Os sussurros da noite

É meia-noite, saio de casa para comprar um remédio para minha esposa grávida, e vago pela rua totalmente escura, e sozinho, eu particularmente sempre fui fascinado pela cidade à noite, tantas casas e prédios, e tudo vazio, não vejo ninguém, nem se quer um vira-lata procurando restos, pois sabe que não vai encontrar à essa hora.

Andei por duzentos metros, e não cruzei com ninguém, mas, sim, eles estão lá, eu sinto, os olhos da noite, eu tenho a intensa sensação de que tem alguém me observando, anjos da noite, não sei se são bons ou maus, mas estão lá, nos observando, anotando nossos registros, e você os ouve, barulhos de sirenes, latidos distantes, pegadas, carros, eles estão lá, me olhando, me seguindo, tentando falar comigo, eu os ouço, mas não paro, pois se parar, a noite me engole, e adentro para a escuridão, para nunca mais voltar.

Ah! Finalmente, à dez metros a frente está a avenida onde do outro lado, a farmácia 24h ainda segue clareando o pouco pedaço de calçada embaixo de sua fachada, os carros aguardam cinquenta metros à minha direita que o semáforo se abra, com seus faróis acesos, ofuscam a visão de quem os olha, é engraçado como duas forças distintas podem confundir uma pessoa a ponto de que ela não entenda o que está acontecendo, a penumbra é algo simplesmente sensacional, quando ao mesmo tempo se tem a luz e a escuridão, como se fosse uma experiência bizarra, e atravessando a avenida, vejo ali no ponto de ônibus algumas poucas pessoas, cerca de dez pessoas, que aguardam seu transporte, tensos pois sabem que as trevas são perigosas, e que as observa, sim, eles estão lá, os olhos da noite ainda permanecem distantes por causa da iluminação pública, mas se essas luzes se apagarem, poderemos ver a cor dos olhos da noite, pois eles fixarão seus olhos nos nossos olhos, para olhar dentro da nossa alma, e nesta hora saberão nossos segredos, nossos medos, nossa história, e ninguém gosta disso, afinal, essa história de ser um livro aberto, pode até ser, mas as palavras desse livro foram trocadas, apagadas, e reescritas pelas mentiras que vivemos, contamos e ouvimos dia após dia.

--- Olá! Boa noite. --- Me diz o balconista da farmácia com um leve sorriso nos lábios pois ele sabe que eu acabei de sair de uma selva bem vigiada, seus cabelos grisalhos nas laterais, e sua careca na parte de cima me dá uma ideia de sua idade e que, ele não queria estar ali.

--- Boa noite, eu quero um paracetamol de 750. --- Respondo como se eu realmente estivesse tendo uma boa noite, e tentando melhorar a dele. --- Quanto custa?

--- Custa R$ 6,90 a cartela com doze, aqui está.

--- Ok! Vou levar. --- E tiro do bolso quatro notas de dois reais, e duas moedas de cinquenta centavos, entrego três notas e as duas moedas à ele e devolvo ao meu bolso uma das notas.

--- Obrigado senhor. --- Diz ele terminando o atendimento e depositando o dinheiro no caixa.

--- Eu que agradeço. --- E pronto, é tudo o que tenho, dois reais e uma cartela de medicamento.

Desta vez, restam três pessoas no ponto de ônibus, impacientes, poderiam estar dormindo, assistindo os bombardeios que a mídia faz nas nossas mentes, ou até brincando com seus filhos (como se alguém ainda fizesse isso hoje em dia), mas estão ali, esperando, e esperando, e eles sabem, que eles estão ali, os olhos da noite, pairando sua atenção á quem passe ao seu alcance, basta um pé fora da luz, e você está na mira dos anjos da noite, mas enquanto estou atravessando a avenida, estou seguro, pois mais à frente, está o meu caminho de casa, uma selva escura de ruas, barulhos, e escuridão, onde cada um de nós é um suspeito.

Quando piso na calçada eis que surge à minha direita uma garota, deve ter entre dezessete e vinte anos, cerca de um metro e sessenta e cinco de altura, corpo mediano, uma presa perfeita para um assaltante, ou um maníaco, e ela sabe disso, ela disse pra mim com seu andar, ligeiro, quase três passos por segundo, uma velocidade incrível, e a cada minuto olhando pra trás, ela sabe, ela ouve os anjos da noite, e enxerga a escuridão, mas não a vê, por isso está com medo, ela sabe, eles estão lá, por isso está assustada, quanto menos tempo permanecer ali, mais rápido estará fora de perigo, e amanhã, amanhã será igual.

Cinco minutos se passaram e a garota, onde está a garota? Já não está mais onde minha vista pode alcançar, ela já foi embora? Ou a noite a engoliu? Não tem como saber, quando a noite engole alguém, ninguém nunca mais o vê.

Eu os ouço, sussurrando, tentando me dizer alguma coisa, 'vá por lá, é seguro', mas é o sentido totalmente contrário ao meu destino, 'estamos atrás de você', e nos forçam a olhar pra trás para que não prestamos a atenção ao que vem à frente, meus passos se apressam, onde está a garota? Tenho certeza de que não a verei mais, e tenho medo de que esse seja meu destino, o mesmo que ela, NÃO! Não terminarei assim, os sussurros aumentam, ficam mais fortes, mais altos, mais desesperados, querem me dizer algo, e quase entendo, até que eles se silenciam com o rangido do portão enferrujado da minha casa se abrindo, finalmente cheguei, estou seguro, por hora, pois mesmo que eu deite minha cabeça no travesseiro e tenha uma noite tranquila, eu sempre saberei, que eles estão lá, os anjos da noite, os olhos da escuridão, esperando o cair da madrugada, sim! Eles estão lá.

(Este texto é de minha autoria, publicado originalmente em 02/09/2013 em outro perfil, o qual não tenho mais acesso, link original: https://www.recantodasletras.com.br/pensamentos/4462965)

Varnion Caladiel
Enviado por Varnion Caladiel em 18/09/2024
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