Para vencer os dualismos ortodoxos

Há uma diferença enorme entre lutar cotidianamente para que a sociedade, ou, pelo menos, as pessoas que estão ao nosso redor, tenham mais consciência de todas as problemáticas da vida que lhes atinjam, e tomar para si a liberdade para considerar-se uma espécie de guia, líder ou responsável por mostrar ao outro aquilo que julga ser o certo ou compatível com a melhor conduta.

A construção de opiniões deve ser fruto de um processo incessante e sempre provisório em que um sujeito, ao tomar conhecimento de uma situação em conflito, seja apresentado a variados pontos de vista e alternativas de pensamento sobre o caso. Trata-se de produzir esforço necessário e relevante para colocar o ser dentro do jogo onde ele também possa ser partícipe e, com a devida possibilidade de igualdade de condições, poder tomar partido, fazer escolhas e discernir sobre qualquer assunto que lhe afete.

Percebe-se que é notório, nos dias atuais, aparecer na cena pública uma boa parte da sociedade que julga ser evoluída, democrática e respeitosa para com opiniões contrárias a seus julgamentos. Contudo, parece que quanto mais um tema ou uma causa tome proporções de interferência nacional, ou até mesmo global, mais arrogância e totalitarismo de ideias tomam conta do que poderia se tornar um grande campo de produção de conhecimento conjunto. Ao invés de mais ouvir, mais se fala. Ao invés de mais pensar, mais se impõe.

Torna-se relevante mencionar que nos registros históricos de diversas sociedades o maniqueísmo foi uma das causas de grandes conflitos e catástrofes que foram na contramão de soluções reais e plausíveis, as quais, a priori, poderiam legitimar uma busca por um mundo melhor, mais justo e igualitário. Reduzir a sociedade de qualquer contexto e cultura à duas possibilidades onde o sujeito, atravessado por diversos dispositivos, como bem aponta o filósofo italiano Giorgio Agamben, tenha que simplesmente optar por um caminho que, de antemão, pressupõe-se contrário ao outro, é tomar o indivíduo como um ser autocentrado, antiga noção cartesiana, além de ignorar os múltiplos impulsos que levam o mesmo à construir diversos processos de subjetividade durante o dia, no próprio meio comunitário e, mais ainda, na estrada da globalização contemporânea.

Dizendo de maneira ainda mais simples, é como continuar a enxergar uma pessoa qualquer como peça de um grande rebanho, sem pensamentos próprios, sem sentimentos e desejos díspares e contraditórios, facilmente manipulável de acordo com os interesses de seres mais esclarecidos.

Deve-se não perder de vista que a tentativa de resolver as coisas ainda nos moldes fáceis e redutores de opções bipartidárias e diametralmente opostas só questiona os diversos ganhos advindos da produção de conhecimento recente que permitiram vislumbrar o processo, o paradoxo e a multiplicidade como componentes construtores da subjetividade. Ou seja, foi na busca por saberes que privilegiassem as questões mais intrigantes e complexas do ser humano que foi possível se chegar a resultados que discutissem e negassem teorias ultrapassadas do positivismo, do determinismo biológico e dos dogmas mais arcaicos sobre a vida e sua relação com a sociedade. Exemplos são as culturas, muitas vezes chamadas de minorias, que agora podem exercer o seu direito à voz e serem legitimadas nas agendas e debates mais atuais, com reflexão madura e aprofundada.

É pernicioso quando surgem, diante de grandes convulsões sociais onde as pessoas estão inquietas e críticas, figuras que se autoproclamam conhecedoras, esclarecidas e detentoras de uma espécie de dom para guiar, liderar e conduzir. Lembra-se que a condução aqui aventada não é um processo verdadeiramente democrático que pressuponha direitos iguais na tomada de decisões entre os seres envolvidos, mas de um uso de força autoritária e violenta, cuja relação de poder passa a ser estabelecido pelos interesses individuais do condutor e de seus agentes facilitadores, que expõem os interesses de todo um grupo. Nesse caso, a busca por melhorias e por direitos passa a ser um meio, e não, um fim em si mesmo.

São nesses momentos que indivíduos que constroem para si uma imagem de um ser altruísta se aproveitam para utilizar do ímpeto idealista de um conjunto de pessoas, que não se pode esquecer nunca que são extremamente diferentes entre si e com anseios e interesses variados, para tomarem as rédeas da carruagem e tocarem a boiada para onde bem entenderem. Isso até o ponto de acusarem a falta de ânimo, entusiasmo ou falha de retidão da boiada, caso os rumos previamente suspeitados comecem a desandar.

Por mais que a metáfora acima e as imagens evocadas sejam bastante anacrônicas e até despropositadas, a atenção que despertam serve para se verificar como as coisas parecem não ter mudado tanto assim no campo político, que é onde a prática deveria acompanhar a reflexão angariada e oriunda do conhecimento. Infelizmente, quando se espera uma confluência entre as ideias e as práticas, e não, de umas sobre as outras, o que se vê é que a vontade de alguns prevalece sobre a desatenção de muitos.

O que isso provoca afinal de contas?

Isso faz com que não haja nenhuma mudança efetiva no desenvolvimento da sociedade, porque continuam sendo repetidas velhas formas de ver e encarar o mundo. Ou seja, dá-se continuidade a uma visão na qual a sociedade ainda é vista como aquela velha massa amorfa e homogênea, que está apenas aguardando uma grande mente iluminada tangenciar o corpo para o lugar e para o futuro que ela considera serem os melhores.

E nisso se perde a chance de compreender que as grandes mudanças acontecem nas relações pequenas e mais banais entre esse ‘eu’, que está longe de ser uno e estável como pode parecer, e esse ‘outro’, ainda mais complexo e distante de uma profunda e total compreensão realizada do lugar de onde me situo. É uma relação difícil, problemática e muitas vezes conflituosa, mas que sendo aceitas como necessárias e relevantes para a construção da sociedade em que ‘eu’ me insiro, podem começar a oferecer melhores resultados e propiciar grandes descobertas.

Tal proposta não é harmônica, muito menos rápida, mas acredito que ainda possa ser a melhor e, quiçá, a única possibilidade de mudanças mais profundas e renovadoras.

Quem sabe assim, possamos num futuro mais próximo colocar nas cadeiras políticas pessoas com a capacidade de se sensibilizar com as necessidades de todos e buscar soluções para o diálogo inteligente e respeitoso entre as diversidades existentes nos processos sociais. Mas, para isso, é preciso exterminar o pensamento dualista e ampliar as propostas e opções para a resolução dos conflitos. E isso inclui avançar muito além do pífio debate entre “coxinhas” x “pão com mortadela”, entre direita x esquerda, entre “reaças” x “revolucionários de facebook”, entre “golpistas” x “populistas salvadores da pátria”, e por aí vai...

Enfim, isso não é um mini-tratado filosófico e nenhum pensamento novo, mas apenas uma velha reflexão que precisa ser renovada, acredito que sempre!