TRADIÇÃO E TRAIÇÃO
GUARDIÕES DA TRADIÇÃO!
Em “proseio” com pessoas queridas comentei o termo "Guardiões da Tradição", curiosos indagaram-me; alguns espantados, outros distantes...E chegou a hora do questionamento.Então, a paixão por esse “dez-licioso” tema alumiou minha fala que perambulou por entre o ser e o se sentir ser um verdadeiro guardião:
O guardião “não se faz, ele nasce” guardião, peço licença para parodiar as falas de meu amigo, mui amado e saudoso (en) cantador Abel Bueno. É algo inerente naquele que em suas ações cotidianas deixa explícito o compromisso e profundo respeito para com o doce limiar da evolução histórico-mítica de um povo, de um lugar, de um objeto...
É como se pulsasse no peito desse mágico ser, a necessária volúpia que dá-lhe resistência alada para zelar pela continuidade daquilo que representa sua estrutura primária e ancestral, sua e de um coletivo, o que é primordial ao guardião.
Não há mecanismo ou engenhoca que consiga captar essa singularidade, pois é viva e não se ata à imagens ou se prende à artificial sonoridade de um gravador; por mais que os burocratas da cultura o tenham tentado. Existem coisas para ser vivenciadas intensamente, como por exemplo, o bom vento que sopra na face numa tarde de intenso verão e segue liberto e impune por outras faces.
Poucos são aqueles que conseguem captar com sua arte a essência de um guardião da tradição, os que o fazem, certamente deixaram de lado a titulação de artista, para transgredir a alma do consumo desenfreado e muitas vezes destruidor, e transmutá-la em espírito iridescente, dando-nos a chance de recomeçar o ciclo da vida cultural com olhar mais depurado diante a expressão de sua arte.
Assim como ocorre na bela foto, imagem inerte, mas que tem tanta energia que parece deter a vida em seu bojo; ocorre com a película que abarca muito além de simples perspectivas tecnicamente justapostas, para se tornar poesia em movimento. O mesmo acontece com o som audível apenas por aqueles que permanecem artisticamente incorruptíveis, pois reproduz a pureza do ouvir e sentir prazer. Por exemplo, o coaxar de um sapo cururú, o vento que balança a folha no alto da árvore, o desejado arrepio de um banho de chuva com os pés descalços a chutar poças d’águas... e muito mais... muito mais...
O olhar de um guardião não é tão somente o físico, mas vem do coração espiritual, que pulsa no ritmo da esperança de continuidade; desse olhar muitas vezes verte lágrimas de prazer em ser junto à uma manifestação popular tradicional e jamais estar em, pois ser é diferente de estar; enquanto um ocorre pela cumplicidade ou defesa pela evolução de sentidos e formas, o outro é perene e se esvanece nas tendências das circunstancias e intenções determinadas que a sociedade propicia.
Um guardião não é um prêmio a ser dado institucionalmente, mas uma história construída junto de pares, A-R-T-E-S-A-N-A-L-M-E-N-T-E, o que gera perfeita simbiose amorosa daquilo que se nutre do profundo respeito e desejo de salvaguardar, as formas e expressão múltiplas de um povo; muitas vezes sem que para tal seja cobrado qualquer taxa de prestação de serviço por aquele que deseja manter viva a tradição. Muitos morrem de fome...
O guardião sabe que há coisas e atos que jamais são mensuráveis financeiramente, e muitas vezes doa a esse bem o que tem, para que o mesmo possa continuar e/ou se perpetuar para a sociedade que nem se dá conta de sua importante existência. Sabe também a diferença entre fazedores da cultura popular e os “técnicos atravessadores” da mesma.
Inexiste critérios, fórmulas ou atalhos para ser um guardião, é como se o céu elegesse propositalmente alguns afortunados, provendo-o com a insanidade peculiar de doar-se à um local, objeto, pessoa, grupo ou planeta. Tem em suas mãos a secular calosidade daquele que esculpe a memória da humanidade no dia a dia de sua vida.
O guardião jamais é eleito, impossível ser catalogado, muitos sépticos até duvidam de sua existência, pois nosso sujeito em questão tem por habito fazer morada nas entrelinhas das manifestações, cerzindo com doçura e afetuosidade, o tecido rústico, muitas vezes roto, que serve de pano de fundo para que a cultura popular brilhe em todo seu esplendor.
Não há salários, mas gratidão daqueles que são protegidos por um guardião, essa gratidão é levemente perceptível em forma de abraços, olhares doces, cumplicidade, amizade, aquele simples aperto de mãos cheio de significados e conteúdos. Como prêmio muitas vezes o guardião recebe uma marota e generosa colherada daquele doce de abóbora com côco: quentinho, apurado no tacho de cobre, no fogão de lenha, e esta crepita, como se soubesse o valor desse momento mágico de troca e doação...
Quanto isso vale para você? Esse saborear o cheirinho que vem em companhia daquela receita que passou da avó, da avó da bisavó, recheadinho de saudade e momentos afetivos que para cada um de nós tem um significado único e específico...
Onde estão esses seres alados de idéias e condimentados com o amor ao próximo? Em todos os lugares e em lugar nenhum... São amigos de sacis, primo irmãos de iaras, acreditam no vento que sobra a previsão do bom tempo de plantio, buscam água no solo com forquilhas, riem em segredo daqueles que pensam que sabem e fazem questão de demonstrar sua pseudo sabedoria...
Como detectá-los? Amigo, impossível apenas sendo um deles, caso raro, pois somente os iguais é que reconhecem. Mas aviso aos falsificadores de etiquetas culturais: nem mesmo os guardiões o sabem sê-los, pois apenas o são... E se ousam colocá-los em evidência, perde-se um possível elo que seria gerado em prol da cultura popular. Pois são bicho estranhos esses guardiões, são silenciosos, ocultos, correm de lá para cá e muitas vezes nem nos damos conta de sua presença, pois nossos olhos ainda não refinados para percebê-los. Não captam seu brilho existencial... e como brilham “Ara... se brilham” .
UM ABRAÇO A VOCÊ GUARDIÃ(ÃO) QUE SABE SÊ-LO SECRETISSIMAMENTE, FICA ENTRE NÓS A CUMPLICIDADE!