Manhã no sebo

Curitiba, 14 de julho de 2021.

Tenho um olho maior do que a barriga quando o assunto é livro. Nunca terei "livros demais", a estante anseia por companhia e não posso negar-lhe esse desejo.

Há sempre novas obras, novos personagens esperando para me envolverem em seus dramas, há poesias inquietas esperando por um suspiro, crônicas que leem de mim aquilo que ninguém consegue, contos que prendem o fôlego, biografias inspiradoras, emocionantes, histórias de amor que independentemente do desfecho deixam marcas.

E tem eu, que queria ter um cofre igual ao do Tio Patinhas só para poder ir ao sebo sem ter que deixar algum título para trás e remoer isso, pensando se da próxima vez, naquela prateleira, ele ainda estará lá à minha espera.

E existe também algo com o qual é preciso lidar sem pirar: alguns livros perdem o sentido... se eles deixam de serem bons e terem o seu valor?

Nunca.

Eles só não devem mais estar na minha prateleira, chegou a hora de tocarem os corações de outros leitores. Quando eu era outra, aquelas páginas convidaram-me a sonhar sonhos que agora não fazem mais parte de quem sou, mas contribuíram muito para a construção dos pilares que sustentam meu eu de hoje.

Repito, chegou a hora de esses livros cumprirem a função deles e estando presos num prateleira solitária, isso não é possível, porque ao menos lá no sebo eles serão vistos, tocados, analisados, viajarão em alguma bolsa, sentar-se-ão em bancos de ônibus na hora do rush, em vagões de trens ou até metrôs — caso saiam daqui, que não tem metrô —, estarão em cima do travesseiro de alguém que adquire o gosto pela leitura e continuarão de mão em mão, de coração em coração, sendo o que são, formadores de opinião, abraços de papel, amigos e confidentes de quem está aprendendo a viver.

Separei os antigos companheiros em uma caixa de papelão e reorganizei a estante, pode parecer que ela está vazia, mas a conotação é outra: está de braços bem abertos para acolher os novos amigos, preencher de sonhos aquele vazio que há debaixo do travesseiro, ocupar o assento vazio no ônibus, guiar-me de mãos dadas por um tempo que jamais vivi e sentir-me em casa, que o tempo é apenas uma delimitação do homem para não perder de vista as estações do ano, porque os sentimentos que movem as histórias são universais, as várias nuances da narrativa apresentam-no sob as mais diversas formas, testando a criatividade e criando possibilidades aceitas pelas folhas em branco...

E se amanhã ou depois eles também não fazerem mais sentido, que venham outros amigos, e outros mundos, e outras viagens para lugares distantes, para dentro do outro, um lugar sempre difícil de estar, não concorda?

Estar na pele do outro, ter espaço para adentrar ali e não profanar o ambiente, não julgar, não condenar, apenas escutar, escutar com o coração, aprender a respeitar o conceito de liberdade, que pode não nos deixar livres de todo — porque haverá quem diga que nossa liberdade é condicional e é vero que, sim, ela é, mas aí está o espírito da ideia, conhecer os nossos limites e os limites alheios — porque podemos ser livres para sonhar, e somos, e somos livres para criar, para pensar, para mudar de ideia, para encontrar nosso espacinho no mundo, e para nos refazer das cinzas tantas vezes forem necessárias, e aprender a amar novos autores, e viver novos amores, e amar sempre como se a primeira vez fosse, e viver tudo como se a primeira vez fosse...

Entrar no sebo, saber que já esteve ali outras vezes, mas que parece ser a primeira vez não só porque o layout das estantes está diferente, e sim porque quem ali adentra já não é a mesma de outrora, não é aquela mesma que veio comprar aqueles livros, ainda iniciando o que é uma modesta biblioteca restrita a uma estante de madeira no quarto.

No balcão a sacola entrega um pedacinho da minha história, enquanto caminhando pelos estreitos corredores, me agachando, me equilibrando nas pontas dos pés, poderia perder a noção do tempo curtindo a excelente música ambiente do lugar — porque rock cai bem com tudo e em todos os momentos porque há rock para todo tipo de roqueiro e até para quem não é roqueiro — e feitas as aquisições, inicia-se também um capítulo novo nessa história, ainda composto por digressões e alguns breves retornos ao passado, algumas expectativas sobre o futuro e o foco no presente, onde toda a narrativa se desenvolve, tijolo por tijolo, linha por linha.

Agradeço aos velhos amigos a oportunidade de conhecê-los e saúdo os novos, abrindo sempre os braços, porque não tem nada mais gostoso que caber direitinho num abraço apertado e ele ser tudo que se precisava para ficar bem... porque às vezes eu acordo com uma vontade tão grande de chorar e por não ter ninguém que olhe nos meus olhos e pergunte se tudo vai bem ou simplesmente abra os braços e me dê o peito para minha cabeça se abrigar, disfarço, ocupando-me, tentando matar o tempo antes que ele me mate de tédio e a leitura ao menos preenche todas essas horas com algo que ninguém poderá tirar de mim, o conhecimento, o deleite, as emoções vividas, a construção do senso crítico, o aguçamento dele, o refinamento da preferência e a gula, porque essa não se refreia nem se aquieta, só aumenta e o paladar, claro, acompanha a transformação.

Na saída do sebo, sinto-me convidada a voltar "qualquer dia desses", voltar de peito aberto, em busca de mais companhia, mais prazer, desse prazer que vicia, mas não me mata de overdose... porque se existe algo incrível no mundo literário é que há livros para todas as fases da vida, para todos os tipos de leitores, é possível encontrar o seu lugar, o livro à espera de ser tocado pelas suaves mãos a compartilhar nas digitais o calor humano, encurtar distâncias e transformar... não subestimo o poder porque ele é grande, maior do que o apetite desta que o escreve, maior do que a tentativa simplória de eternizar uma manhã no sebo, porque lá os minutos se contam de outra forma, se contam com o coração.

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 15/07/2021
Reeditado em 01/11/2021
Código do texto: T7300185
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