Herança

Medo turvo escorre pelo corpo.

Desde a veia mais dilacerada

Tudo é sangue.

Tudo escarra esperança -

Excremento do destino.

Tudo é poeira

Que se refugia na morte...

... e o tempo, tirano impiedoso,

Tem o colateral efeito

Da dor por completo.

“Doa a quem doer”!

Minha mente mentia

Histórias dolorosas -

Impregnadas de verdadeiro horror, aprisionadas no infértil ventre dos devaneios.

Histórias que se criam como um gato negro

E que perecem com suas escrupulosas sete facetas lúdicas no inverno psicológico.

A crua história de meu corpo

Consiste na amargurada repulsa pela verdade:

Incerto nojo posto sobre quem amei

Compõe a infeccionada chaga da infância.

Que herdei da cripta que construí

Se não as pedras concretas que oprimem?

Que hei de consumir no futuro

Se não os pútridos frutos de um passado cíclico?

Crescer não me concedeu a autonomia tão cobiçada

Nem a sonhada irrealidade me surpreendeu

Nem a espada que perfurou minhas entranhas estava tão amolada

Nem as mórbidas lágrimas limparam as lembranças de profundo [desencanto

Nem o podre medo pôde permitir a libertação transcendental da alma.

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Em uma noite tão obscura e tão imersa em desespero,

Em que o medo brinque de fazer caretas diante do espelho

E em que o coração não palpite mais,

Pegarei uma taça e, solitário, beberei à vontade

Mas não brindarei em demasia vulgares desejos:

A herança do morto não é tomada jamais!

(Gabriel Mayer, 05/01/07)