Podemos ficar alegres com a alegria do outro?

O tema da inveja certamente ocupa os anais da história humana em páginas e mais páginas alocadas em bibliotecas. É nítido que se trata de um sentimento humano assim como o amor, o desprezo, a tristeza e a alegria. Embora muitas pessoas não gostem de tocar nesse tema e muito menos professem que em algum momento da vida a inveja foi arada no terreno profundo da psique, esse sentimento está lá, varrido como poeira para debaixo do tapete, ou melhor, estará suprimido pelo nosso superego em sua instância de vigília. Tão certo quanto à ideia de que a matéria se transforma diversos estágios explicados pela física, temos a noção de que vivemos em um mundo de competitividade, de comparabilidade e de vitórias e derrotas. Sendo assim, não podemos simplesmente dizer que o sentimento da inveja surge no capitalismo, as anedotas bíblicas nos exemplifica através de Caim e Abel como as sociedades antigas já lidavam com tal sentimento.

Entretanto, temos que admitir que a racionalidade imposta pelo desenvolvimento capitalista joga os seres humanos em um caldeirão de competitividade, e em uma era de conhecimento esse fenômeno se alastra para dimensões sutis, que ficam a espreita para resurgirem como monstros em nossa psique. É interessante observarmos que a inveja sempre estará no outro, se reconhecer como invejoso ou como cobiçando o desejo alheio ou a vitória alheia implica em se reconhecer como inferior, fraco ou menor diante da comparabilidade. Não precisamos entrar na esfera propriamente material, mesmo que está condicione a vida humana, afinal, somos matéria e desconsiderar isto seria cair em um culturalismo estéril e nada produtivo para pensarmos a própria esfera cultural. O fato é que, seja pelos motivos mais banais, os seres humanos sentem inveja, e por vezes se perdem em florestas densas de pensamentos hediondos.

Em meio a uma sociedade tão competitiva, que valores poderíamos perceber ou praticarmos, ou será que a inveja é, como diria o raciocínio de um proeminente antropólogo: estrutural a condição humana ? Entre uma condição de formação da personalidade humana e das suas relações sociais em âmbito macro, poderíamos encontrar alguma saída para tal sentimento? Ou procurar isso seria negar a própria natureza humana? Reconhecer que somos invejosos, que cobiçamos e desejamos algo que não nos pertence, que torcemos contra e desejamos ver nosso semelhante na condição degrada ou no mesmo patamar de mediocridade implica em se reconhecer como fraco e pequeno ?

Essas são perguntas que não encontraremos respostas, e talvez cada um de nós encontra uma resposta interior, ou na melhor das hipóteses, poderíamos refletir em nível macro se ao vivermos em um modo de produção que nos condiciona a competitivdade, a ganância e a potencialização da individualidade, se a chave para essas respostas também não se encontra em uma virada ontológica da condição humana sobre outra base econômica e social. Enfim, são reflexões complexas, que nem todos se aventuram a navegar no mar tenebroso dos sentimentos considerados repugnantes pela teleologia cristã.

Tomando a liberdade para falar de saídas, talvez uma delas seja o reconhecimento dessa condição da inveja, da ganância, o autoconhecimento e o entendimento que, a inveja não está apenas no outro, está em mim também, que eu não sou o ser mais puro e legal desse universo, que estou condenado as relações sociais de produção como o meu semelhante, e que não vivo acima da sociedade, faço parte dela e comungo em certo grau com o mar de cosmovisões e construções sociais ao qual me encontro. Reconhecer nossas fraquezas e nossos demônios poderá nos ajudar na construção de melhores relacionamentos, amizades e da própria forma como passamos a enxergar esse mundo de conflitos e disputa, afinal, a sobrevivência em última instância também condiciona a forma como estamos agindo, e de nada valerá a hipocrisia dos fariseus como autoengano.

Quaresmo
Enviado por Quaresmo em 12/03/2020
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