O Grito
Mais uma vez me desespero sem ninguém saber. Mais uma vez grito tão alto a ponto de fazer estremecer as tumbas dos faraós mais antigos no mais distante e remoto deserto egípcio.
Mas esse grito é inaudível aos ouvidos humanos, é um grito de alma que só quem tem uma alma gritante consegue ouvir, ou sentir. Tenho vontade de tirar minha alma despedaçada de dentro de mim e joga-la ao ar como fogos de artifício, fazendo-a atingir a maior altura possível e ouvindo-a dar seu rugido (afinal, nem eu consegui domar minha própria alma, ela ruge porque é felina, porque não pertence a ninguém, porque é autônoma) final mais atordoante e ao mesmo tempo mais libertino. Só que serão fogos sem cores. Minha alma se acinzentou de uns tempos pra cá. Eu me acinzentei. O mundo ao meu redor perdeu as cores que eu tanto adorava apreciar diariamente, as folhas e flores que vejo já não formam a imagem colorida que formavam antes diante dos meus olhos, são mais como borrões de cores escuras sem a definição de uma cor só. Não sei o que me fez endurecer assim (ou o que fez as coisas endurecerem assim diante de minha vista já tão atordoada e tão perdida), não sei se foi o mundo em si, ou se foram os traumas familiares de minha adolescência perturbada, ou o meu esforço contínuo para não me tornar mais uma ovelha negra em meio a uma família já saturada dessas. Ou se foram os abortos ocorridos sequencialmente - físicos e emocionais.
Ou se foi a falta de uma companhia sequer. Não que eu não tivesse companhia na vida, muito pelo contrário, sempre fui cheia de amigos e amigas, namorados e namoradas, vizinhos, colegas de ônibus, de estudo, de trabalho.
Sempre adorei pessoas, de qualquer estatura, qualquer cor, qualquer etnia. Nunca gostei de saber nome, ou o sexo, ou fisionomia de ninguém, gostava de saber mesmo da alma, dos pensamentos, das vontades e ideologias. Sempre amei conhecer e tentar entender o ser humano (apesar de muitas vezes não entender nem a mim mesma – chego a conclusão que isso era uma forma de me reconfortar, esquecendo de mim, do que eu poderia encontrar se enfim chegasse a me entender, me compreender, me decifrar – coisa que ninguém jamais fez). Gostava de decodificar um olhar e saber das mil intenções que se estendia de forma camuflada por dentro dele, de pegar um gesto que fosse, e analisá-lo até o último detalhe que pudesse me revelar algo implícito. E apesar de tudo isso, o que me corrói, é a falta de companhia constante. Muitas pessoas passaram pela minha vida, e com certeza não foi à toa, mas não sei porque... nenhuma perdurou, nenhuma conseguiu ser forte o suficiente para me empurrar ladeira a cima ou corajosa o suficiente para me seguir ladeira a baixo [não pense que eu exigia demais pois não exigia, exigia apenas o básico, mas ninguém tinha -ou não queria me dar- o necessário que eu procurava, ninguém olhava o mundo e tentava entendê-lo com a mesma intensidade que eu – ou então, provavelmente esqueciam-se de se preocuparem com isso, deixando sempre para o dia posterior].
Estou tão sem ninguém que chego ao ponto de ficar sem mim. Grito mais uma vez, e toda minha força se esvai.
Essa noite (como inúmeras outras) gritei tanto, que não acordei com os pássaros cantarolando em seus ninhos aconchegantes, e sim os fiz acordar – ou morrer - comigo.