Mais do mesmo
Um dos maiores debates entre os teóricos da Literatura gira em torno de sua definição. Alguns definem Literatura utilizando uma das funções inventadas para as palavras. Quando tudo é teoria, na nossa vida também não passa de teoria. No último fim de semana, porém, foi diferente. Descobri a função da Literatura pra mim.
Todo ser humano atravessa algum momento de solidão na vida. Sente-se vazio, solitário, inútil. Parece que todos os anos que ficaram pra trás foram somente terreno arenoso. Você sente que não semeou nada, não colheu um grão, se esqueceu das pessoas e de quem você é. Agora você é nada, como se a vida fosse uma fôrma e você a argila que insiste em não cair dentro dela. Fica tudo deformado, fora do lugar.
Em momentos assim, até a essência de quem somos perde-se no espaço. Não sabemos mais que opinião ter em relação às coisas, não lembramos nem se um dia chegamos a pensar nelas. Fenômeno estranho esse. Parece que os dias vão varrendo o vulto da sombra que ficou, mas que já vai embora, porque não tem mais razão de ser, nem força de continuar.
Num dia desses voltei para a casa da minha mãe. Ela me disse: "Comprei esse guarda-roupa usado. Por que você não põe os seus livros nele? Assim não pega poeira. Sem você aqui, não tem quem mexa neles. É melhor deixar protegido".
E lá se foram todos os amigos e desgostos de antigamente: Paulo Coelho, O nome da rosa, Manual de produção técnica, dicionários, enciclopédia, e mais um trilhão de palavras e folhas de papel. Tanta gente sufocada e falando tudo ao mesmo tempo. Fiquei com dor de cabeça, mas era uma atividade que ocupava o vazio.
Aí me deparei com 3 ou 4 diários de uns anos atrás, de quando eu ainda escrevia sobre cada dia sem me preocupar se alguém ia ler. Páginas de quando eu tinha 14, 15, 16, 18, 19 e 20 anos. Quanta mudança num curto espaço de tempo!
Sentei na cama e comecei a ler tudo do começo. As palavras têm um poder de atingir cada fibra responsável por alguma emoção. Ri alto, assustei minha mãe, fiz cara feia, vi pessoas desfilando na minha memória, fotos cômicas, relembrei conversas inteiras, palavras que não se usa mais e situações que moldam o caráter e a personalidade. Aquele dia do primeiro beijo no fim da tarde de primeiro de maio. O dia em que o vôlei foi trocado por um trabalho no Mc Donald´s. Aquela briga horrorosa com o pai. O dia em que a faculdade chegou e trouxe tanta coisa diferente. Os amigos que estavam lá em pelo menos 3 diários. Muito sol, pouca chuva. Muita alegria, pouca tristeza. Tanta vontade de viver e de pular na piscina da chácara do Carlinhos às 3 da manhã.
Tive vergonha da minha auto-comiseração. Tive vergonha de esquecer tanta gente e tantas horas. Tive vergonha de não perceber que cada minuto escrito, cada palavra ali moldou TUDO o que eu penso, que sou, que vou ser.
E quem me lembrou de tudo não foi alguém. Fui eu mesma. Era minha própria Literatura, mesmo que outros não considerem. Foram as palavras. Escrever é descobrir mais de si mesmo, mesmo que o assunto não seja exatamente nós. E isto não é uma função? Não é útil? Entre outras mil coisas, escrever é ser mais de você, que pode ser ruim ou bom, mas é você.
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