O estranhamento da "estrovenga"
O aplicativo de dicionário da Língua Portuguesa que uso em meu smartphone apresenta uma palavra diariamente como um recurso de aprendizagem de vocábulos novos ou de recordação dos esquecidos. Uma destas coisas úteis que a tecnologia nos proporciona, ainda mais para quem trabalha na área de linguagens e lida com textos regularmente.
Pois é. A palavra que apareceu no visor de meu celular hoje foi “estrovenga”. Bom, dentre alguns sentidos apresentados, uns 4 mais ou menos, alguns apontam para uma coisa difícil, complicada, estranha. Fiquei alguns segundos a pensar sobre a relação da palavra com esses adjetivos. Em mais alguns minutos em seguida, agora com um pouco mais de clareza, esbocei outros pensamentos numa reflexão sobre como é curioso o quanto a língua constrói pontes do próprio material de que é formada para se chegar à ilusórios lugares inabitados. Deixa eu tentar explicar isso melhor.
Para mim, o próprio vocábulo “estrovenga” soa estranho e esquisito. Quiçá, pelo seu pouco uso nos discursos com que convivo, ou ainda até pela pronúncia que cria uma organização diferenciada de sons um pouco atípicos para a Língua Portuguesa. Então, quando vejo os tais significados apontados pelo dicionário, com o uso de adjetivos que correspondem ao estranho, esquisito e difícil, penso no quanto pouco foi percorrido. Quer dizer, no quanto pouco se avançou entre o desconhecimento da palavra e a iluminação da mesma pelo compêndio vocabular. Ou seja, uma coisa que corresponde a ela mesma, pensei logo após.
Mas, aí, após mais outros instantes necessários para uma melhor análise sobre aquilo que se pensa, com seu distanciamento temporal relevante, fiquei pensando no quanto toda a nossa comunicação é feita de certos lugares, aparentemente fixos, para outros lugares do próprio bairro, outra vez, também aparentemente fixos. Usamos palavras que partem de outras palavras como referências. Isto quer dizer que, como o conhecidíssimo quadro do pintor surrealista René Magrite, Isto não é um cachimbo (recomendo a visualização e uma cuidadosa reflexão, aliás tem uma boa reflexão de M. Foucault a respeito), as palavras querem dizer outras palavras. Estamos presos na linguagem, sentença parecida com aquela evocada por Wittgenstein, filósofo alemão do início do século XX.
E mais alguns minutos após esses momentos anteriores, agora já no decurso do esboço de meu textinho que ora se apresenta, me veio o pensamento de que, ao mesmo tempo que nos encontramos dentro de uma prisão de referentes linguísticos, também estamos subvertendo todas as ordens possíveis desta mesma prisão, ao utilizar as mesmas palavras e seus sentidos, aparentemente fixos, de forma nova e diferente, pois a finalidade e o contexto são inéditos. Ou seja, podemos dizer que o fato de eu ter visto esta palavra, “estrovenga”, e não saber do seu sentido nesse exato momento, para em seguida descobrir seus sentidos, que parecem ser os mesmos que a palavra por si só ressoam, como estranho e esquisito, não será vivenciado da mesma forma numa próxima oportunidade em que eu fizer uso da palavra, agora já sabendo de seus possíveis sentidos. Mesmo que venha a esquecer o sentido dela, não será mais inédita essa descoberta, essa iluminação, e nem mesmo o impacto que teve essa sensação de agora há pouco. Mudamos com o tempo e com as experiências e isso faz com que se mudem também os sentidos das palavras que usamos, mesmo que sejam mínimas diferenciações, quase imperceptíveis.
E é isso que condiciona a existência da linguagem, bem mais até do que suas pontes movediças sobre si mesma, onde não é possível romper o véu e verificar a virgindade da noiva. Isso é uma ilusão. Assim como também é ilusão acreditar que a simples associação entre elementos de um e outro vocábulo garantem uma relação segura, que envolve a compreensão mútua e eficaz entre dois sujeitos. É tudo mediado pela linguagem e pelo ato de linguagem, ou seja, seu uso naquele momento específico, como dizem bem os estudos pragmáticos de Austin.
Bom, o que quero dizer é que estrovenga é mesmo estrovengo. É estranho porque tenho pouca convivência com sua aparição. E assim como tudo parece estranho, esquisito, e “dificultoso”, no dizer do G. Rosa, é somente porque ainda não se conheceu por completo e com mais frequência. Cabe perguntar: é estranho para quem? Ou ainda: em relação à quê? Estrovenga será sim uma coisa estranha, como diz a semântica de sua convenção social. Mas será também uma coisa estranha, como dirá o calor da hora.