A VARA DE ERATÓSTENES

Sobre o injustificado estardalhaço no que se refere a um suposto debate entre terraplanistas e não-terraplanistas, algumas observações tranquilas :

Como frequentemente se vê, quando se trata de temas de alguma relevância ocupando a agenda de gente importantíssima como blogueiros e jornalistas da mídia tradicional, não é tanto o objeto em questão a causa da celeuma, dos pronunciamentos exacerbados e/ou enfezadinhos de quem parece possuído de certezas devastadoras -- de minha parte, não faz a menor diferença a Terra ser ou não ser esférica, plana ou em forma de rosquinha recheada, isso não altera em absolutamente nada ou curso de meus dias nessa existência. Não é sobre a forma da Terra, a disputa, é, conforme percebo, sobre a condução da opinião pública a partir da hábil manipulação de suscetibilidades e paixões da turba ensandecida -- ocorre-me Gustave Le Bon...-- o que menos importa em toda a discussão é exatamente o objeto mesmo da discussão, e muito mais os mecanismos pelos quais somos levados a acreditar que sabemos aquilo que julgamos saber.

A versão oficial de certo saber que dê sustentação ao status quo é dogmática, assume ares de sagrado no vácuo deixado pelas religiões. Ouse colocar em questão a opinião do jornalista da grande mídia e assuma a pecha de propagador de fake-news. Atreva-se a especular sobre o que especialistas dão como definitivo e irretocável em qualquer área do conhecimento e esteja pronto para lidar com os sorrisinhos triunfantes do desprezo de quem tem a seu lado, percebam, a evidência empírica por critério do rigor científico.

Maravilhoso, não?

O terraplanismo não propõe uma teoria minimamente abrangente sobre o objeto de suas especulações : compile toda a produção textual (que apresente alguma coerência interna) sobre o assunto e o máximo que teremos serão pontuais contestações ao modelo copernicano. Vejo alguma semelhança com o que ocorre com a astrologia, por exemplo, que todo inteligentinho de plantão se apressará em classificar como "pseudociência" , sem ter se dado ao trabalho de tentar entender porque a astrologia é um problema filosófico que sequer chegou a ser proposto como tal. O aspecto mais relevante nesse tipo de pré-discussão (terraplanismo não é uma teoria...ainda) é que somos levados a perceber quão frágeis são os fundamentos daquilo que julgamos saber, e como é fácil emitir opinião a respeito do que de fato não conhecemos.

A coisa toda assume o teor de um enredo kafkiano, uma vez que muito tem sido dito a respeito de um tema que não se apresenta, ainda, nos termos de uma teoria, não assumindo, portanto, a discussão, o peso de um debate científico que assim mereça ser chamado. Associada a isso a já mencionada irrelevância de ordem prática, para o comum dos homens, podemos mesmo suspeitar da mínima razoabilidade aceitável no modo como conduzimos nossas coisas, importantes ou nem tanto.

Ou seja, isso é tema de bate-papo em pátio de hospício.

A referência a eventuais fragilidades psiquiátricas não é casual : não é raro, no calor da "argumentação", em algum momento entre a vara de Eratóstenes e as teorias conspiratórias em evidência, a esbaforida associação de terraplanismo com movimentos anti-vacina, "fundamentalismo religioso" --puro termo de discurso metonímico, veja, que não remete a absolutamente nada da realidade, além do próprio discurso -- "onda conservadora" , etc. O pano de fundo de tais arroubos desesperados é o da histeria, a do condicionamento mental que só sabe que sabe, que tem certeza e que, portanto, está "do lado certo", "esclarecido", e opiniões contrárias estão erradas de antemão.

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Israel Rozário
Enviado por Israel Rozário em 14/11/2019
Código do texto: T6794349
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