A mudez do corpo eleva-se em catarse de pensamentos

Era uma tarde de início de verão, o calor assolava as ruas movimentadas causando uma súplica assedentada nos rostos. O que se faz em dias assim é um silêncio de vozes. O calor é tamanho que gente que for se cala, ao menos aqueles que andam, que cansam e assentam-se na parada com expectativa pelo ônibus que não chega. Ninhos populosos se formam nos restinhos de sombra da velha árvore que Deus deixou, surdos ao pregador bíblico que grita na proximidade como quem anuncia o fim dos tempos. Estamos completos, exarcebados pelo próprio pensar, presos em nós mesmos... O cansaço não nos deixa escutar, não permite sequer o irritamento característico de quem está fatigado pelo dia. Estamos apenas lá, a espera. Entramos perpassando-nos. A humilhação diária é substituída pela audácia de conseguir adentrar o transporte. Não há ar, só um bafo quente que arde na pele suada. Os corpos se grudam e alguns cedem assentos aos idosos. Era uma velhinha que entrava. De olhar internalizado, discretamente atento, não assustou-se quando recebeu lugar. Agradeceu com um gesto afável de cabeça. A diferença dela para os demais era sua alma anosa que naturalmente não era de muitas palavras. Aquele era um silêncio verídico, o nosso era forjado. Tamanha era a delicadeza de seus movimentos e a simplicidade do sorriso infantil que ninguém esperava em demasiado de sua pessoa. Falava sem dizer. É que ela já viveu muito. As palavras — ricas na fonte mental — transbordavam-lhe a alma e nunca conseguiam ser externalizadas verbalmente. De tantas experiências, do tempo que lhe abateu com a mesma rotina inúmeras vezes, as palavras já não lhe bastavam. Foi esse destoar que me fez pensar. A mulher sentou, amuada. Ajeitou o braço enrolado em um pano desfiado e murmurou algo inaudível para a moça que lhe cedeu o assento. Não fora escutada, nem a mão erguida em pedido fora vista. A velha aquietou-se. Como a outra estava com fones não guardou magoa, mas também não quis mais oferecer ajuda.

Estava tão quente, senhor! Não suava, derretia. Sentia meu corpo em chamas, atordoado, se desesperar em cada parada. "Que o sinal esteja aberto", clamávamos conhecedores do caminho repetido. Era em vão e a espera que se sucedia agonizava-nos, apesar de ser campo fértil aos pensamentos. Vendo a velha se remexer voltei a ela, onde indiferentemente não crescia a necessidade humana de palavras. Que fragilidade do ser precisar ouvir, quando os gestos são tão vivos, tão claros. Os lábios que abarcam um sorriso deveriam bastar. Um único sorriso abre o outro, desperta-o ao hoje... E olha que até nisso sou ruim. Me afastando dos traços ensaiados em sorrisos automáticos, a questão que me arrebata: "e se o outro vê o meu sorriso forçado?". Ele é repentino, improgressivo e surge em resposta ao sorrir do outro. Talvez me preocupe demais.

Ao final a noite caiu e com ela o calor se foi lento, de uma timidez estranha a sua audácia. A estrada do Monte Verde crescia tessendo à previsão de descida. O ônibus ia esvaziando, tornando-se menos denso em pensamentos. Os corpos calados iam acordando pela expectativa de em breve chegarem em casa. A catarse esvaía-se através da janela pela qual entrava o ar puro trazido pelas muitas árvores do bairro. A senhora inquietava-se à procura do passe. Deu-lhe ao vizinho de traz e ele foi passando-o entre mãos. Não mais distraída, ergueu a mão à moça gentil que lhe dera lugar. Se fez um "tchau" por parte da outra e ela se foi. A quem ficara, o gosto de gentileza agora rejuvenescida. A velha pegou o passe e esqueceu-se do agradecimento já não mais esperado. Deixou o lugar e foi para nunca mais voltar. Mas seus pensamentos ficaram ali, tinindo como faziam antes acima de sua cabeça. Estavam ali, mesmo que todos se fossem. Só com o andar do ônibus desapareciam para que a solidão do corredor e de seus assentos fossem a única verdade inerente ao que se move. Sentei-me na vaguetude, cansada. Dormira mal noite passada, o dia também não se fez agradável. Adormeci acordada, olhando o fora sem olhar. Não me vêm mais lembranças. Tinha em mim aquele desejo conhecido de chegar em casa. Dizia "vá com Deus" a cada um que partia até restar apenas eu, a mulher de beleza pálida, o cobrador, o motorista e os restos dos que ali estiveram. Só quando pus os pés para fora do ônibus acordei. Tudo que vivi, a vergonha, a distância; tudo que senti, a mazela, o calor; tudo que acreditei, o abandono, a incompreensão, tudo desapareceu. Foram com o ônibus e os vi saindo lentamente pelas janelas já longe de mim. Estava agora limpa.

Lyadri Pondraci
Enviado por Lyadri Pondraci em 21/02/2024
Reeditado em 21/02/2024
Código do texto: T8003988
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