OLHAR DE CRIANÇA
“No pequeno tamanho das crianças louvaste o símbolo da humildade, quando dissestes: delas é o Reino dos Céus”. (Santo Agostinho)
“Deixai as crianças e não as impeçais de virem a mim, pois delas é o Reino dos Céus” (Mt 19, 13). Os místicos e os poetas já sabiam desse imperativo divino, pois seremos salvos quando nos tornarmos criança.
A grande maioria dos adultos identifica o “infantil” com o “pueril”. Adulto no qual mora uma criança não é digno de confiança. O ideal é o homem maduro, que abandonou as coisas de criança, que trocou o brinquedo pelo trabalho. A psicanálise concorda ao afirmar que o “infantil” é o regressivo, sintoma neurótico a ser analisado.
O infantil não é o regressivo: é o eterno, o que sempre foi, o que sempre será, o objeto da saudade e da nostalgia, o objeto perdido que se espera reencontrar no futuro. É dos desejos infantis que surge a poesia. A criança e o poeta falam a mesma língua.
O profeta-poeta Nietzsche está certo ao fazer o centro de sua filosofia o retorno à infância. Nascemos camelos, animais de carga, que obedecem à voz dos seus donos. Passamos então por uma primeira metamorfose: o camelo se transforma em leão, o guerreiro dono da sua vontade. Acontece, então, uma última metamorfose, para que a vontade do leão se realize: ele se transforma em criança que só faz brincar.
Fomos expulsos do Paraíso quando perdemos a capacidade de olhar e de brincar. Transformamo-nos em crianças que brincam em adultos que trabalham. Nossos olhos eram encantados. Eles eram dotados daquela qualidade que, para os gregos, era o início do pensamento: a capacidade de se assombrar diante do banal. Os olhos nascem brincalhões e vagabundos – veem pelo puro prazer de ver, coisa que, vez por outra, aparece ainda nos adultos no prazer de ver figuras. Coitados dos adultos! Arrancaram os olhos vagabundos e brincalhões de crianças e os substituíram por olhos ferramentas de trabalho.
São muitos os estudos da psicologia das crianças. Estudando as crianças para ensiná-las a maneira adulta de ser. Não conheço estudos que tenham por objetivo o contrário: ensinar aos adultos a maneira de voltar a ser criança. Quando elas, através da educação, são transformadas em seres úteis, o Paraíso lhes é roubado: são obrigadas a se esquecer do brinquedo e a viver no mundo do trabalho.
Rubem Alves escrevendo sobre a criança, diz que “as crianças, do jeito como saem das mãos de Deus, são brinquedos inúteis, não servem para coisa alguma. Criança não são para ser usadas como ferramentas. Elas são gozadas, como brinquedos... Os olhos, diferentemente do resto do corpo, preservam para sempre a propriedade divina do rejuvenescimento. O sábio é um adulto com olhos de criança”.