Um breve relato, e um novo sentido

Ela tinha uma vida comum antes de tudo: família, trabalho, e tudo o que achava que precisava para viver. É como aquela situação em que pensamos que tudo está tão dentro dos padrões de normalidade que, se melhorar, maravilha! Mas, se continuar como está, também não há do que reclamar.

Este era um de seus pensamentos, ainda que inconscientemente. Talvez seja o pensamento embutido na maioria dos cérebros, e talvez seja este o habitual pensar de todos, supunha.

Mas pra ela, e naquele momento para ela, as coisas pareciam diferentes. Certa vez, e antes de tudo, tinha pensado e se questionado sobre Deus. Ele teria mesmo criado tudo? Se sim, era tão forte e poderoso, e talvez não o pudesse entendê-lo. O porquê de ele criar pessoas, sendo que a maioria delas não se importa mesmo com a vida que leva. Ela se encaixava nisto?

Seguia suas rotinas diárias, acordava às seis da manhã e arrumava-se para seu dia comum. A jornada até o trabalho era estressante, havia congestionamento, pessoas irritadas, sem educação, e pra ela um plus: uma dor chata nas pernas. Mas havia aquelas pessoas tão gentis que compensava todo o resto. Lembrou-se de quando, outro dia, descia devagar as escadas de acesso ao metrô subterrâneo. Descia um degrau por vez, a perna direita apoiava todo o corpo, enquanto que a esquerda, mais dolorida, equilibrava-se para alcançar o outro degrau.

- Se quiser, posso te carregar... – Disse um rapaz, ao que parecia, bem intencionado ao vê-la se arrastando.

As outras pessoas apenas olhavam, como quem pensa “coitada, deve estar mal”.

- Obrigada, consigo sozinha. Obrigada mesmo...

- É que trabalho levando cargas, eu posso te carregar, se quiser. – Insistiu, como quem estivesse acostumado àquele tipo de atitude.

Sentiu-se estranha e sorriu. Já se imaginava chamando tanta atenção descendo as escadas daquele jeito. Imagina como seria descer nas costas de um homem que, para ela, era desconhecido.

- Obrigada mesmo, mas consigo. – Sorriu ainda mais largo, querendo dizer que realmente conseguia.

O rapaz sorriu e continuou a descer as escadas.

Para ela havia ainda uns 30 degraus. Ainda estava na parte aberta da escadaria, e segurar no corrimão das escadas era difícil, pois naquela parte o sol alcançava e deixava o material quente. Imaginou quem teria tido aquela ideia de um corrimão de ferro debaixo do sol quente numa parte descoberta da escadaria. Isso a fez querer descer mais rápido, forçando um pouco mais a perna machucada. Não havia acesso especial para portadores de necessidades especiais, da qual poderia se utilizar em sua condição temporária de mobilidade reduzida. Isso também a fez xingar mentalmente alguns políticos que não se importavam em direcionar investimento para aquele tipo de situação.

Qual foi sua maior surpresa, depois de descer aquelas escadas todas e passar pela roleta, havia ainda dois lances de escadas até o segundo subsolo.

Por vezes ela queria esquecer a cena. Mas parecia que uma chuva de pensamentos lhe invadia a mente em momentos incomuns. Lembrou-se, de repente, de quando foi aos quase dez médicos, contando os da emergência por causa das dores, para ser diagnosticada.

O pior não era ir a tantos médicos para saber o tinha. O pior era ver que eles mesmos não se importavam com a sua causa. Dizer a um paciente que não sabe o que ele tem e nem se dispor a investigar a fez se questionar como eram os cursos de medicina da atualidade. O que será que aprendem lá além de cuidados médicos? Pesquisar uma situação que desconhecem não faz parte disso?

Classificou a pior parte quando encontrou um a quem jurava ser o que descobriria sua causa. Viu na internet que ele era professor numa universidade pública, e que tinha lá mais de trinta anos de medicina, sendo especialista no que atendia. E lá se foi ela. Entrando no consultório feliz e relatando sua causa de dor. Esperava dele um “ah, sim... pode ser isso, ou aquilo. Vamos pedir exames, ou achar nestes que já tem aí uma causa provável”. Mas o que escutou foi um “volte pra casa, não sei o que você tem. Daqui trinta dias vamos refazer os exames. Diga-me quais remédios já tomou e te darei um que não tenha tomado”. Ela o olhou com os olhos vítreos, tão concentrados em suas palavras que não esboçou reação. Ele a olhou de volta como se dissesse “é só isso que tenho para você”. Ela precisou chorar por dois minutos no banheiro antes de sair do consultório. Quando pisou na rua, recebeu a ligação do seu chefe cobrando sua demora em chegar à empresa. Pensou em quem mais poderia estar numa fossa maior que a dela.

No caminho que percorreu, passou em frente a uma lanchonete especializada em cafés. Estava lotada. Na calçada havia gente indo e vindo, e velhinhas passeando com seus cães, e carros preenchendo a larga avenida ao som de buzinas e cantar de rodas. Do outro lado da rua, mendigos. Enquanto andava observando tudo, esqueceu por um momento da dor que sentia, e tropeçou num buraco entre o piso de pedras portuguesas, que constituíam as calçadas de forma quase absoluta naquele bairro. A dor foi forte, e passou a andar ainda mais devagar. Os olhos encheram de lágrimas. “Que raios de calçada! E que raios de pedrinhas chatas! E que raios de políticos que nada fazem com relação a isso! Que droga!”. Mas parou para questionar-se imediatamente o que ela fazia com relação a tudo aquilo.

Quando decidiu ir mais uma vez ao médico que atendia a mesma especialidade que fora da primeira vez da dor, já não tinha muita esperança. Esperava as mesmas palavras: “não sei o que é”, ou “refaça este exame”, ou “quer mais remédio?”.

Estava na recepção já imaginando o que tanto remédio para dor pudesse causar em seu organismo. Sempre leu que remédios só faziam bem mesmo para tratar a causa que os justificavam. E se tomados em demasia, como no seu caso, poderiam resultar em dependência ou em outros males. Só parou de pensar nisso porque foi anunciada como a próxima a ser atendida.

Como num ultimato, via o médico avaliar seus quase vinte exames. Ele era novo. Viu seu retrato de família na prateleira ao lado. Era na neve. Parecia viajado. Olhou os materiais comuns em todos os consultórios ortopédicos: colunas em miniatura – talvez de parafina – , retratos de corpos e sua estrutura óssea, diplomas. Era o segundo consultório mais bonito que entrara dentre todos. Mas em sua mente, aquilo era apenas mera distração para aguardar as palavras tão esperadas dele.

- Acredito que possa ser isso... – Explicou uma teoria. – Ou isso... – Aduziu outra possibilidade. – Apenas essas duas hipóteses, no meu conhecimento, podem te causar essas dores que te incapacitam. Vou pedir mais dois exames. Volte imediatamente quando os tiver, te atendo sem consulta, chegue apenas mais cedo e te darei uma atenção.

Não conseguiu responder de imediato. Apenas agradeceu e saiu correndo para encontrar o laboratório. Pensou em como aquela simples atenção poderia ter mudado tanto sua vida. Alguém tinha se importado. E aquela foi apenas a primeira de um total que sete consultas. O jovem médico não havia descoberto em si a causa. Explicou a ela apenas que era raro, e que às vezes precisa se saber um pouco mais, ou investigar um pouco mais para se entender os sintomas.

Por que os outros não haviam feito isso?

Semanas depois, e já de licença do trabalho por não conseguir se deslocar sozinha, chegou na consulta aos prantos. A dor era tanta que mal podia encostar a perna no chão. O doutor a atendeu logo e lhe aplicou algo que achava que podia melhorar. Talvez ele estivesse comovido com a dor dela, e talvez estivesse instigado pelo seu senso de descobrir o que era aquilo. Ela sequer olhou o tamanho da ferramenta que ele usou para aplicar o remédio, mas sabia que tinha anestésico junto. O objeto mexia, e ele explicava que precisava encontrar o ponto certo, para fazer efeito. No entanto, disse também algo que a marcaria:

- Você precisa acreditar que vai dar certo. Precisa acreditar em Deus.Tenha fé! Não posso fazer nada sozinho se você não acreditar.

Sim, ela acreditava em Deus, e já havia pedido a ele que a ajudasse, mas a dor só piorava. Havia pedido que lhe desse uma direção, mas não conseguia vê-la. Havia dito: “Está bem, faça o quiser. Deus sabe o que faz, não é? Então pode fazer o que quiser comigo”.

Talvez ela mesma não tivesse entendido o sentido de suas próprias palavras. Talvez ela mesma não tivesse parado para pensar que as coisas, de certa forma, estavam acontecendo.

Foi necessário aplicar mais uma daquela injeção na semana seguinte. Foram necessários 13 diferentes remédios por dia, mas foi necessário apenas escutar aquilo para entender o que ela mesma não havia prestado atenção. Mas foi necessário também ver por outros ângulos. A rua cheia de buracos, a gentileza das pessoas, o olhar de compaixão.

Quantas vezes andava daquele jeito cheia de dor, agarrada à bolsa para que não a levassem num roubo? Quantas vezes segurou-se em paredes para não cair, ou apoiou-se em carros para atravessar um degrau ou outros de lugares sem rampas? E quantas vezes pensou na dificuldade de quem andava de cadeira de rodas, muletas.

E pensou no por que apenas situações parecidas acontecendo a ela e fizeram pensar nos outros, ou em Deus?

Não entendia muitas coisas. Chegou a conclusão de que talvez não tivesse sido criada para entender muitas coisas mesmo. É como se um cão pudesse perguntar ao dono o porquê está naquela casa, sendo tratado com amor. Amor gera amor.

Seus dias passaram a ter o sentido único de pensar em como compensar o que passou. Havia pensado em quantas pessoas precisam de amor, e de cuidado, e em como o mundo tornou-se tão egoísta, ou como era e ela mesma nunca tinha reparado.

Já andava sem dores, e já não andava como antes. Não foi o jeito de andar que mudou, mas foi o sentido de dar os passos que a fez ser uma pessoa melhor. E não é necessário passar por isso para ver as coisas diferentes. Basta olhar para os outros, e já entendemos tudo. Amar os outros como a si mesmo. Sim, essa passagem faz sentido.

Taila Avlis
Enviado por Taila Avlis em 28/02/2014
Código do texto: T4710134
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