NO. 1 - "Tempo suficiente... pra achar bonito"

 

Eu ando por aqui sozinho desde que tenho 11 anos... Só que a praça era redonda e colorida e hoje é alguma coisa que eu nem sei. Sei que é escuro e as pessoas parecem vultos.

 

Havia uma feirinha nos dias de sexta-feira (Era sexta-feira?! Eu me lembro sexta-feira... E faz diferença? Ô, se faz... ); mas a prefeitura mudou a feira de lugar há alguns anos, acho que porque atraía gente pobre. Eu gostava de olhar da janela e ver a praça de cima, pensando que podia amassar as pessoinhas com o dedo indicador, como formiguinhas.

 

Mas, hoje em dia, antes de chegar na rua da tragédia, preciso andar por uma praça em meu condomínio, chegar ao portão e só então ganhar a rua... independente do horário que eu passe, existe um homem velho de olhar vidrado, que fuma o dia inteiro, acendendo o novo cigarro no toco do cigarro velho. Gosto de criar em minha cabeça uma false impressão de que apenas eu vejo certas pessoas e fico me questionando: "será que são espíritos perdidos...? Anjos ou demônios? Alucinações de um contador de histórias desesperado para encontrar novas histórias?".

 

Um guardador de carros cheio de simpatia, sorri e canta... Ele ajudava minha mãe a estacionar, mesmo que ela fizesse aquele velho sinal do "hoje não tem...". Ele ajudava mesmo assim... Seu rosto era sempre satisfeito. Ele parecia estar sempre onde queria estar... Certa vez me apareceu com um CD em mãos e me disse que era cantor profissional. O CD custava 5 reais e eu comprei. Alguns meses depois ele apareceu com mais um com músicas inéditas... e esse já custava 10 reais... E meses depois mais outro, e outro, e outro...

 

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No. 2 - "... Mas algumas nuvens não passam..."

 

Ele me olhava como se eu fosse um grande apreciador de seu trabalho. E eu sempre comprava mas nunca escutava, apenas largava em algum canto da casa, intencionado a esquecer. Mas uma nuvem apareceu um dia na rua da tragédia...Ele me mostrou uma nuvem num raio-x de seu tórax. E ele pedia ajuda, a alegria de antes se tornara uma máscara triste... constante... Eu não dei a mínima.

 

(...) Quando a gente acredita que tem problemas psicológicos - escritos e descritos em livros da medicina - nossa mente cria uma realidade narcisista e hipócrita, onde nossos problemas parecem sempre mais importantes e irreversíveis que os de qualquer um. No fim das contas, corremos o risco de sermos vermes reclamões, numa cama confortável. Vermes acreditando que carregam todas as dores do mundo, mas isso é mentira. (...)

 

... Antes do natal eu andava na rua da tragédia com minha filha este homem me parou e passou mais minutos do que eu gostaria de dar... me falando de sua vida. Eu não o via há algum tempo e ele me contou que a tuberculose se foi, mas sua família, mulher e filhos, lhe mandaram embora de casa. E timidamente, com olhos lacrimejando (talvez uma mistura de cachaça com lágrimas) me disse que hoje é um morador de rua. ... um cativo de Tragedy's Street. Voltei andando devagar e confuso, porque minha filha me dizia coisas engraçadas e eu estava sorrindo, mas com um nó na garganta de choro contido. A confusão se fez completa quando enxerguei de longe o velhinho triste e fumante, do outro lado da praça... E aquela mulher que cuida dos gatos da praça (não gosto de gatos); usando sempre um jeans apertado, intoxicante... Queria gostar de gatos pra que ela gostasse de alguma coisa minha... Será que ela era também, uma alucinação? Eu não sabia o que fazer...

 

09 de janeiro de 2017

 

(H.B)

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 04/04/2023
Reeditado em 04/04/2023
Código do texto: T7756265
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