REMINISCÊNCIAS
A música que compus e não cantei
A melodia que assoviei e não foi ouvida
Ao meu grito, oco, não deram atenção
Tudo no limite da minha existência
Foi no limite da minha existência, o meu limite.
Tenho dó dos que têm dó
Tenho respeito pelo adúltero
Tenho no meu egocentrismo a abrangência da coletividade
Sou egoisticamente universal.
A música que compus e não cantei
Era triste como a manhã em dia nublado
As pessoas não gostam de coisas tristes
Elas são nubladas e tristes como as despedidas.
O retrato falado não fala, denuncia
A vítima não reconhece o criminoso
Processa-se aquele mesmo
Para que não se perca a viagem
E o sistema cresce na diminuta expectativa de vida.
O ônibus das seis chega às nove
E tudo está dentro do normal
Diz a atendente educada
E perde seu emprego no corte de gastos.
E crianças famintas
Correm ao semáforo e limpam vidros
Dos carros que param loucos para partir.
A música que compus e não cantei
Ficou na memória que falhará um dia
E já não saberei quem sou ou o que fui
E de posse só do meu físico
Fraco e alquebrado pelo tempo
Darei caminhadas lentas e demoradas
E cambaleantes como as do bebê que cresce.
A melodia que assoviei e não foi ouvida
Ecoou ao vento e roupas no varal secaram.
Meu grito oco não chamou atenção
E eu fiquei só na multidão
Concentrada em seguir à frente
E o poste
Já próximo e rígido como os corações
Inabaláveis dos senhores dos escravos modernos
Nada fazem porque não fazem nada.
E cá estamos hoje como ontem
E provavelmente amanhã.