O despertar

O negrume tépido da coberta aquecia os meus medos e o mundo permanecia úmido e cego sob o véu dos meus pesadelos.

Havia em mim uma vaga concentração de criaturas despertas; uma zona de lucidez

a arranhar as funduras mais escuras do meu ser, como bestas indomitas a procura de algo para enxergar.

A cama jazia vertiginosa no torvelinho da escuridão, e como as bordas de um naufrágio, limitava-me a zona única de uma embarcação de ermos sonhos contidos.

Meu globo ocular era a janela entre o sonho e a vida - e os meus olhos pereciam abertos - espremidos entre a cegueira das lembranças, como binóculos apontados para terras já habitadas e consumidas.

Revestida por uma coberta,

almejei que o mundo que outrora julguei conhecer, sumisse em meus pesadelos, e temia olhar os espaços ao meu redor, pois eis que tudo parecia-me estranho e inumano.

As paisagens que outrora nutriam-se de mim e dos meus hábitos, passaram a escapar por entre os meus dedos, tão insubstancialmente

indefinidas ao mármore do nada.

A flacidez colérica dos sentidos

anestesiava a rigidez que espessurava a mortalha da vida (...)

Tal como a cera de uma vela,

a realidade em mim derretia e desmanchava perante a luz da aurora.

Por fim, sobre o poente o mundo se desfazia.

As coisas ao meu redor jaziam despertas e vivas; e algo em meus olhos pulsava, prestes a rasgar a visão aprisionada em insônia.

- Como ousaste, ó existência, a negar-me a familiaridade que outrora me encobria?

- Pudera eu revoltar-me contra

o fundo cego de um mundo indiferente?

Lembrara de sentir certas garras nos rostos que julguei conhecer e amar, no fundo deles estavas tu a gritar, ó consciência, tão irredutível e apática, a circundar fora das minhas ilusões.

Acaso já encontraste um estranho

numa face que outrora lhe afagou em familiaridade?

Saibas que essa é a torrente da vida a correr nua, sem as cobertas que um dia a revestiram em um sono.

Escondendo-me por entre as cobertas,

eu temia evadir-me para fora do sono cotidiano, mas a luz do dia, outra vez voltava a empurrar-me para fora de mim.

- Letícia Sales

Instagram literário: @hecate533

Letícia Sales
Enviado por Letícia Sales em 08/05/2021
Reeditado em 03/03/2022
Código do texto: T7250715
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