina-se em meio a nuvens
Um sol um tanto sonolento.
“Deve chover mais tarde”, e esfrega os olhos
já com sono de quem não grita há dias.
O que há de errado com a chuva?
Com tantos telhados por aí, quantas vontades já
Não te perpassaram de sentar-se frente às estrelas
Num ato contemplativo de libertar-se do passado?
“Talvez chova. É melhor não subir”
O que há de errado com a chuva?
Quantas não foram as vezes em que isolar-se
Parecera a única alternativa em meio ao tédio
De tudo que se repete, ou imagina-se repetir?
Pois uma coisa permita-se pedir:
Que venha a chuva!
Poema IV
Não matem não paixão alguma.
Deixe que se viva, que se faça,
E não que se amordace num momento
Que passado tornar-se-á.
Vivamos apaixonadamente,
Ainda que em meio a tanta gente
Pareça não haver gente alguma
Que nos escute, que nos sussurre, que nos acaricie,
Que nos olhe com os seus próprios olhos,
E sorria a cada sorriso nosso.
Parece ilusão, ou tratar-se de buscar uma.
Não!
O que torna o vermelho vermelho?
O que torna um momento O momento?
O que torna o fogo fogo, ou quente?
Vivamos apaixonadamente,
Eu aconselho,
Ainda que em meio a tanta gente
Pareça não haver gente alguma
Que nos compreenda, tão somente nos conhecendo,
E conhecimento não é lá de grande ajuda
Quando motor de um passado que no presente se instaura,
Obscurecendo-o, tornando a sua materialidade impalpável.
Insegurança, talvez dissesse alguém.
Vício de um viver desapaixonado, que não se entenda novo,
Mas um funil, esquecendo-se de que esse tal passado
É um conjunto de presentes que já não o são.
Muitos e muitas são aqueles e aquelas que nos conhecem,
E tão ínfimo o número de quem nos compreende
-Quando há!-
Aprendo-me sem jamais me ensinar.
Compreendo-me à parte do mundo, das pessoas,
Sem fantasmas, sem fantasias, sem véu algum.
Poema V
Temes ser ninguém na vida.
Não tema - já não és!
Torna-te à medida que vives,
E viver não é palpável apenas
Em um acúmulo de anos.
Viver também consiste nos segundos
Seguidos e antecedidos de outros segundos.
Percebes? Não és alguém.
Se és, és uma multidão, e uma multidão que se expande
A cada passo, dado ou não.
Não te conheça e não queira te conhecer.
Queira compreender-te.
Assim viverás plenamente.
Poema VI
Há quem não tema a incerteza?
Tola é a criatura que finca no solo do Espírito
A certeza de tudo, ou de quase tudo.
Há quem termine relacionamentos, sejam de que ordem for,
Por certeza de que o Outro permanecerá tal como é.
Tal como é...o que é? E se pensássemos “em quê torna-se?”
De certo não queremos nos condicionar,
Queremos liberdade. Entretanto, e quando condicionamos os Outros
Aos nossos valores, julgamentos e conclusões?
Até que ponto não cerceamos a liberdade do Outro de transmutar-se,
Metamorfosear-se? Nada de crisálidas. Já sabemos o que tornar-se-ão.
Serão borboletas, e as suas belas asas sobre flores baterão.
E quanto a nós? Não há nada de determinado.
O desespero nos toma mediante a compreensão de que viver é incerto.
Eu não sou, tu não és. Quem seriam eles e elas? Quem seríamos nós?
Integrar a multidão e não entregar-se à massa.
Conheces deveras os Outros, porquanto não compreendes.
Não há indivíduo sem história -quem a narra? Com que propósito?
Quanto determinismo já não derramaste sobre o tecido branco
De um viver que não o teu?
Transmutar-se parece ser tão perigoso.
Transmutar-se é transgredir, e a resposta da norma de nossos pensamentos,
Tão condicionados, é a agressão.
Agredimos com um passado que a todo instante no presente se instaura.
Poema VII
Da certeza do futuro
Ou do medo do passado,
O que temos é um lançar de dados.
Não os padronizados dados de seis faces,
E sim, poliedros,
Que facilmente nos escapam entre os dedos,
A esvaziar-se assim a mão.
Têm lá encantos
Tão impróprios quanto o canto da sereia,
Que ora convida a quem ouve, a dizer sobre tal
Um versículo tristonho,
Como de quem se embriaga de vinho
Em noites frias,
Ora acuda os mais abalados Espíritos
Em suas friezas iluministas.
Esquece-se, entretanto, que esse canto
Pode ser, contrariando fantasias diversas,
A linguagem única das sereias,
Seja entre si, seja com o mar.
O futuro é um horizonte, e o passado o litoral.
O presente, ah! O presente!, é o mar.
Não à toa o poeta já dizia:
“Navegar é preciso.
Viver não é preciso”
Poema VIII
Se a Morte em seus trajes mais elegiantes
-Entenda-se como quiser- se aproxima,
Pensa-se logo “eu vou morrer”.
Ocorre que ainda há o que se viver,
Seja por anos, meses, dias, horas, minutos, ou segundos.
O pensamento, em sua velhitude, mostra-se ácido,
Corrói, deturpa, e então devora tudo ao redor,
A criar assim um abismo aparentemente intransponível.
O pensamento é velho.
E quantas não foram as vezes em que se perdeu,
Não a possibilidade -pois esta sempre há. Sempre!
Escutem-me: sempre!-,
E sim, a unicidade de um momento,
Por o vestirmos com os véus mais caros da memória,
Tecidos por experiências desagradáveis,
As quais, vejam só, nada dizem sobre o presente.
São invasivas, entretanto. São fantasmas.
E fantasmas que se materializam à medida
Em que permitimos que se instaurem em nossas relações,
Seja com nós mesmas, seja com os Outros.
Permissões essas que se dão por intermédio de condicionamentos,
E condicionamentos impostos por um pensamento velho,
Padronizado, enraizado no vivido, e não no que se está vivendo.
O pensamento é velho.
O pensamento é obsoleto.
Razão e Emoção são crimes contra o viver.
O Sentimento e a Compreensão, ao contrário, permitem que abramos as inúmeras portas da Percepção
E compreendamos as coisas como realmente são: infindas!
Poema IX
Acerca das reflexões do viver:
Penso horas, a refletir sobre o meu viver.
O que faço senão revolver as terras do Passado?
O pensamento é velho, e em decorrência de sua velhitude,
É estritamente incapaz de refletir sobre o Presente.
Vejam bem, enquanto tento refletir acerca do Presente,
O Presente ocorre, e eu não consigo acompanhá-lo,
Pois o que chamo de reflexão do Presente,
Nada mais é do que um Presente que já passou,
E portanto, um Passado.
O meu Presente é exatamente o refletir, o ato da reflexão,
Da tentativa de compreensão acerca do Presente.
Girovagarei, de certo, e aparentarei ser um tanto evasiva,
Pois o Presente escapa-me entre os dedos,
E ao tentar capturá-lo, encontro-me de novo tendo o Passado em meus braços.
Como posso refletir acerca do Agora, se o Agora já mudou?
O Agora é irrefletível. Nem mesmo -e compreendam a ironia-
Quando no espelho me olho, é o Presente que percebo.
O que percebo, é um corpo no Presente em comparação a um corpo no Passado.
Percebe-se como já não se é, e ignora-se o que se torna.
Poema X
O ato de reconhecimento
Trata-se da constatação de que algo é velho,
A configurar-se no Presente como um aglomerado de sentidos
Pré-determinados.
Sentidos estes, que assim como o pensamento, são velhos,
E portanto, deturpadores, ácidos, e invasivos.
A juventude do viver não possui sentido algum,
E nem mesmo enclausura-se no discurso sedentário da normalidade.
Não se trata de uma questão etária, compreendam.
A Filosofia Contemporânea não o pode ser, pois já se faz Filosofia
Enquanto um estudo de pensamentos.
Não há filósofo que não gagueje, pois é do Passado que trata.
Já pensaste em tratar do Presente?
Consegues fazê-lo sem gaguejar?
Poema XI
O Espírito fragmentado
Tudo implora.
De perto também chora;
De longe faz hora.
Conhece a si como quem bem leu os livros.
Mas, o que vêm a ser o “si”, o “bem”, o “ler”, os “livros”?
Não compreende quando lhe interrogam,
E então lhe dançam as sobrancelhas
E a perfeita memória
E põe pra fora os piores vícios: seus valores, seus julgamentos;
Com um caricatural sorriso.