Café com Deus
Estou lendo a excelente biografia de Clarice Lispector, escrita por Benjamin Moses, há duas semanas. É um livro detalhado, grosso, com um título que, durante a adolescência, era a pergunta persistente da própria autora: Why this world? Moses enfatiza, inúmeras vezes, a luta de Clarice em aceitar, recusar, negar e, principalmente, revoltar-se contra a existência de Deus. Sempre usando metáforas e alegorias, a escritora finalmente escreveu a palavra Deus nos últimos trabalhos de sua carreira. E, assim que comecei a ler esta biografia, pensei instantaneamente em José Saramago, justamente por conta da questão divina.
Nascida na Ucrânia devastada pela guerra, de uma mãe estuprada por vários soldados e falecida pouco tempo após a chegada da família no Brasil, de um pai com muitos talentos, mas relegado a reconstruir a vida num país estrangeiro, Clarice também é irmã de Elisa, que já tinha nove anos quando a família decidiu partir da terra natal e que conta em palavras tocantes sobre todas as lembranças cruéis dos tempos de guerra em seu próprio livro, No exílio. Além disso, Clarice também apaixonou-se por um homossexual que jamais retribuiu o sentimento, passou por um divórcio, teve um filho esquizofrênico e morreu de câncer. Todas as razões possíveis para duvidar da presença de Deus.
Saramago teve seu livro O evangelho segundo Jesus Cristo banido de seu país por censura da igreja católica. Nele, o autor pinta um Jesus que pede perdão não pelos pecados da humanidade, mas de Deus. Em inúmeras entrevistas, Saramago soa até como teólogo letrado nas escrituras sagradas e discursa sobre o impasse entre Caim e Abel, dizendo não entender por que Caim foi condenado a andar errante pelo mundo, com um sinal na testa que sinalizava a seus inimigos que ele era protegido por Deus após matar Abel. Ele mesmo, no entanto, admite que a inteligência humana é pouca para entender o que se passa na Bíblia. O escritor vai mais fundo quando diz que a Bíblia é cheia de violência, sangue e vingança, e que "Deus é má pessoa".
Quem me conhece sabe que amo Clarice e Saramago de paixão! Não me canso de ler as obras, ver entrevistas e saber o que outros têm a dizer a respeito deles, mas essa questão de Deus na vida dos dois me provoca um sorriso nos lábios. Clarice desistiu do judaísmo após a morte do pai e levou uma vida sem norte, de períodos intensos de alegria, tristeza, depressão e isolamento, sempre com suas dúvidas espirituais escondidas em suas alegorias. Saramago, por sua vez, afirmou e enfatizou que era ateu e que Deus era uma invenção do ser humano, porque "nós precisamos de um deus". É engraçado, porém, que todo livro de sua autoria que li até agora, e não foram poucos, ironiza a figura de Deus. O problema é que Saramago confunde Deus com religião e Clarice preferia que Deus fosse atrás dela ao invés de abrir-se para uma possível experiência espiritual. Se um duvidava e o outro era ateu, a literatura dos dois ocupou-se, quase primariamente, deste assunto. Duas vidas dedicadas a afirmarem o cara lá de cima na tentativa de negá-lo. Enquanto muita gente prefere banir os livros dos dois autores por conta do que acham falta de Deus, eu fico feliz em saber que, no fundo, Deus é o foco.
Agora que Saramago morreu, imagino que Clarice esteja sentada em frente a uma mesa redonda, com um cigarro na mão direita, relaxada ao lado de sua cadeira, com os olhos de gato perdidos em pensamento, observando José aproximar-se. Deus também está lá, oferecendo-lhe um sorriso e um café, à espera de uma conversa particular em que só mesmo Deus será capaz de responder as perguntas profundas que borbulharam na cabeça dos literatos durante décadas a fio. O que eu não daria para fazer parte dessa conversa...