Se é que posso pensar
Queria ser pimenta
da mais picante, ardida, vermelha
Nunca gostei de vermelho
por isso não sou quente...
Ardida nunca pude ser
já que meu sabor você não quer sorver
Picante também não
Pois que nem encostar em você posso
Você não passa sem ela
Seus olhos brilham em completo deleite
companheira inseparável
nada tem gosto, cheiro, sem ela
Quanto mais picante, mais desejada
enquanto durmo sozinha, sem me sentir amada
Vermelha, leva ao delírio
degusta-la é seu maior anseio
E eu aqui envelhecendo
sem sequer me ver apreciada
sinto-me lua diante do sol
encoberta por seu esplêndido brilho
Não posso ser perfilada
esbelta, cheirosa e atraente
Beleza nunca tive aos seus olhos
Nem vigor, nem sabedoria o bastante
Sou da lida, do dia a dia
do feijão com arroz, do trivial sabor
Nada adornada que pareça encanto
nem o canto dos meus lábios ecoa mais
Não tenho picância para lhe deixar rubro
sou comum, sem sal, sem nada
Não posso ser Eva, desejosa do poder
nem quero pretender dominar todo saber
Sou silêncio, fadiga, suor
Doença contagiosa, sem beleza, nem cor
Nem amante, nem deleite, nem prazer
dou trabalho, vergonha, dissabor
Sou apenas esposa, papel, sobrenome
Enquanto a vida grita beleza, esperteza e fama
Fico calada num canto, feia, burra, na lama
A limpar latrina, cuidar feridas, dores, sem nome