Quiçá

Numa fria e despretensiosa noite de setembro, início e fim juntariam as duas pontas mais importantes para o sentido dessa história. Naquele instante exato entre nove e dez da noite ocorreu o encontro arquitetado por um mero acaso, mas aqueles olhos esverdeados haveriam de inspirar a mais bela poesia a quebrar os grilhões do silêncio e falarem de amor. Da primeira impressão até a resignada conclusão de que a alternativa mais sensata era aceitar decorreram-se meses nos quais a negação foi a estratégia mais falha para encarar um fato concreto.

Confrontos mentais enfraqueciam as defesas daquela garota já cansada de tantas despedidas subentendidas, lágrimas salgadas banhando um rosto que mirava o céu em busca da sua estrela, de uma resposta, de um sentido para justificar as milhares de indagações que também faziam parte dessa descoberta do "eu", dessa dissociação entre seguir o coração (um acordo insólito entre razão e emoção, de acordo com outros valores pessoais) ou doutrinas que acatava por medo de reprimendas, por soar aprazível num conceito mais amplo de entendimento.

Eles enxergavam o brilho no olhar dela?

Certamente, não.

A dor da exclusão ainda era uma ferida aberta, mas amparada pelo amor que a nutria, surgindo de vez em quando, sob a forma de advertência. Porque se ela fechasse os olhos no silêncio da noite, poderia encontrá-lo. Letras sem melodia desejavam mais do que rimar ou falar à exaustão do mesmo, adquiriam um novo objetivo: a sonoridade, para que ela alcançasse os corações distantes, tal qual as ondas do rádio.

Um amor diferente de todos os outros, incomparável, porque apesar de o medo de perder infiltrar-se numa mente inquieta demais para deleitar-se com o presente, cada dia trouxe o seu encanto, o seu aprendizado e na contabilidade final, os bons momentos viabilizaram a narrativa desta modesta história. Amor assim ela duvida encontrar de novo no dom da vida.

Se ele partisse depois de estar no coração dela, a culpa seria um fardo demasiado grande para ombros tão estreitos, tão pueris, tão despreparados para uma longa caminhada rumo à maturidade, todavia, entre padecer às suposições e correr riscos, a primeira alternativa era ousada ou do contrário não existiria uma só palavra para corroborar o óbvio.

Ela o amava.

Amá-lo também transformou o olhar dela acerca da vida. Até aquela rebeldia adolescente deixava de ser um escudo para se converter num propósito maior do que reclamar e permanecer calada, passiva, à espera de soluções milagrosas. Ali se fincava a semente mais valiosa: a mente dela era o terreno fértil onde o bem e o mal residiam, o discernimento a direcionaria, mas nunca lhe furtaria o precioso direito à escolha, com a condição de que as consequências não fossem ignoradas por fanatismo algum.

Vida e morte travavam um duelo como em raras vezes se viu. Munidas de sábios estratagemas e trocando olhares profundos, cada qual com seus argumentos defendia o seu porquê. Ao centro, ela. E dentro dela, a poesia. Versos preenchiam linhas ávidas por não serem condenadas ao engavetamento eterno. Quer gostassem quer não, ficaria por conta do tempo... e das ciladas dele!

Os números mostrados pela balança evidenciavam o medo daquele passado repleto de mágoas que ela se esforçava para perdoar, ressignificar porque a sustentação dela era justa: não o teria conhecido se as estradas não possuíssem obstáculos e o percurso a conduzisse para outros rumos.

Ela o amava o suficiente para desejar viver, porém cogitar uma eternidade sem ele era um preço alto a se pagar, motivo pelo qual a morte encarava a vida com olhar de desdém. Garotos imaturos jamais lhe cortejariam por sincero interesse (o objetivo deles encobria-se pelo sorriso manso de lobos em pele de cordeiros), lhe ofereceriam segurança, viam-na apenas como um troféu a ser conquistado, cumprindo rituais enfadonhos, quase ensaiados, porque lhes apetecia a diversão e o desejo de mostrar ao mundo que não estavam sozinhos, quando estavam vazios de afeto a oferecer, porque presentes não lhe deslumbravam. O coração dela estava ocupado demais para frivolidades. Que os versos misteriosos confundissem os curiosos.

Para quem já teve o corpo julgado por não corresponder às expectativas doentes de um padrão cruel, as crises reacendiam um temor não de todo irreal: o de uma reviravolta cruel levar embora o amor e também a poesia, o sorriso, a vontade de desenhar um futuro feliz para si própria, ser quem ela sabia que poderia, aquela mulher escondida por trás daquele casco em que a timidez se protegia das mais variadas ciladas, que não foram poucas.

Um corpo desejoso por um toque familiar, ainda que desconhecido, diferente de todos os outros, sustentado por um olhar amoroso, um beijo cuidadoso, aquecido pelo calor de outro, cujas formas não seriam imperfeitas para quem o desbravasse com devoção, também desnudando a própria timidez. Por detrás dos formalismos e das camadas de tecido, a descoberta dos próprios desejos, daqueles tão repudiados por aqueles que ainda julgam o que não lhes diz respeito.

A distância se encurtava quando o amor cruzava as fronteiras mais inóspitas, munido da coragem que hoje já não mais possui. Quem faz morada no peito dela é a saudade... dele, da juventude que partiu até ser apenas uma pegada na areia já apagada pelas ondas marítimas que vêm e vão, dos sonhos que empalideceram até por fim morrerem de coração partido... e ela nem mensurava que sonhos pudessem padecer de tão cruel moléstia.

Naquelas noites serenas de céu límpido e o mais puro silêncio das ruas, as músicas substituíam o tão mítico café. Quiçá possuir o dom de viajar no tempo e desfrutar daqueles áureos anos sempre que a atualidade sufocasse a esperança. Inviável. Os tesouros dela não estão ajuntados em cofres, são as lembranças construídas com a ferramenta que a viabilizava a palavra, a correção gramatical poderia esperar, posto que a iniciativa sublimava os deslizes de uma reles iniciante tanto na arte do amor quanto da escrita. Hoje o polimento é uma necessidade, o ponteiro do relógio marcha sempre em obediência ao propósito maior. Seguir adiante. Eles nunca olham para trás.

Marisol Luz (Mary)
Enviado por Marisol Luz (Mary) em 19/03/2021
Reeditado em 19/03/2021
Código do texto: T7211178
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