Onde está a coisa-em-si Kantiana??

O ambiente é a alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão própria, e essa expressão vem-lhe de fora. Cada coisa é a interseção de três linhas, e essas três linhas formam essa coisa: uma quantidade de matéria, o modo como interpretamos, e o ambiente em que está. Esta mesa, a que estou escrevendo, é um pedaço de madeira, é uma mesa, e é um móvel entre outros aqui neste quarto. A minha impressão desta mesa, se a quiser transcrever, terá que ser composta das noções de que ela é de madeira, de que eu chamo àquilo uma mesa e lhe atribuo certos usos e fins, e de que nela se refletem, nela se inserem, e a transformam, os objetos em cuja justaposição ela tem alma externa, o que lhe está posto em cima. E a própria cor que lhe foi dada, o desbotamento dessa cor, as nódoas e partidos que tem – tudo isso, repare-se, lhe veio de fora, e é issoque, mais que a sua essência de madeira, lhe dá a alma. E o íntimo dessa alma, que é o ser mesa, também lhe foi dado de fora, que é a personalidade.

Acho, pois, que não há erro humano, nem literário, em atribuir alma às coisas que chamamos inanimadas. Ser uma coisa é ser objeto de uma atribuição. Pode ser falso dizer que uma árvore sente, que um rio “corre”, que um poente é magoado ou o mar calmo(azul pelo céu que não tem) é sorridente (pelo sol que lhe está fora). Mas igual erro é atribuir beleza a qualquer coisa. Igual erro é atribuir cor, forma, porventura até ser, a qualquer coisa. Este mar é água salgada. Este poente é começar a faltar a luz do sol nesta latitude e longitude. Esta criança, que brinca diante de mim, é um amontoado intelectual de células – mais, é uma relojoaria de movimentos subatômicos, estranha conglomeração elétrica de milhões de sistemas solares em miniatura mínima.

Tudo vem de fora e a mesma alma humana não é porventura mais que o raio de sol que brilha e isola do chão onde jaz o monte de estrume que é o corpo.

Nestas considerações está porventura toda uma filosofia, para quem pudesse ter a força de tirar conclusões. Não a tenho eu, surgem-me atentos pensamentos vagos, de possibilidades lógicas, e tudo se me esbate numa visão de um raio de sol dourando estrume como palha escura umidamente amachucada, no chão quase negro ao pé de um muro de pedregulhos.

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 30/01/2009
Código do texto: T1412736
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.