Pequeno Tratado Existencial (Metafísica do Ser-aí) - Um Réquiem para Heidegger
Enquanto tudo passa, rodopia, o “aí” permanece na sua incógnita aérea, além, acima de todo movimento finito.
O turbilhão incessante do cotidiano explode. Ritmos, carnes, teorias, psiques, lógicas severas, identidades, negócios, flâmulas, delírios, delíquios, poemas, toda a artilharia do mundo arrebenta, para além do golpe ou do mero aprazimento. Nas engrenagens dos veículos que brecam na derrapada de todos os destinos, nos movimentos sangüíneos dos que se amam e se entregam (a quem se entregam?), nos contratos, nos albergues, nas igrejas, em tudo isso há o espectro do fluido, fantasma do efêmero, mas além de tudo isso pulsa o ser-aí, o “existencimento”, o que é e brada, mesmo se sua voz se sufoca, se apaga ante todas as vociferações da multidão desencontrada.
Aquele homem que caminha arrasta consigo a marca indelével do seu ser-aí.
Aquela mulher que traz em seu seio cálido um filho traz o filho legítimo do ser-aí.
O policial circunspeto que ronda aqui e ali na manutenção de uma ordem caduca é policiado, por sua vez, pelo ser-aí.
Mesmo o mendigo deitado na sarjeta mendiga as migalhas torpes de seu ser-aí.
Todo o divertimento insano do mundo não consegue ludibriar a essência radiante do puro “existencimento”.
Toda a opulência das classes abastadas não consegue comprá-lo.
Todo o conhecimento dos livros, toda a metafísica e os compêndios científicos, nada é capaz de conhecê-lo.
Todas as religiões do mundo não conseguem sublimá-lo.
Pois em cima, embaixo, fora, dentro, aqui, ali, em tudo reina o “Existencimento” com toda a sua pujança e nos devora.
Somos continuamente absorvidos pelo “existencimento”, até que ele nos deixe sem formas. Aí somos.
Os olhares vagos nos elevadores tentam inutilmente disfarçar a presença do ser-aí.
Os falsos sorrisos dos vendedores revelam-no.
O insight quase místico de um poema na mente de um gênio é uma fulguração do ser-aí.
O solitário à meia-noite vagando pela erma praça está à procura do seu ser-aí e o invoca: “Ser-aí, pst, ser-aí, pst, pst!!!”.
E se existe de fato um Ser absolutamente perfeito, inteligentíssimo, criador e coordenador dos fenômenos do Universo, nada mais fez do que gravar na carne errante de todo vivente o selo legítimo do “existencimento” para que assim ele possa entrar em conflito consigo mesmo até a dissolução da própria eternidade...
Vagner Rossi