O encontro marcado, muitas vezes ignorado, com as letras
Assim como ninguém nasce um cozinheiro, também não acredito que alguém possa nascer um escritor. Esse não surge, forma-se. E o sentido do verbo formar aqui evocado não corresponde ao seu uso restrito ao contexto científico ou didático. Muito menos estou pensando aqui nas inúmeras escolas de escrita criativa que se proliferaram nos últimos tempos. Ainda que o exercício ajude muito. Não. O formar aqui quer dizer ser construído e construir-se ao longo do tempo. Quer dizer que alguém está trabalhando as experiências que vivencia e que reflete, como as que recebe pela leitura, antes de exercer a atividade da escrita. Os estímulos e os sinais do mundo em volta que apontam para um encontro.
Recentemente, relembrando entrevistas primorosas de escritores contemporâneos concedidas ao programa Roda Viva da TV Cultura, a exemplo das que foram feitas com Fernando Sabino, Nélida Piñon, José Saramago, Lygia Fagundes Telles, Ignácio de Loyola Brandão, Márcio Souza e outros (extremamente acessíveis no youtube), pude pensar no quanto torna-se importante valorizar a trajetória de composição do próprio artista da palavra. Muitos deles, de forma inegável, reconhecem e fazem questão de mencionar a relevância de uma vivência em meio à livros, contato com pessoas de mente aberta e criativa e, claro, familiares encorajadores desde a mais tenra idade, elementos necessários para o pontapé de seus caminhos pela via literária.
Óbvio que nem todos tiveram e têm oportunidades reais de partilhar do contato cotidiano com livros, ouvir leituras de pessoas próximas e entusiastas, ou ainda de vivenciar momentos de total imersão ao mundo da arte, seja frequentando espaços culturais, seja sendo estimulado à fazer leituras sem objetivos e obrigações repressivas desde cedo. Triste pensar que isso foi e é para uma parcela muito pequena da sociedade. Pois, certamente, caso a situação fosse mais favorável, teríamos mais escritores, mais pessoas que refletiriam de forma crítica e criativa sobre os problemas humanos e sociais, além de um cenário promotor para a manutenção e, mais importante ainda, para a reinvenção das ideias.
Poderíamos sair acusando instâncias de poder que dominam pastas estatais responsáveis pela gestão cultural das cidades, estados e países. Poderíamos culpar as grandes empresas que controlam os meios de comunicação mundial e local, movidos para alimentarem uma indústria cultural mais propensa ao enquadramento geral da população e à minarem possibilidades de questionamento. Mas, será que esse discurso resolve muita coisa? Dá para um surfista mudar a trajetória de uma onda? É preciso abandonar o que acredita e se jogar na onda? Ou será que, numa espécie de terceira margem, não daria para tentar se embrenhar pela onda e buscar fazer uma trajetória diferente, mais afim com os seus desejos, de forma criativa e consciente dos riscos?
Penso que uma sociedade começa dentro do próprio lar, isso quando se é possível ter um. Penso que a população começa pelo próximo mais próximo a mim. Aquele que me conhece, que me transmite e me concede confiança. Aquele que me relaciono, afetuosamente ou apenas profissionalmente. Aquele que se revela o ponto mais perto que tenho do restante do mundo. Uma corrente, sem pensar necessariamente numa ideologia política ou numa agremiação religiosa. Ainda que eu não nutra uma fé inocente na ausência total de posição ideológica. É com esse sujeito que posso começar realmente mudando alguma coisa. É para esse que posso falar que é importante investir o dinheiro em outras coisas, incentivar o filho à outras atividades, à ele mesmo deixar de ver sempre o futebol para ler um conto.
Não se trata de receita mágica. Pelo contrário. O script é mais velho do que tudo. Mas, pode ser possível mudar alguma coisa, apenas começando por mudar alguma coisa. Posso garantir que o incentivo à leitura e à escrita não seja apenas um discurso de uma burguesia intelectual, muito menos uma política social de paternalistas com boas intenções. Não. Quando o sujeito assume o lugar de leitor, ele apreende o que a sociedade antes dele produziu de conhecimento. E quando ele se desloca para o lugar de escritor, ele acrescenta a sua visão sobre esse conhecimento. Contradizer ou confirmar, pouco importa. É sempre um acréscimo, uma modificação.
Sei que parece um texto replicante, sem nada de novo à acrescentar. Mas, posso te garantir que se fizer alguém pensar, nem que seja por pelo menos 2 ou 3 segundos, em como poderia ser o mundo se mais pessoas lessem ou escrevessem, já valeu a pena todas as críticas ao teor e ao conteúdo desta mínima organização textual.
Sou alguém que não nasceu e nem cresceu numa casa com livros, pois isso não fazia parte da vivência de meus pais, que sequer passaram do Ensino Fundamental. Não tive muito interesse desde cedo na escola por estorinhas e coisas parecidas. Mas, houve algum momento da minha vida, entre o fim da infância e o alvorecer da adolescência, que alguém me contou uma estória, com enredo, fantasia, peripécia e personagens estranhos que me despertou a curiosidade para os símbolos das coisas e para os sentidos das palavras narradas. Houve um momento, também, em que abri as páginas de um romance sobre o sertão brasileiro e comecei a ler sem qualquer necessidade de entregar uma atividade ou responder perguntas pré fabricadas. Foi aí que comecei a mergulhar de cabeça nesse mundo e utilizar os conhecimentos adquiridos nas leituras, tanto orais como visuais, na vida, no trabalho, no relacionamento com as pessoas. Não fiquei rico. Não deixei de ter doenças. Não sorri mais por causa disso. Mas, encontrei mundos possíveis e possibilidades de mudar a mim mesmo, sempre mais e mais, a cada encontro marcado com as letras.
Acredito que outros também podem ter diversos outros encontros marcados, ainda desconhecidos e ignorados, e é por isso que luto realmente.