Inveja entalada na garganta

Inveja entalada na garganta

O resfolegar que sinto é uma tentativa desesperada de entender meus próprios desejos, afetos, medos e ansiedades diante de mim e dos outros. Sempre tentei reconhecer que somos frutos de agenciamentos que tangenciam nossas experiências de acordo com os graus de sociabilidades e experiências que no decorrer do tempo vão nos moldando e construindo armaduras com fissuras em umas partes, e dureza em outras. De um modo geral, reconhecer sentimentos, afetos e desejos nos colocam no vão da ansiedade, e vos digo isso não de modo fácil, mas com uma sensação de sufocamento, tensão e repressão de sensações. Claro, vivemos em uma sociedade no qual determinados agenciamentos são aplaudidos, e outros aviltados, e de alguma forma tentamos nos encaixar nessa rizoma de afetações para tentarmos viver e corresponder ao que nos é esperado ou solicitado, afinal, em última instância herdamos as condições históricas e concretas e se construímos “novos ageciamentos” esses, são elaborados sobre marcas dessas cicatrizes.

Imagino que muitos reprimam seus sentimentos, tenham medo de reconhecer determinados prazeres ou sensações tidas como “não nobres”, de fato, tudo isso poderia se encaixar no tolhimento da potência humana diante da vida, por outro lado, sem cairmos no relativismo é preciso o reconhecimento daquilo que pode ou não causar dor e sofrimento a outro, é preciso reconhecer que nunca estaremos livres ou acima de um regime “biopolítico”, seja de qual sociabilidade for, podemos lutar para a construção de novos agenciamentos e biopolíticas que possam reconfigurar ou resignificar determinadas sujeições, embora eu ainda continue a acreditar que o reino puro e livre da liberdade encontrará em cada etapa histórica o seu próprio Pan-óptico. Nesse sentido, continuar a acreditar que mesmo tendo certa descrença e desesperança, e acredito que o dia chuvoso de hoje contribua um pouco para o sentimento mórbido e de angustia, reconheço que os sonhos e as novas esperanças serão sempre oportunidades para transformações em nosso próprio ser.

Contudo, eu queria tocar em um tema que em nossa sociedade aparece de modo quase obscuro ou que muitas vezes não é colocado em cena no mundo adulto de modo tão claro, ficando nas entrelinhas das frágeis relações: a inveja. Certa vez ouvi de uma psiquiatra uma explicação curiosa sobre o funcionamento do cérebro de uma “pessoa invejosa”. Uma observação preliminar que faço seria o fato de que em algum grau, todos em algum momento da vida sentiram inveja. Muitos falam em “inveja branca” o que pra mim é algo que apenas demonstra o nível de racismo de nossa sociedade, uma vez que seu oposto seria algo ruim, sendo o próprio sentimento em questão algo a ser refletido. De fato, numa sociedade que tem como marca não a solidariedade, mas a competividade, vaidade, mercadorização de elementos comuns da vida como a própria estética, afinal poderíamos refletir que as redes sociais são espécies de mercados de “carne”, onde cada perfil tem uma etiqueta e um “preço” psicológico, é comum nos perfis expressões como: Graduado em Direito, Doutorando em Ciência Política; Mestre em Economia e Doutorando em Administração; Empresário e cristão; Dona de casa e mãe de fulana de tal; enfim, essas etiquetas são diversas, iguais àquelas que existem nas feiras livres. De algum modo parece que queremos nos vender a algo ou alguém, mostrar algo aos outros que sabemos que irão passar pela nossa “banca de carne” e avaliar o nosso produto. Além disso, desde à infância é sempre comum as comparações do tipo: você não é igual ao seu irmão, a vizinha é mais estudiosa. De fato, a comparabilidade é algo que permeia nossas relações e formas de nos posicionarmos diante do outro, o orgulho em exercer uma profissão, o discurso sobre o que fez ou deixou de fazer a meu ver não são apenas formas de expressão, mas de afetação. Sinto que estamos em uma corrida para saber quem será o melhor.

No mercado profissional isso se potencializa, vêm os concursos públicos, a procura dos empregos e ai que a sociabilidade capitalista nos aprisiona em um estilo gerencial e empresarial. Temos que ser os melhores, calcular o que falamos e como nos expressamos, até com quem nos relacionamos, e em tempo de redes sociais o que postamos, escrevemos, ouvimos tem um sentido estético. Esta, nesse sentido, não é algo reconduzido apenas às classes abastadas, mas serve também como espaço de análise para empreendermos investigações empíricas sobre a sociabilidade humana nesses tempos marcados pela racionalidade neoliberal e subjetivação da vida.

Mas, voltando ao mote da inveja, uma rápida procurada no dicionário vai nos dizer o seguinte:

1. Sentimento de cobiça à vista da felicidade, da superioridade de outrem: ter inveja de alguém.

2. Sensação ou vontade indomável de possuir o que pertence a outra pessoa: ela tem inveja do marido da outra; ele tem inveja do seu chefe.

3. O objeto, os bens, as posses que são alvos de inveja: seu carro importado era a inveja dos vizinhos todos.

Dizem que a inveja não é um sentimento “nobre” e ao retomar essa definição do dicionário percebo o tom “negativo”, as adjetivações de fato possuem um tom angustiante e “feio”. Aliás, quem de nós reconhece esse sentimento? Segundo a psiquiatra que ouvi comentar, geralmente o invejoso não reconhece que tem inveja, afinal, sempre quem tem inveja é o outro, nós nunca temos esse tipo de sentimento, sendo assim, parece que ao ser posto dessa forma, ninguém nunca tem inveja, e tudo fica recolhido em baixo do tapete. Outro fato curioso é que, do ponto de vista fisiológico a psiquiatra também informou que o cérebro de um “invejoso” sente prazer ao ver a “desgraça do outro” e a região do cérebro responsável pela dor é aquela mesma do sentimento de inveja, ou seja, uma espécie de dor psíquica.

Historicamente a inveja esta inserida nos chamados sete pecados capitais, junto à gula, luxúria, avareza, ira, soberba, preguiça, definição apontada pelo papa Gregório Magno a partir das epístolas de Paulo. Essa informação histórica de um papa que já colocava tal sentimento como um “pecado capital” no século VI, nos mostra que antes mesmo do capitalismo esse sentimento já era presente, aliás, biblicamente no gênesis poderíamos considerar a própria morte de Abel como tendo o contento maior da inveja. Contudo, longe de uma questão moral e religiosa, que de fato está vinculada a potenciação dos desejos, quero focar na reflexão da inveja nos tempos atuais.

Acredito que nenhum de nós pode passar despercebido por esse tipo de sentimento, de uma forma ou se outra ele está ali presente na composição de nossa personalidade. Vejo também que em tempos de competição acirrada, desemprego, exposição nas redes sociais, além dos problemas de autoestima, sempre que vemos outra pessoa se destacar ou conseguir algo nos sentimos na vala comum da “maioria” ou da impotência diante do mundo. Logo, vem à angústia, o desespero e a descrença no futuro, nos comparamos e nos julgamos e lá no fundo, até aquele indivíduo que diz “não ter inveja” recalca tal apreensão de modo a não reconhecer esse sentimento.

Evidente que, como toda reflexão, não podemos tomá-la como algo generalizante, a própria escrita é impregnada de impressões e vivências pessoas, o autor nesse caso, também é fruto de traumas, invejas e desgostos no decorrer de sua vida, negar isso seria ser um falsário, mentiroso e se colocar acima como neutro em relação aos afetos e aos sentimentos, e eu acredito piamente que o caminho não seria por ai.

Dessa forma, preciso relatar algo que, a partir dessa análise me causa um resfolegar, uma sensação de angustia e ansiedade. Acredito que eu sofro de inveja e tento ao máximo reconhecer isso, me jogando nesse pântano nada convidativo. Eu preciso reconhecer e explorar essa sensação porque acredito que será a única forma de superá-la e construir novos desejos. Quero que saibam, sou uma pessoa muito insegura, então a comparabilidade é um recurso que sempre está presente em minha vida, ou na maioria das vezes. Quero dizer com isso que, em alguns casos acho que somos forçados a comparação mesmo, afinal, o ambiente em que vivo é repleto de “vitrines”, formulações de estéticas e venda de imagens, preciso dançar um pouco esse jogo para poder sobreviver.

Mas a minha inveja em si é estranha, eu quero confessar a vocês que às vezes torço para que determinadas pessoas não consigam o que querem para que assim, eu me sinta bem. Mas vejam bem, isso não é algo que eu externalizo ou fico o tempo todo torcendo contra, também não quero com isso redimir esse sentimento que eu reprovo bastante, mas é como se eu de fato me sentisse bem se alguma pessoas não conseguisse algo, e quero deixar bem claro, não são todas as pessoas, mas algumas pessoas, que talvez em minha mente causem algum tipo de ameaça ao meu “espaço”. Isso é muito ruim, é angustiante. Eu vou citar um exemplo para tentar ser mais concreto.

Faço parte de um grupo de pesquisadores cujo líder que por sinal é meu orientador, é uma pessoa com um vasto conhecimento, uma pessoa renomada e conhecida no mundo acadêmico. Esse ano ele abriu uma disciplina na qual acabei enviando a ementa para uma colega que é “professora substituta” de uma universidade. Ela rapidamente passou a ementa para outra colega que fez a inscrição e está matriculada na disciplina. Essa outra pessoa tem apenas mestrado, mas já é professora substituta, sendo assim, com grandes chances de passar em um Doutorado. O que eu desenho em minha cabeça é que essa moça em especial quer fazer Doutorado e quer pegar meu orientador como orientador dela, desde então percebo que ela tenta se esforçar para mostrar “trabalho” e interesse ao meu orientador, além de se aproximar do grupo de pesquisa, pra mim está bastante claro que ela quer entrar no Doutorado e fazer parte do grupo de pesquisa.

O curioso é que isso me incomoda, eu acho que o fato dela já ser professora substituta mostra uma potência que não tenho, exibe minha fragilidade, minha baixa autoestima e consequentemente gera inveja. Esse exemplo em si, e até mesmo escrever sobre esse fato me ajuda a não ficar tão ansioso e eu avalio que preciso encarar esses sentimentos e não jogar para debaixo do tapete, quero ser uma pessoa melhor do que sou hoje e da qual serei amanhã.

Quaresmo
Enviado por Quaresmo em 03/08/2020
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