CAPÍTULO 31 - É ASSIM QUE DEVE SER

No one knows what it's like

To be the bad man

To be the sad man

Behind blue eyes

(Behind blue eyes - Limp Bizkit)

Atiro o sutiã em seu rosto. Ele recua, instintivamente. O óleo, fervendo na panela espirra em seu braço esticado. Corro para socorrê-lo.

- Estica a porcaria desse braço!

- Já está esticado. - Diz ele, com uma doçura irritante.

- Estica mais! - Ordeno berrando, transtornada, pressionando seu punho com uma das mãos enquanto a outra abre a torneira da pia da cozinha, deixando a água lavar a pele atingida.

- Eu posso explicar. - Insiste ele, angustiado, sem se importar com a vermelhidão em seu antebraço que precede a bolha. Certamente precisará de cuidados. Berro, uma outra vez, sem olhar em seus olhos, que não quero ouvir o que ele tem a me dizer. Sua voz vacilante e impregnada de tristeza e culpa me dão um nó na garganta. - Se afasta de mim! - Resmungo quando sinto sua boca contra o topo de minha cabeça. Franzo a testa. Sinto o ponto falso. Dói. Merda. Não precisava ser assim. Por que me traiu? Por que não disse a verdade? - Eu não sabia como te dizer. Eu fiquei com medo de te magoar, de te perder ou de que vc pensasse que eu sou um psicopata que caça suas vítimas em boates.

- Não me diga!? - Zombo dele. - Vc??? Nunca!!! Patético. Pois é exatamente esta a impressão que tenho de vc! Quer saber de uma???

- Diz...- Engulo a vontade de sorrir quando o vejo abrir um sorriso amistoso. Eu preciso ser forte. Muito forte. Então, agarro-me à raiva e bem próxima ao seu rosto, aviso.

- NÃO FUNCIONOU!

- O que tá fazendo? - Pergunta-me ele, intrigado, uma das mãos em meu ombro enquanto derrubo, desastradamente, tudo o que vejo no armário acima da pia do banheiro. Fecho a porta. "Achei", digo num suspiro. Olho-me no espelho. Seu reflexo atrás de mim. Seus olhos brilham. A boca semiaberta deseja falar. De onde eu o conheço? Ele me parece tão nobre. Um daqueles personagens saídos diretamente dos livros de Jane Austen. "Mr. Darcy"? Não. Ele é o meu Heathcliff. Não seja fraca. Não agora. Acorda. Ele vai tentar te ludibriar. Tem razão. Sempre tenho. - Giulia! - Outra vez, seus dedos estalam diante de meus olhos vidrados nele. - Fala comigo. Eu posso explicar. Me deixa explicar.

- Não tem explicação! - Retruco, raivosa, enquanto passo, delicadamente sobre a bolha em seu braço, que surge num repente, uma pomada milagrosa que cessa a ardência num piscar de olhos. - Meus tios usavam isso em mim. Parava de arder e não deixava a bolha evoluir. - "Milagrosa" era assim que meu tio a apelidara. Milagrosa - Repito, nostálgica, olhos baixos. Esquecendo-me por segundos da vergonha que sinto e sorrio ao me recordar do quão doce era minha tia ao cuidar de mim. - Pronto. - Inspiro, soltando o ar pela boca. Volto ao presente onde me sinto absurdamente enganada e usada. Usada não. Pior! Ridicularizada. Recuo dois passos e o encaro com os olhos marejados, a voz embargada na garganta. Não quero perdê-lo. Mas vai. Não. Por favor, não. - Vc sabia de tudo, Carlos. Vc me seguiu durante todo aquele tempo. Que tipo de homem é vc? Quem é vc, Carlos? Até quando levaria esta farsa adiante? Qual a graça em me ver sofrer por querer esconder algo que vc sabia que eu não sabia que vc sabia? - Sua cabeça se inclina para o lado e ele me lança aquele maldito olhar de compaixão misturado à inocência. Isso mexe comigo. - Sai da minha frente. - Rosno, empurrando-o para o lado. - VC CONSEGUIU DESTRUIR A MINHA BAIXA AUTOESTIMA! - Antes de bater a porta do quarto onde me tranco, digo, chorando. - Parabéns.

- Não faz isso agora. - Implora ele contra a porta. - Não agora. Não agora que eu te reencontrei. - Reencontrou. Lá vem ele com esse papo doido. - Eu fui até lá por acaso. - Ele dá uma pausa quando escuta minha risada histericamente sarcástica ecoar pelo quarto trancado. Então, continua. - Juro. Eu voltava da cantina quando um colega me mostrou sua foto na vitrine da boate. Achei bacana o nome "Tiffany-Twisted". "É da música 'Hotel California'", penso ao mesmo tempo em que ele comenta. Sorrio, ainda chorando. Sua voz vai mudando aos poucos como quem conta um sonho bom e se detém na melhor parte. Eu quero tanto acreditar nele. Quero tanto ficar aqui e me esquecer de que ele sabia de tudo desde o início e brincou comigo durante todo esse tempo. - Eu não brinquei. Eu só não quis tocar no assunto. Vc se magoaria, Giulia!

- Fale com a porta. - Ele solta um palavrão e, após um longo suspiro, recomeça a se explicar.

- O cara que trabalha comigo frequenta aquela casa. Ele já te viu dançar. Ficou impressionado, apesar de decepcionado. - Arregalo os olhos, inflando as narinas. Decepcionado com o quê? Quem é ele para julgar a minha dança??? Talvez ele estivesse julgando seu corpo, meu bem. As celulites. Celulites!? Não. Não mesmo. EU NÃO TENHO CELULITES! - Giulia! Me ouve! - Ordena ele como se soubesse que a voz retornara. Talvez saiba. - Ele me disse que vc era a única a não ficar nua. - Arquejo surpresa, levando a mão à boca. Yesss!!! Eu sabia que essa ideia daria certo. Instigar é melhor do que mostrar.

- Giulia!

- Fala!

- Então...eu achei estranho, porém, permaneci ali, parado, olhando pra vc. Sua fisionomia era idêntica à dela. O cabelo, os olhos grandes e tristes. A boca carnuda, sensual. Um jeito de criança. "Por que será que ela não tira a roupa?", perguntei a mim mesmo. - Amo o jeito como ele solta um risinho inocente entre uma frase e outra. - Uma stripper que não fica nua?! Vergonha de tirar a roupa? "Impossível!", eu disse ao meu amigo e, enquanto ele falava pelos cotovelos sobre as outras meninas, eu quase não o ouvia porque não conseguia tirar meus olhos de vc, amor. Tão linda. Tão triste. De asas e botas de cano alto, prateadas. Um anjo. - Recostada à porta, as mãos espalmadas na madeira, sinto verdade em suas palavras. - Eu tô falando a verdade, Giulia. - Protesta ele tão próximo a mim que posso sentir os batimentos de seu coração. Não é engraçado que a vida tenha unido duas pessoas com peculiaridades tão interessantes quanto a de vcs? Um ouve o que os outros pensam. A outra, sente. Que romântico. Não é hora de vc aparecer. Acabou. Estragou tudo. Por que vc fez isso? O que ganha com isso? Vc me separou do homem que amo. Ainda não, meu bem. Ainda não. - Giulia me ouve. Não dê ouvidos à voz.

- Continue. - Suplico com a voz entrecortada por soluços. - Vc costumava frequentar o "California"?

- Não, amor. Somente na noite em que te vi pela primeira vez. Vi sua foto. Meu amigo percebendo meu interesse por vc, me convidou a entrar. Subimos a escadaria forrada por um tapete vermelho. Graças ao som alto que vinha lá de dentro, eu não conseguia ouvir os pensamentos de quem quer que fosse. Sequer os do meu amigo que logo se afastou de mim e procurou por uma das garotas que serviam bebidas aos clientes. Havia muitas mesas. A casa estava cheia naquela noite. "Vc veio assistir 'Sweet Jane'?, a garçonete seminua me perguntou. Sem olhar para ela, perguntei se a moça com asas de anjo iria se apresentar naquela noite. "Tiffany-Twisted!?", ela me perguntou abrindo um sorriso orgulhoso. Assenti, ansioso, enquanto ela me oferecia uma garrafa de cerveja. Piscando, ela me respondeu: "Espera mais um pouco, bonitão. Vc não vai se arrepender. Ela é um espetáculo!"

- Jura que ela disso isso? - Grudada à porta feito lagartixa, abrira meu melhor sorriso. - Só pode ter sido a "Palm Springs" - Exclamo, quase eufórica. - Seu nome real é Palmirinha, mas ela odeeeeia esse nome. E com razão. Então, nós a chamamos de "Palm Springs". Um amorzinho. Ela adora dançar. Eu ensino a ela alguns passos e ela, agradecida, afasta do palco os caras mais abusados. Ai, ai...- Dou uma pausa, esquecendo-me, por segundos, de que estou discutindo com ele. A pausa termina. Eu prossigo. - A "Springs" é a única que entende que estou ali pra ser vista por alguém. Alguém que saiba que eu sei dançar e que, talvez, um dia, me tire dali e me leve ao palco da Broadway. Pode ser do "Municipal" também. Sem problemas. - Por que estamos conversando como grandes amigos, cada um de um lado da porta? Por que vc não acaba com essa baboseira e vai embora daqui? Ele mente. Não mente. Eu sinto. Vc sabe que sinto quando mentem pra mim. VC MENTE PRA MIM, sua voz maldita. Me deixa em paz. Preciso pensar no que ele tá falando...

- Giulia, me ouve! Vc dança, amor. Dança com perfeição. - Sua mão move o trinco. - Me deixa entrar. Preciso te abraçar e te contar a verdade olhando nos teus olhos. - Levo a mão ao trinco. Hesito. Não faça isso. Ele vai te enganar novamente. - Não vou, amor. Fica comigo. Ouça a minha voz. Somente a minha voz. - Solto o ar pela boca e aceito seus comandos. Isso é hipnose, sua burra. Não se entregue. VÁ PRO INFERNO! DEIXA ELE FALAR. - Vc é impressionante no palco. Não consegui tirar os olhos de vc; da forma como misturava os passos de Ballet à dança contemporânea dentro do ritmo da música. Ainda me lembro da canção, mas não sei seu nome.

- "Bleeding Love"... - Sussurro. É assim que eu me sinto. Sangrando amor. Nossa! Que dramático...e patético...e cafona. - Por que se escondeu de mim? Por que ficou lá no fundo? Eu te sentia presente. Eu te chamei e vc vc vc...sumiu.

- Não, Giulia. Eu fiquei lá, paralisado, encantado, fascinado por vc. Vc brilha no palco, amor. Vc nasceu pra dançar. Eu não conseguia ver nada além de seus olhos tristes, sua boca dublando a cantora. O jeito como se movia preenchendo os espaços vazios. Uau...- Murmura ele, parecendo embevecido. - Foi um espetáculo.

- Vc viu meus seios!!! - Acuso.

- Não. Sim. Digo...

- Viu ou não viu???

- Sim. - Admite ele, meio que atrapalhado. - Qual o problema!? Eu acabei de vê-los agora mesmo. Giulia, abre essa porta.

- Eu não costumo tirar o sutiã. - Explico, envergonhada. - Aquela noite foi uma exceção.

- Eu sei.

- Como sabe? Já esteve lá antes?

- Não, Giulia. - Conheço esse tom de voz. Ele está perdendo a paciência. Isso é bom. Não. Isso é ruim. - Eu só estive lá aquela noite. Por mais que eu saiba que vc ama a Dança, não me agrada em nada te ver exposta daquele jeito.

- Por que ficou com o meu sutiã?! - Cruzo os braços na altura dos seios como se estivesse nua. Estranhamente, o pudor toma conta de mim. - Por que me aceitou em casa sabendo que eu era uma qualquer?

- Porque vc não é uma qualquer! - Exclama ele, exaltado. - Não repita isso. Vc é uma bailarina fantástica. Uma mulher incrível. Há muita luz em vc, Giulia. Não se deixe apagar.

- Não desconversa. - Levo as mãos ao peito. O coração quer sair pela boca a cada palavra ouvida. Por San Juan Diego! Como eu quero esse homem! - Por que não jogou fora o meu sutiã? Por que após tanto tempo vc ainda o guardava?

- Porque era tudo o que eu tinha de vc. Vc o jogou. Eu o apanhei e, a partir de então, tudo mudou. Não havia dúvidas. Era vc. Tinha que ser vc. Foi quando decidi te esperar após os shows a fim de te proteger. Vc nunca percebeu o quanto chama a atenção dos homens, Giulia, e o perigo a que se submete a cada noite que sai dali. Eu não suportaria a ideia de te ver sofrer outra vez. Fiz o que fiz pra te proteger porque te amo. - Abro a boca. O queixo cai. Perplexa, indago.

- Como assim, Carlos??? Vc me perseguia??? Que coisa bizarra!!! - Afasto-me da porta, estalando os dedos das mãos. - Vc me dá medo, Carlos. - Afirmo, chorosa. Confusa, repito. - Vc me dá medo.

- Eu sei. Mas não precisa. Eu só quero o seu bem. Vou te proteger de todo o mal neste e no outro mundo. - Taquiupariu. Esse homem é doente. Vc só atrai homem louco. Que diabos de "outro mundo" é esse??? - Eu quero dizer que estou disposto a tudo por vc. Eu via como aquele merdinha do Fernando te tratava. Eu vi como vc...- Ele dá uma pausa. Afasto-me ainda mais da porta quando ele a soca por duas vezes seguidas. Sinto sua raiva. - Eu vi como ele te deixou lá nos fundos do restaurante após aquela...- Pow! Outro soco bem forte. Um "puta que pariu" bem dito e então continua. - Amor, vc precisa parar de confiar nas pessoas tão cegamente assim. Elas te machucam.

- Isso vale pra vc também? - Indago com a voz trêmula. Estou imóvel em frente à madeira que nos separa. - Devo desconfiar de vc também?

- Não, amor. Não precisa. Mas...vc tem o direito. Eu fiz tudo errado. Deveria ter falado com vc. Deveria ter me apresentado a vc quando fui ao quarto do hospital onde vc ficou internada, se recuperando...- Uma terceira pausa e a voz sai entredentes. - Dos estragos que aqueles miseráveis te fizeram. - Ele bufa, vigorosamente, voltando a falar. - Mas eu não tive coragem. Vc era linda demais. Forte demais. Triste demais. E eu não era nada. Nada além de um simples garçom que se apaixonou à primeira vista. O que eu poderia te dar? Eu vi o carro do Fernando, o terno que ele veste, a forma como vive. Eu vi como vc se veste, suas roupas caras. Conheci seu tio. - Interrompo-o com um curto grito, misto de alegria, espanto e tristeza.

- Vc conheceu o meu tio??? - A voz sai abafada quando levo as mãos à boca e digo lentamente. - Jesus...eu não acredito nisso.

- Conheci. Pouco, mas o conheci. Eu não mencionei isso em seu funeral? - "Não", respondo num fiapo de voz. - Um homem simples, de bom gosto e bom coração. Requintado. Sua tia, sempre muito bem vestida, elegante. - De boca aberta, permaneço ali, ouvindo-o estarrecida. Ele conheceu a minha tia. Como??? - Em uma das várias vezes em que ela foi até o restaurante. Eu vi a felicidade dele quando a reconhecia dentro do carro à sua espera. Eles eram a sua família, Giulia. Eu queria fazer parte de tudo, mas não poderia. Eu sabia que deveria aguardar um momento em que vc percebesse o quão tóxico Fernando era em sua vida. Graças a Deus, esse dia chegou. Continuei a te acompanhar a cada passo. Reparei em cada loja que vc entrava quando seguia em direção ao ponto de ônibus. O que comprava em cada uma delas. Pensei que jamais seria notado por vc.

- Minha tia...- Lamento, dando dois passos em direção à porta. - Sinto tanto a falta deles - Murmuro de olhos baixos. - Eu não tenho ninguém...

- Tem sim, Giulia. Tem sim. - Abro um sorriso de contentamento ouvindo-o repetir. - Tem sim, amor. Eu tô contigo. Sei que não sou e jamais serei ou ocuparei o lugar deles em seu coração, mas, vc não está sozinha nesse mundo. O pouco que tenho é teu.

- Carlos...- Digo num quase gemido. Sinto-me tocada no fundo do meu coração. Encostando a bochecha à porta, deixo minha baixa autoestima falar. - Eu não sou assim tão especial. Eu não tenho nada. Eu sou um nada. Não tenho nível superior, títulos, grana. Nada. Vc me superestima. Sou simples. Vc sabe. Vc já me conhece. Estamos aqui, juntos, há meses. - Acaricio a maçaneta como se o fizesse em sua mão. Embora saiba que ele está emocionado, há coisas que não fazem sentido. Logo, volto a questioná-lo. - Por que não me deu o sutiã no hospital? Por que vc o deu à enfermeira? Por que me deixou lá, sozinha? Se vc não tivesse feito isso, hoje, estaríamos juntos e felizes, longe daquele psicopata.

- Vc ainda gostava dele. - Defende-se ele, acusando-me. O tom áspero que sua voz assume eu desconheço. - Apesar de todo o mal que ele te fez, era por ele que vc chamava quando dormia. Como eu poderia competir com um cara desprezível, porém, rico?!

- Eu não chamava por ele, Carlos.- Aumento o tom de voz grave, cerrando meus punhos. - Eu tinha pesadelos e neles, eu o espantava pra longe de mim. Como alguém tão inteligente como vc pode ser tão burro? - Ouço seu risinho. Aquele em que ele se mostra encabulado. Aposto que suas bochechas estão vermelhas.

- Devem estar. Perdão. - Sua mão espalmada contra a porta se encaixa à minha. Estamos conectados. Eu sinto. - Eu deveria ter te esperado e dito tudo, mas, por medo de te perder, eu te perdi.

- Isso é lindo. Lindo e triste. - Cerro os olhos, concentrando-me.

- Não precisa se concentrar, Giulia. Eu falo a verdade.

- Fica quieto, droga. Preciso de silêncio. - Seus dedos se enroscam na maçaneta do outro lado. Ele sofre. - E para de ler meus pensamentos.

- Não posso evitar. Estamos muito próximos. Conectados. É assim que deve ser. Vc é minha. Eu sou seu. Vc não percebe? - Uma sensação de paz invade meu coração. É tão gostosa quanto uma caneca de cappuccino em uma manhã de inverno. - Prefiro café puro, mas, por vc, eu faço tudo. Vou anotar: comprar Cappuccino. - Com a mão livre, cubro a boca. Não quero que ele ouça meu riso. Preciso me manter distante, apesar de desejá-lo, mais do que nunca, ao meu lado. - Então abra a porta, Giulia. Não seja infantil. Abra a porta e vamos recomeçar do zero. Demorei muito pra te encontrar.

- Aff! - Bufo, revirando os olhos. - Isso é letra de música.

- "A vida imita a arte mais do que a arte imita a vida".

- Oscar Wilde. - Cuspo o nome do autor da frase instantaneamente. Volto no tempo quando Fernando e eu competíamos pela atenção de seus pais. Líamos todos os livros dos autores mais renomados a fim de impressioná-los. Ele sempre vencia porque escondia os melhores livros em seu quarto. Era injusto. Sempre fora injusto lidar com ele. De uma forma ou de outra, ele dava um jeito de burlar as regras e ganhar mais afeto de sua mãe. No entanto, eu era a preferida de seu pai, meu tio. Digo...meu pai também. Ah! Não importa. Sinto sua falta, tio.

- Giulia. - Sua voz serena e firme penetra as camadas da madeira até chegar aos meus ouvidos. Um leve arrepio percorre meu corpo quando ele, delicadamente ordena. - Abra a porta, Giulia. Abra a porta. - Meus olhos pesam. A mão vai girando a maçaneta em cerâmica com uma enorme rosa em seu centro. DESPERTA! Assusto-me comigo mesma. Não vê que isso é hipnose?! Esse cara não é normal. Fica longe dele. De perto, ninguém é normal. E, por falar nisso, fique longe de mim. Essa conversa não te interessa. Ele me ama e eu o amo e isso é tudo o que importa. Sério??? Isso é tudo o que importa??? Mostre a ele o que vc realmente está sentindo. Seja direta. Se ele reagir da forma esperada, eu lavo minhas mãos e não falo mais. - Giulia, para de falar com essa voz. Não deixa que ela te domine. Vc é a dona de seu corpo e mente. Abra a porta, amor. Abra. Por favor.

- Carlos.

- Diga.

- Uma coisa não faz sentido. - Ouço o baque seco de sua cabeça contra a parede. Ao menos, creio que seja a sua cabeça. Ele está desanimado, indeciso, confuso. Por quê? - Se me ama como diz amar, por que durante esse tempo em que moro aqui vc não me tirou de lá? Não é um trabalho convencional. Eu fico seminua diante de babacas que colocam gorjetas nas laterais da minha calcinha. Não sentiu ciúmes? Não pensou em me tirar de lá, à força? - Num solavanco, giro a maçaneta, escancarando a porta. De pé, diante de mim, ele se posiciona como um lord inglês. A luz fraca da lâmpada do banheiro incide sobre seus olhos claros que incidem sobre os meus. Sua expressão de constrangimento me rasga por dentro. Ele sabe que errou. Ele sabe que eu sei que ele errou. Seu olhar súplice acaba comigo. Seu silêncio dói mais do que o cinto afivelado com o qual meu pai me surrara no dia em que Fernando tirara minha virgindade. Por que dói tanto? Porque mostra quem ele é. Um covarde. Um aproveitador e, quiçá, um psicopata. Para. Para. Para. Não vou te ouvir. Faz a dor parar. Por favor. Como? - Fala alguma, Carlos. Fala.

- Giulia...

- Não encosta em mim. - Interrompo-o bruscamente quando jogo meu corpo contra o dele, tirando-o do meu caminho. De súbito, sou puxada para trás.

- Eu posso explicar? - Diz ele, na defensiva, agarrando a alça de minha mochila com uma das mãos enquanto a outra toca em meu queixo. Estou entre seus braços esticados, apoiados na parede do corredor. Toco em seu peito, involuntariamente. Há muita dor dentro dele. Por que não diz a verdade? - Vc não pode sair assim sem que eu te explique tudo. Não é tão simples quanto vc pensa. Vc jamais mencionou que gostaria de largar esse emprego. Ao contrário. Sempre que tocávamos no assunto, vc mudava de conversa. Escuta. - Sua boca está a um centímetro da minha. Que desperdício. - Vc não pode ir embora.

- Não só posso, como vou! - Afronto-o, passando, rápida como um relâmpago, por debaixo de seus braços. De camisola, abro, abruptamente meu guarda-roupas e só penso em pegar a primeira peça que vejo. Cubro-me com seu blusão. Ainda me lembro da noite em que ele me dera a roupa por ter me visto arrepiada. Porra. Por que eu não posso ser feliz? - Não há explicação. É por isso que demorou tanto a responder.

- Eu acabei de responder, Giulia! - Grita ele a alguns passos de mim.

- Vc não entendeu nada! - Replico num grito. - Eu não queria que vc me visse triste. Só isso! - Ajusto as alças da mochila em meus ombros, procurando por meus óculos na estante da sala. Como posso enxergar meus óculos se estou sem eles? - Só isso. - Repito. - Eu não gosto daquela espelunca, embora ame algumas pessoas de lá. - Acho os óculos. Estão velhos demais. Guardo-os na lateral da mochila. Baixo os olhos. Vejo seus pés juntos aos meus. Sinto saudades. Ergo a cabeça e, desorientada, acuso-o. - Vc poderia ter feito alguma coisa, Carlos! Vc lê mentes. Como não escutou o que eu cansei de pensar? Vc sabia que eu queria contar tudo pra vc e não fez nada. - Retruco enquanto caminho em direção à porta da sala de estar. Um último olhar para a cadeira em madeira, na varanda, onde, há pouco, estávamos sentados, agarrados, entregues um ao outro. Isso me faz engolir o choro, embargando minha voz quando declaro, dolorosamente. - Eu fui feliz aqui, Carlos. - Procuro por seus olhos e encontro culpa, receio e...

- Amor. Vc encontra amor em meus olhos. Sempre foi amor, Giulia. - Suas mãos se entrelaçam às minhas. Seu cabelo molhado, as sobrancelhas franzidas. Ponho os óculos. Enxergo uma expressão de temor e seriedade em seu rosto perfeito. Há tanta dignidade em seu semblante. De onde eu o conheço? Por Baco. Por que sinto que esta não é a primeira vez em que brigamos? - Porque não é, Giulia. - Insiste ele, num desespero. - Eu te procuro há muito tempo. Não vou te deixar partir por algo que eu deixei de fazer. Eu até tentei! Pensei em te pedir para largar a boate, mas vc precisa assumir que gosta do dinheiro que ganha em gorjetas. Não se faça de inocente. Vc gosta de ter dinheiro. Vc gosta de ganhar as gorjetas que possivelmente são maiores do que o seu salário. Vc jamais pensou em largar tudo e recomeçar de novo, como uma recepcionista, vendedora ou faxineira, por exemplo. - Inconscientemente faço uma careta. Bosta. - Viu? Vc não admite a possibilidade de largar a boate e a grana que consegue dançando e se despindo. Assuma, Giulia. Assuma. - Num repente, agarro-o pela gola de seu moletom, experimentando uma raiva gigantesca. Dele? De mim? Não sei. Ele foi longe demais. Ele enxergou a verdade e eu o odeio por isso. - Giulia, não há nada de errado em gostar de dinheiro. Apenas assuma que nada do que eu dissesse a faria desistir de trabalhar lá. Só isso. Assuma, amor.

- NÃO ME CHAMA DE AMOR. - Descontrolo-me engolindo água da chuva que parece se divertir, castigando-nos com seus pingos grossos. - Eu te odeio.

- Eu te amo. - Declara-se ele, apertando minhas bochechas entre suas mãos grandes e geladas. - Volta pra casa e vamos conversar. Por favor.

- Cacete! - Afasto-me dele sem enxergar um palmo à minha frente. Retiro os óculos molhados e, sentindo um aperto no peito, protesto gesticulando como louca. - Pois eu te odeio! Odeio! - Reconheço que ele tem razão. Eu não quero largar o "California". Não posso e não quero. Onde eu ganharia tanta grana como ganho lá?

- Eu já sabia disso! - Ele ergue o braço, apontando o dedo para mim, num tom de acusação. Um saco essa coisa de ler mentes dos outros. - Vc reconhece que eu não teria chances, Giulia. Vc não tem pra onde ir. Pelo amor de Deus, fica! - Fixo meus olhos em seus tórax, a camisa ensopada, seus músculos se definindo aos poucos. Seu beijo quente, suas mãos em meu corpo, em meus seios. INFERNO!

- Quem ama uma mulher e a deixa trabalhar num lugar daqueles, Carlos!? Se me amasse, sentiria ciúmes. Se sentisse ciúmes, na primeira noite em que voltei do "California" e jantamos juntos, vc já teria tocado no assunto e eu não precisaria sofrer como sofri, pensando em não te magoar. Vc não me ama, Carlos. Vc é como os outros. Como Fernando. - Transtornado, ele cruza as mãos na nuca, eleva o queixo e permite que a água da chuva lave seu rosto. Fica nesta posição por segundos antes de explodir.

- Jamais! - Rosna ele. - Jamais me compare àquele verme outra vez.

- Jamais me ameace outra vez. - Aviso, com o dedo em riste. - Aquele verme nunca escondeu seus sentimentos. Nunca deixou de falar o que sentia ainda que fosse podre, nojento, asqueroso! Ao contrário de vc, Carlos. Se não fosse por sua covardia...- Engulo em seco andando de um lado ao outro em frente ao portão principal, procurando ser forte o suficiente para deixar a casa que pensei ser minha. Que merda! - Se não fosse por sua covardia...- Giro, dramaticamente, em sua direção e, inflando as narinas, eu o encaro. - Nós poderíamos estar na cama agora, juntinhos, sequinhos, felizes, pensando em nosso futuro! Eu te odeio, Carlos! Eu te odeio por ter me feito acreditar que a felicidade existe! E por favor! Para de falar que me encontrou porque eu nunca me perdi de vc, meu bem!

- O que eu posso fazer pra não te perder!? - Deus. Como dói ouvi-lo implorar assim. Este seria o momento em que a mocinha se volta para o seu amor e se joga em seus braços, beijando-o ardosamente. MAS NÃO SOU A PORRA DE UMA MOCINHA. EU SOU A PUTA DA BOATE. A PUTA QUE NÃO TIRA A ROUPA. - Giulia! Me diz! O que eu faço, amor!?

- Nada. - Digo chorando e correndo em direção à rua. Empurro o portão que se abre ao meio. Cerro os olhos a fim de ver o que são as duas luzes que piscam para mim logo adiante. Faróis. - Não faz nada. Acabou. - Corro sem enxergar nada à minha frente além da luz amarelada. Sem olhar para trás, repito baixinho. - Acabou.

- GIULIA! - Grita ele, mexendo os braços esticados como um guarda de trânsito na hora do "rush". - VOLTA! ISSO É UMA CILADA!

- CILADA FOI EU TER ME APAIXONADO POR VC, CANALHA! - Berro com a metade de meu corpo para fora da janela do táxi que, estranhamente, aparecera sem ser chamado. - Por que fez isso, Carlos? - Pergunto a mim mesma, voltando ao assento do banco traseiro, ensopada e arrasada.

"Cuidado! Eles vão te sugar se vc permitir. Sai do carro. Sai do carro, Giulia!"

Ouço sua voz nítida, pausada e atordoada ribombando em minha mente. Não sei como ele faz isso, mas é perfeito. Do que ele tá falando? Cilada? Sugar? Telefone para quê, não é meu bem, se vc tem...ou melhor, tinha um telepata todo seu. Vá pro inferno. Não posso. Não agora. O que vc ganha me afastando dele? Eu não te entendo. Há pouco, queria me jogar em cima dele. Agora, festeja nossa separação. O que vc quer? Quem é vc? Ora bolas. Eu sou vc, meu bem. Eu sou sua versão mais inteligente. Sacou?

- A palavra 'remédios' te lembra alguma coisa? - O motorista me olha com estranheza, pelo retrovisor. Sorrio, balançando a cabeça. - Eu esqueci meus remédios em casa. - Minto, assoando o nariz, ruidosamente, em um lenço com as iniciais de Carlos. Esqueça-o. "Remédios", repito, ameaçadoramente. Não brinca comigo. Não estou brincando. Não me irrite mais ou eu vou tomar a porra do remédio e vc vai ser obrigada a calar a porcaria de sua boquinha pra sempre, sacou? Ok. - Por que eu não posso ser feliz? - Divago. Meu hálito embaça o vidro da janela. Com o indicador, desenho um coração partido. Dê ao motorista o endereço de Doc. Ele está te esperando, abestada. Obedeço à voz sem tirar meus olhos devastados pelas lágrimas do portão. Eufórica, arquejo ao vê-lo correr em minha direção. O carro dá a partida. Destravo a tranca da porta, decidida a desistir de fugir e ficar sem ele. - Pare o carro. - Ordeno sem ser obedecida. Abro a porta com o táxi em movimento. Penso em pular. Conto até dois. No três, sinto sua mão gelada agarrando-me pelo braço. Desisto. Arrepio-me dos pés à cabeça enquanto giro, lentamente, meu pescoço. Meus olhos estatelados se fixam no espelho acima da cabeça do motorista. Eu a vejo. Empalideço enquanto o calor do meu corpo é absurdamente roubado de mim. Fria como um cadáver, mal ouço o que digo quando nossos olhos se encontram. - Vô vô você?!

- Meu filho precisa de sua ajuda, querida. Seja uma boa menina e me obedeça. - Levo as mãos à boca, contendo a ânsia de vômito. Regurgito enquanto a vejo sorrir. Os ossos da arcada dentária e sua gengiva esbranquiçada expostos através de um rombo em sua bochecha descarnada. Bichinhos minúsculos saindo de seu nariz ainda afilado, os olhos cheios de ódio saltando das órbitas, os cabelos desgrenhados. Nada mais resta dela, além da voz sempre doce e impregnada de melancolia. A voz de quem pratica, com maestria, a chantagem emocional. Sempre fora assim em vida, por que mudaria agora que ela está morta? - Não chora, meu bem. - Afasto-me de seu dedo em forma de gancho enquanto ela arqueia a sobrancelha ameaçadoramente. - Não chora. Vamos para casa. Lá é o seu lar. Sempre foi e sempre será. - Baixo os olhos, sem forças para reagir.

- Por que ainda anda pela Terra, tia? Por que não descansou? - Sua mão cadavérica solta meu braço. Inspiro profundamente, soltando o ar pela boca. Tentando regular meus batimentos cardíacos, faço a pergunta cuja resposta não desejo conhecer. - De onde a senhora veio, tia? - Ela se aproxima ainda mais, então sinto seu odor fétido de carne em decomposição. Uma nova ânsia de vômito e ela cochicha em meu ouvido, abrindo um sorriso macabro.

- Lá de baixo.

*****

Chego a casa tremendo de frio. Não somente pela chuva que encharcara as minhas roupas e cabelo. A casa está fria, cheirando a mofo. Ouço o uivo do ar congelante que circula entre os cômodos de maneira assustadora. No chão, roupas espalhadas. Blusas e calças de grife, provavelmente de Fernando, porco, egocêntrico e preguiçoso. Na mesinha do centro, garrafas de uísque, pela metade. Um forte calafrio me sacode toda quando os percebo ao meu redor.

"A cada um segundo suas obras", ensinara-me meu tio que, apesar de não pertencer a religião alguma, amava as parábolas de Jesus e Sua maneira de se expressar diante da multidão que O acompanhara e que não hesitara em pregá-Lo na cruz. Acima da minha cabeça, desconcertantemente torta, quase de ponta cabeça, grudada à parede, a Cruz de Cristo em madeira, vinda da Itália, benta pelo próprio Papa. Junto às garrafas, seres esqueléticos, rostos patibulares, trajes esfarrapados, olhos raivosos, amedrontados, ávidos pelo que restara de álcool que, certamente, Fernando ingeriu antes de cair, imundo, em uma das camas da casa. "O que eu estou fazendo aqui, tia?", penso. Não ouço sua resposta. É triste perceber o desespero dos espectros na inútil tentativa em sugar o líquido de dentro das garrafas. "A cada um segundo suas obras", repito em pensamento. A Morte não nos torna santos de um dia para o outro.

- A senhora não vem!? - Girando nos calcanhares, eu a vejo no portão da garagem, encolhida como uma criança que levara uma bronca do pai por ter feito algo de errado. De que ela tem medo? - Vai ficar aí!? - Insisto. - Por que me trouxe até aqui, tia!?

"Não posso entrar. Siga sem mim".

Sua voz atinge meu cérebro como flecha incandescente, explodindo em meus ouvidos. Não é suave como a voz de Carlos que ouço tranquilamente. É como um trovão inteligível. "Salve meu filho!", ordena ela, rancorosa.

- Puta merda. - Resmungo ao passar pelo 'corredor polonês' de mortos. Recitando a oração que Carlos me ensinara ao me dar a medalinha de São Bento que não tiro do meu pescoço, vou me esquivando de suas mãos decompostas, nojentas, pegajosas. Argh! - Não se atreva a tocar em mim. - Rosno para um deles cujos olhos ainda guardam o brilho maligno da luxúria de uma vida desregrada aqui na Terra. Como se vc pudesse julgá-lo. Eu não o estou julgando. Estou me defendendo. Vc pode me ajudar, calada? Chego ao corredor que me leva aos quartos onde brincávamos, ainda crianças, Fernando e eu, fugindo da tia porque não queríamos tomar banho. Nossas risadas eufóricas e inocentes reverberam entre as paredes. Nossas mãos se entrelaçavam enquanto nossas roupas varriam o chão de madeira. A tia nos puxando pelos pés. Seu olhar era repleto de ternura ao afirmar, cheio de dúvidas: "Amigos para sempre?" - Amigos para sempre. - Respondo-o mecanicamente, sentindo o coração disparar. À medida em que me aproximo de seu quarto, como em um filme de horror, o corredor se alonga, meus braços se esticam enquanto tento me agarrar a algo que me impeça de ceder à força sobre-humana que me puxa para trás. Agarro-me ao batente da porta do quarto de meu tio. A porta está aberta como se ele estivesse à minha espera. Tonta, percebo que sua cama está intacta, embora seu espaço já não esteja vazio. Seres do 'Outro Lado' ocuparam o lugar onde meu tio exalara o último suspiro. Não há vestígios dele aqui. E nem poderia. Por quê? Porque ele era bom, querida. Pessoas com o coração de seu tio, ou melhor, meu tio não costumam frequentar lugares esquecidos e mergulhados na Escuridão como esta casa. Em pensar que nos divertíamos tanto aqui...- Vc não é tão ruim assim. Tem sentimentos. - Ora! Se vc os têm, eu também os tenho. Afinal, eu sou vc. Melhor calar a boca porque essa eu não engulo mais. Ainda vou descobrir quem vc é, de fato. Tola. Estamos chegando. Apure sua visão e olfato. - Tô com medo. Não consigo sair do lugar. - Cautelosamente, estou de volta ao corredor. Desde quando vc tem medo de assombração??? Desde que uma delas tentou me estuprar? Por Baco! Vamos! Força! De súbito, o que me puxava para trás, empurra-me para dentro do quarto escuro de Fernando. Meus pés escorregam em algo viscoso. Sinto meu corpo suspenso no ar. A cabeça vai para trás; os pés, para cima. Caio de costas sobre a superfície úmida. Arrependo-me, tardiamente, de ter deixado a mochila na sala. Puxando o ar pela boca, emito um gemido de dor e asco. - Que nojo! - Resmungo sentada no vômito de Fernando, aquele cachaceiro patético. O cheiro de uísque misturado à pouca comida que ele ingeriu me faz vomitar. Fantástico! Perfeito! Não dava para vc se segurar??? - Parece que não! - Levanto-me irada à procura de uma pia onde possa lavar, ao menos, as mãos e a boca azeda. Há tanta gente morta aqui que poderíamos cobrar ingressos do público lá fora: "Sejam bem vindos à casa dos horrores". - SAI! - Ordeno, absolutamente acostumada aos que perambulam de um lado ao outro sem que se oponham à minha presença. É um mundo paralelo onde transitamos - os vivos e os mortos - pelo mesmo espaço e somente nos chocamos quando oferecemos riscos aos objetivos deles. - Fernando! - Chamo por ele, revirando os olhos, lavando as mãos no lavabo próximo à cozinha. Que bosta. Não dá pra continuar fedendo desse jeito sem que eu volte a colocar tudo para fora. - Aqui deve ter alguma muda de roupa minha! - Exulto, louca para me livrar da calça jeans e camisão ensopados e, agora, fétidos. Corro ao quarto de meu tio. Abro seu armário. - Meu tio querido... - A voz sai embargada. No único cabide, pendurado, encontro um pijama de listras azuis, seu predileto. Vc não vai... - Já fui. - Dou de ombros a mim mesma, despojando-me da roupa com a qual saíra da casa de Carlos e me aconchego ao pijama do homem que mais amei nesta vida. Olho-me no espelho de seu guarda-roupas. De imediato, ouço seu riso, sua voz fraca a me chamar a fim de trocar sua fralda. Sinto seu cheirinho de talco de bebê. Todas as impressões que ele deixara no pijama chegam, esmagadoramente, ao meu cérebro, machucando meu coração cheio de saudades. Pronto. Estou limpa novamente. Pronta para sei lá o quê. Ignorando meus instintos que gritam para que eu saia da casa, sigo em direção ao quarto de Fernando. Penso em limpar a poça de vômito. Recuo ao ouvir, aqui dentro, em minha mente confusa, a voz da tia que me ordena a procurar por ele. - Tá escuro aqui. - Retruco, aborrecida. De olhos cerrados consigo perceber que não estou sozinha. Digo. Além dos espíritos inofensivos, há algo de mais sombrio entre as quatro paredes. Os vampiros estão presente. Isso não é um bom sinal. Minhas mãos estão suando frio quando tateio a parede à cata do interruptor.

"Ele é nosso", uma voz feminina e rouca cochicha em meu ouvido. Surge e some, célere como a chama de um fósforo riscado. Os pelos de minha nuca se eriçam. A velha e conhecida ardência na base da coluna vem com tudo, indicando a presença do mal e de seu sórdidos objetivos. Não dou atenção à voz. Lentamente, percorro com os olhos bem abertos o cômodo. O que vejo é estarrecedor. Em todos esses anos com essa bendita maldição de ver e ouvir o que poucos ouvem e sentem, jamais presenciara um número tão grande de espíritos perdidos por metro quadrado. O que eles estariam fazendo aqui? Esperando por algo? Alguém? Para de se perguntar e vá até o banheiro. Não estou gostando disso. E vc acha que eu estou??? Por San Juan Diego!!! Que espécie de ser é aquele? Qual? O que veda a passagem ao banheiro. Ele chega a superar o tamanho de Doc!!! O de capuz e manto negros, olhos avermelhados? Sim! Eu não vou até lá não. E quem vai? Eu??? Ora bolas! Já viemos até aqui. É preciso ir até o fim. Não quero. Tenho medo. Eu também, mas, algo me diz que exatamente ali que se esconde o problema. Não viemos aqui à toa, não é? - Vc tá certa. - Sempre estou. Inspirando profundamente, encho-me de coragem e continuo a caminhar lentamente até chegar bem perto do que parece ser um mago misturado a um gorila. O que emana dele é absolutamente amedrontador. Com a mão na medalha benta, repito a famosa oração: "Crux Sacra Sit Mih Lux. Non Draco Sit Mih Dux". Paro diante dele que abana a cabeça, emitindo um grunhido que presumo ser uma risadinha.

- Humanos. - Diz ele, sarcástico, enquanto vou repetindo a oração com a voz trêmula e vacilante. - Invocar a Cruz do Cordeiro não vai funcionar. - Levo a mão à garganta porque juro que meu coração está querendo sair pela boca. Não deixe que ele fale assim com vc. Eu não sei o que fazer! Nunca estive diante de um desses antes! Ele é mais forte do que os outros. Não podemos ir embora. Não agora que já estamos aqui. E o que há de tão importante aqui que me faz encarar esse monstro sem rosto??? Eu não sei rezar nada além disso. Pois vá se lembrando das aulas de Catecismo e arranque-o de nossa frente. Faça isso vc já que é tão impetuosa! REAJA! Feche os olhos e ouça com atenção! O quê??? Faça isso agora!!! Por medo, raiva e indecisão, eu obedeço à minha voz. Ouço um fraco gemido penetrando meus ouvidos, chegando ao meu cérebro. Reconheço a voz. É a de Fernando. De olhos arregalados, vejo-o pelas frestas entre o batente da porta e o tronco da montanha imóvel de ódio e maldade guardando-o como se guarda um prisioneiro. - É-é isso! Eles querem levar alguma coisa dele. Fernando está em perigo! - Aimeudeus. Não me diga. Quanta sabedoria. Não seja irônica! Tô tentando pensar. NÃO TENTE. AJA! Vá pro inferno. Não preciso. O inferno está tooodo aqui, meu bem. - Ai, Jesus! Não me lembro de nenhuma oração. - Lamento meio que desajeitada. De braços cruzados, o brutamontes permanece impassível. Sentindo-me uma perfeita idiota, continuo a monologar com o "mago macaco". - Mas guardo comigo a lembrança dos ensinamentos de um homem que muito amei aqui na Terra. Ele me disse que quando eu estivesse com medo, imaginasse o rosto de Jesus e pedisse a Ele que me ajudasse. - Cerro os olhos e recordo-me da imagem do ator que interpretara Cristo em um filme que assistira junto aos meus tios. Àquela época, meu tio ria do quanto eu chorava ao ver o filho de Deus ser açoitado, maltratado, arrastado até o monte onde fora crucificado. Lembro-me, igualmente, de Seu sorriso ao terminar, ainda como carpinteiro, uma mesa em madeira e se imaginar sentando em uma cadeira quando todos, naquela época, sentavam-se no chão. Fora uma das cenas mais encantadoras do filme. Logo, escolho essa imagem e a mantenho viva em minha tela mental. O monstro se movimenta, demonstrando sinais de desconforto. Yess! Tá funcionando. Desde quando vc se tornou uma mulher temente ao Todo Poderoso? Vc não reza há séculos. Quer que eu termine com isso!? O que acha? Então cala a boca e me ajuda. Decidida a tirá-lo do meu caminho, prossigo. - Jesus, se estiver me ouvindo...- Peço, aflita, sem abrir os olhos. Ouço o urro da besta à minha frente. Sinto seu cheiro. Cheiro de bicho sujo bem próximo a mim. O ar quente sai de suas narinas tocando em meu rosto. Abro os olhos no exato momento em que ele ergue, ameaçadoramente, os braços peludos, abrindo seu manto negro, como as asas de um imenso morcego. Encolho-me, aguardando pelo pior. Acuada, recostada à parede, vou escorregando até sentar-me no chão. A Escuridão me cobre. Meu corpo vai perdendo calor, força, coragem, esperança. Ele me toma tudo. "Eles sugam sua energia vital e podem te levar à morte". Carlos retorna à minha memória enquanto tento respirar perdida em mim mesma. Complete a oração. Não...consigo. Consegue. Fala. Fala. Tô tão cansada. CONTINUE! Se Jesus estiver me ouvindo...COMPLETA! Não...não tenho...COMPLETA! Seus braços me envolvem, drenando minha vontade de viver. Eu perdi. - Carlos...- Meu último pensamento é para ele.

Dizem que o Nada não existe. Estão errados. Estou mergulhando nele...agora.

- Ainda não, meu anjo. - Estendida no piso de madeira, puxo o ar pela boca com a angústia de um náufrago que chega à superfície do mar em fúria. Esse perfume. Eu conheço esse cheiro. - É claro que conhece! - Exclama a voz cheia de vitalidade e alegria. Abro meus olhos, voltando à consciência. Tento enxergá-lo, mas a luz do sol invadindo a janela ofusca minha visão. Não há luz do sol, abestada. É quase meia-noite. - Vc cismava em me polvilhar com talco como se eu fosse uma massa de pizza. Eu deixava. Afinal, havia tanto amor. - Sorrio, ainda sem nada enxergar. - Sempre houve tanto amor. - Sussurra ele, docemente, enquanto sua mão se enlaça à minha. Uma corrente elétrica faz o meu corpo formigar dos pés à cabeça. Meu coração se enche de júbilo. Jamais confundiria sua voz ou seu jeito meigo de sorrir com os olhos. Os olhos azuis da cor do céu. - Meu anjo, é hora de ajudar aquele tonto do meu filho. - Diz ele, ajoelhado ao meu lado, enxugando minhas lágrimas de saudade e de alegria. Não quero perdê-lo novamente. Não vou.

- Tio...- Parecendo entender o que estou sentindo, ele se levanta e me puxa pelo braço. De pé, eu o encaro com incredulidade. Eu o observo, admirando-o. - O senhor tá mais jovem. - Digo com a lerdeza de quem fuma um baseado. - Me leva contigo, tio.

- Ainda não. Temos um trabalho a fazer. - Afirma ele, apontando com o queixo, para a porta da suíte agora livre do monstro encapuzado. - Ele precisa de sua ajuda. Vá! Vá. Antes que seja tarde. - Antes mesmo de chegar a escancarar a porta, volto meus olhos para trás e, esperançosa, questiono. - O senhor não vem? - Seu sorriso se entristece. Ele faz que não com a cabeça. Pisca com um dos olhos e diz. - Laços de amor eterno nunca se desatam. - Percebendo o perigo de perdê-lo uma segunda vez, corro até ele. Estendo o braço. A mão deseja tocá-lo, no entanto, congelo diante de sua figura reluzente que vai desaparecendo, aos poucos, desmanchando-se como fumaça que sai do bico da chaleira. Primeiro os pés. Depois o tronco e, por fim, seu enorme e caloroso sorriso. Há um resquício de tristeza em seu último olhar. - Tio! Fica! - Grito, chorando feito criança perdida, a cabeça contra a parede, ao lado da porta do banheiro de onde escuto um murmúrio bizarro.

- Foi por vc, baby. Foi por vc...

- Misericórdia! - Berro ao ver o sangue pingando do corte profundo em seu pulso, o braço pendendo para fora da banheira, a água se esparramando pelo piso branco. - FERNANDO, ACORDA! - Atordoada, vou metendo as pernas na banheira e ajoelho-me entre as suas. Finjo não me importar com seu sangue manchando a água de um vermelho suave e nojento. - ESTÚPIDO! - Empolgo-me em tentar acordá-lo e acabo metendo-lhe um tapa no rosto tão frio quanto a cerâmica onde ele se encontra mergulhado, largado como se houvesse tomado todas. - Cazzo! Vc é o segundo homem por quem me molho hoje! Diabos! - Sacudo-o pelos ombros e não me lembro de senti-lo tão pesado quanto agora. Nem mesmo quando ele estava sobre seu corpo nu, na cama? CALA A PORRA DESSA BOCA E ME AJUDA! Já calei, meu bem. Já calei. - Abre os olhos, Fernando. Fala comigo! - Xingando, ergo-me, alucinada, e corro, absolutamente ensopada, de volta ao quarto. - Puta que pariu! - Dou de cara com um dos mortos que me olha aterrorizado. - Já não mandei todo mundo ir embora??? VAZA!!! - Irada, arranco o lençol da cama desfeita e o rasgo em pedaços como se fossem de papel. Retorno ao banheiro, enfaixo seu braço na altura do punho, improvisando um torniquete. Nos filmes, isso costuma dar certo. O sangue estanca. - Deu certo. - Digo, aliviada. Procuro pelo corte no outro braço. Nada. Gargalho, histericamente. - Burro! Nem se matar vc faz direito! Vc deveria ter cortado os dois pulsos, idiota. OS DOIS PULSOS! - Finco minhas mãos furiosas em seu cabelo, assim como ele gostava de fazer no meu quando me espancava. Isso dói, maldito! Dói?! - FERNANDO! ACORDA! - Outro grito. Outra tapa em seu rosto. Um sorriso se desenha em sua face pálida. Ele tenta, mas não consegue abrir os olhos. Sua pulsação está bem fraca. Quero enfiar a mão na cara dele por me fazer sofrer assim, no entanto, em meu coração só há compaixão e desespero. Impulsivamente, estapeio uma terceira vez seu rosto. Olho ao redor e percebo a plateia de espíritos. Agora entendo tudo. Eles o estão esperando. - SAIAM DAQUI! - Ordeno sentindo um ponto em minhas costas ardendo como se estivesse inflamado. Típico. É. Eles se aproximam e a dor vem. Sim. - Sumam daqui. - Rosno, ajoelhando-me ao lado da banheira onde Nando ainda se encontra entre este e o Outro Lado. Eles não me obedecem. E por que obedeceriam? Vc não é santa. E vc é? Me ajuda aqui. Pelo amor de Deus! Aproveite que ele ainda está vivo e lhe dê um outro tapa. Outro??? É. Só por vingança. Vc é louca. Vc também. VÁ! OUTRO TAPA. Plaft! E, como que por encanto, Fernando arregala seus lindos olhos azuis quase sem brilho. Mesmo quase morto o diabo é bonito pra cacete.

- Baby...- Sua voz sai fraca. Chega a dar pena, mas eu não esmoreço. - Vc veio...- Entre irritada e confusa e morrendo de medo, mergulho o braço na água e, com a mão, puxo a corrente ligada ao ralo da banheira. Nunca havia percebido o quão prateada ela é. Abobalhada, observo a água suja escoando rapidamente. Pela terceira vez ele me chama de "Baby" o que me dá mais raiva ainda, logo, transformo a raiva em ação e, com a voz grave e num tom mais alto, anuncio a todos os presentes no local, ou seja, os mortos:

- Voltem para o buraco de onde saíram porque hoje - HOJE - ninguém morre nesta casa!!! Vcs me ouviram??? - Mergulho os pés na banheira e, de pé, atrás dele, tento erguê-lo, segurando-o pelas axilas. - Porra, Fernando! Colabora! - Meu bem, ele está quase morto. Não dá pra ele colaborarrr. Me ajuda. Eu? Não..eu! Quem mais além de vc??? Vc. Vc que sou eu. Ai meu saco! Puxa! Puxa! Vamos. Vc consegue. - Eu te odeio, Fernando! - Rosno, urrando, usando de toda a minha força física enquanto o arrasto pelo piso onde ele deixa sua trilha umedecida. Se eu estivesse grávida, certamente, meu filho nasceria ali, cuspido de tanto que forço o meu períneo ao levar o idiota do banheiro até a cama. - POR SAN JUAN DIEGO! - Jogo-me sobre o colchão, exausta, respirando como uma asmática. Recuperando minhas forças, de soslaio, percebo o corpo de Fernando, ao meu lado, nu, molhado e ainda adormecido. Idiota que eu sou! Isso me inspira piedade. Ajoelho-me ao seu lado, retiro o torniquete de pano empapado de sangue, jogo-o contra a parede. Fantástico. Espero que a mancha na parede em um tom de bege jamais o deixe se esquecer da merda que fez. - Parou de sangrar. - Suspiro, levando a mão ao peito. Vazo ruim não quebra. Ele não é tão ruim assim. Ah! Não? Tá com Alzheimer??? Se esqueceu de tudo o que esse porco te fez??? Não. Não dá pra esquecer, mas sempre se pode perdoar. Aaaah! Tenha dó! - Aaaah! Cala a boca ou eu vou tomar meus remedinhos guardados bem ali na gavetinha, amoreco. - Aponto o indicador para a escrivaninha onde minha tia costumava guardar os psicotrópicos que ministrava ao filhinho hiperativo e cruel quando nem a ela, ele obedecia. Minha tia era tão louca quanto ele. - Fica quietinha e me deixa pensar. Entendeu? - Uh-hum.

- Falando sozinha de novo. Essa é a minha garota. - Murmura Fernando com a voz entaramelada. Cubro seu corpo nu com um edredom, beijo sua testa. Limpo o corte que, contrariando minha primeira impressão, não fora tão profundo assim. Imitando o homem que amo, junto os dois lados da pele e as uno com um 'micropore'. Meu primeiro 'ponto falso'! Passo a mão em minha testa e me dou conta de que ainda estou com o curativo. Nossa. Nem parece que foi hoje que esse puto me acertou com uma pedra. E eu aqui, trazendo-o de volta à vida. Vida injusta. - Fica comigo, baby. - Diz ele, enroscando-se ao edredom, agarrando-se ao enorme travesseiro como se eu estivesse ali. Pare de olhar pra ele assim! Ele é tão lindo. Pena que é tão mau. Ele não é mau. É um psicopata! - Minha mãe disse que vc voltaria... - De olhos fechados, ele abre um daqueles sorrisos inocentes que raramente surgem em seu rosto de linhas perfeitas. Sua mão agarra meu antebraço quando ele, em dúvida, afirma. - Vc vai ficar, né?

- Fernando, cala a boca. Dorme e não me chateia. - Mais tranquila, afasto-me dele, ajeitando um novo lençol sob seu corpo. Não suporto rugas na cama que forro, logo, com a mão em forma de escavadeira, estico o pano até que ele fique do jeito que eu gosto. Damos nome a isso de "TOC - Transtorno Obsessivo Compulsivo". Damos nome aos remédios ali na escrivaninha de 'cala a boca pra sempre, meu bem". Rindo de mim mesma, dou os últimos retoques quando minha mão joga longe um envelope branco e pesado. - Uma carta! - Mega curiosa, eu a pego do chão. É pesada. Sem remetente. Perplexa, leio o meu nome no lugar dedicado ao destinatário. - Eu, hein! - Voo, jogando-me contra a poltrona 'vintage' que ele roubara do quarto de minha tia após sua morte. - Fernando nunca foi de escrever cartinhas. Que porcaria é essa?! - "Querida Giulia" - Puta merda. A letra é dele. Que cafona! Patético, eu diria. Leia. Não precisa mandar. Leia. Cala a boca. Tô curiosa. Eu também. Cato meus óculos na mochila e, antes de começar a ler, sentindo-me incomodada com o pijama listrado de meu tio, úmido e manchado de sangue. - Argh! - Caminho cautelosamente até o guarda-roupas de Fernando. Entre os ternos de grife, camisas sociais de tecidos nobres, atônita, revejo todos os meus vestidos que eu julgara perdidos para sempre, pendurados em cabides por ordem de cor e estação do ano. Mergulhando entre eles, aspiro profundamente, voltando há uma época de ouro. - Hummm. Cheirinho de Lavanda. Ele guardou todos e os mantém limpos. Por quê? - Talvez vc encontre resposta na carta, querida. Dá pra vc se vestir, sentar a bunda na poltrona e começar a ler? Leia vc. Não seja tola. Vc sabe que sem vc, eu não consigo. Então espere. Estou em dúvida entre o que escolher. São todos tão fofos. E caros. Fofos e caros, meu bem. Do tipo que o seu querido Carlos não poderia comprar. Uma pontada no peito. Saudade, raiva, decepção, covardia misturam-se em mim com a velocidade de um mini processador de alimentos. Uma leve tontura. Deve ser a culpa. A voz está certa. Eu gosto de grana e de viver bem. Eu me odeio por isso. Por quê? Porque isso me afasta de Carlos, o homem da minha vida. Bobagem. Nada que não se possa consertar com uns ajustes aqui, outro acolá. O que quer dizer com isso??? Nada, meu bem. Nada. A propósito, o vermelho lhe caiu muito bem e ainda combina com a cor da noite pateticamente mórbida: vermelho sangue. - Tem razão! - Saltitante, trajando o vestido cujo decote abusivamente sexy, volto ao quarto e me sento na poltrona. Ligo o abajur e dou início à leitura da carta do homem que, propositadamente, fazia de tudo por me machucar física e emocionalmente.

"Giulia, leia com atenção porque eu não sei se vou conseguir aguentar por mais tempo..."

- Quem me dera! - Retruco, argumentando com o papel como se ele pudesse me ouvir. Preocupada com o pseudo suicida, inclino a cabeça para o lado a fim de verificar se seu diafragma sobe e desce como o fole de uma sanfona. - Perfeito. Tá vivo. - Uma rápida vasculhada ao redor e nada de mortos ou monstros. - Perfeito. Que comecem os jogos. - Declaro, ansiosa.

Meu bem, meu bem. Sinto que teremos uma longa noite aqui.

Fica quieta e me deixa ler.

Como quiser...

***

A CARTA

"Giulia,

Leia com atenção porque eu não sei se vou conseguir aguentar por mais tempo. Sei que vc vai me achar um otário, mas, até lá, alguma coisa vai acontecer...precisa acontecer pra retirar esse peso absurdo dos meus ombros. Esse peso que é viver nessa casa sem vc. Tudo o que eu fiz foi por vc. Certo ou errado, foi por vc. Minha mãe costumava dizer que eu tinha um temperamento forte. O pai, que eu possuía desvios de comportamento, mas ninguém entendia o que eu sentia aqui dentro da minha cabeça ou do meu coração. Acho que nem eu entendo. Ninguém me perguntou o que eu sentia ou o que me impelia a fazer coisas que a maioria das pessoas encaram como bizarras. Como se todos soubessem o que é certo ou errado. O que eu posso ou não fazer. Acredito que estamos neste mundo para experimentarmos de tudo porque a vida é uma só e eu não quero perder tempo pensando se estou ou não magoando ou machucando os outros, exceto vc. Com vc é diferente, Giulia. Sempre foi. Desde que te vi naquela igreja, no altar, ao lado do padre, zoando com a cara dele, aos seis anos de idade, eu me apaixonei pelo seu jeito desnorteado de ser. Eu me diverti assistindo vc, ali, ao lado dele, com sua boneca velha e tosca, exigindo que o padre pedófilo retirasse Jesus da cruz porque tinha a certeza de que Ele estaria sofrendo.

Hilário. Eu te odiei por tomar a atenção dos meus pais. Eu te amei por ter alguém com quem conversar. Alguém que me entendesse e me aceitasse como eu era sem se queixar, questionar ou tentar me modificar. Vc aceitava tudo, baby. Era como um cachorrinho abanando o rabo atrás do dono. Eu cometia os erros e vc sorria. Sempre carente, com autoestima lá embaixo. Desde pequena, vc se deixava manipular por mim e achava que eu o fazia para o seu bem. Esse era o lance. Isso era o que me excitava, me encantava em vc. Eu fazia tudo por vc, Giulia. Era para o seu bem. Vc precisava crescer forte e independente. Seus pais, aqueles putos, não se importavam com vc, a menos que rolasse grana e, isso, meu pai que parecia te amar mais do que a mim, resolvia. Giulia, vc foi vendida por muito pouco desde cedo e se acostumou a isso. Acho até que vc gostava disso. Não enquanto criança, mas depois, quando cresceu e se transformou em uma mulher fascinante, linda, louca, livre, vc demonstrou gostar. Vc topava tudo comigo. Acho que vc fazia o que eu te pedia somente para ficar ao meu lado. Isso era amor, baby?

Foi quando eu comecei a ter aquelas ideias estranhas que me faziam ter tesão por vc. Ver vc sofrer me excitava, baby. Eu sei que pode parecer estranho, mas eu era assim. Eu sou assim. Eu te amo, Giulia. Eu amo te fazer sofrer, gemer de dor em minhas mãos ou nas mãos de outros, porém, hoje, aqui, sozinho, sem vc, eu percebo que passei dos limites. E eu não tenho limites. Nunca tive. Minha mãe me deixava livre escondendo meus erros de todos, especialmente do meu pai. O grande homem que começou do nada e construiu um pequeno império italiano.

A porra de dois restaurantes. Ele trabalhou a vida inteira, sem descanso para construir um império de dois restaurantes italianos que, graças a mim, decolou. Por ele, continuaríamos vivendo do que sua primeira cantina cafona produzia. Pertenceríamos à classe média, vivendo uma vida medíocre, com roupas medíocres, carros medíocres, futuros medíocres se eu não tivesse dado o meu melhor para alavancar os restaurantes. Mas, acho que ele nunca deu valor a isso. Foda-se. Velho babão.

Ele sempre te protegeu de mim. Sempre vigiando para que eu não me aproximasse de vc como se eu quisesse o seu mal, baby. Eu?! Querer mal a vc?! Baby, eu sempre cuidei de vc e estaria disposto a cuidar até o fim se vc não tomasse a merda da decisão de partir daqui atrás de outro filho da puta que nada pode te dar porque é pobre. Um filho da puta pobre, garçonzinho de cantina metida à italiana.

Levantei a ficha dele, baby. O cara tem um passado soturno, escorregadio. Contratei detetive e o caralho. Afinal, ele estava trepando com a porra da mulher que sempre foi minha. Por que vc mudou, baby? Vc costumava gostar das noites em festas, rodeadas por homens que te desejavam. Vc adorava a grana que eles não hesitavam em te dar. Eu via isso nos teus olhos castanhos, Giulia. Não negue. Vc sempre foi tão transtornada quanto eu, mas sabia esconder direitinho do idiota do meu pai que te chamava de 'Meu Anjo". Coitado do velho. Não conhecia o teu lado sombrio. O lado que eu amo e que faria de tudo por ver novamente.

Por que mudou, Giulia? Te faltava alguma coisa aqui em casa? Eu não te dava amor suficiente? Grana? Mordomia? Vc adorava ser vista comigo por aí. Vc dizia que eu era seu e de mais ninguém. Sempre gostou das roupas caras que eu te dava, dos carros onde vc desfilava comigo Eu sei. Eu sei. Eu te corrigia com uma certa rigidez, mas era para o seu bem, baby. E não tente esconder, vc gostava de apanhar. Eu via nos teus olhos a malícia, o prazer quando fazíamos as pazes após as brigas. Vc sempre foi desvirtuada como eu, baby. Nascemos um para o outro. Por que foi embora?

Aquele babaca te rondava sem vc saber. Ele já estava de olho em vc muito antes de eu me dar conta. O detetive achou na casa dele várias fotos suas misturadas às fotos antigas de uma mulher que não viveu neste século. Seus livros de magia, alquimia. A cama onde vc dorme. Seu cheiro está nela, baby.

Quartos separados? Ele não te quer, Giulia? Ele não te acha boa o suficiente? Pura o suficiente? Já contou a ele com quantos homens vc já trepou? Já contou a ele sobre as festinhas particulares onde vc era a atração principal? O prêmio para quem desse o lance mais alto? Ele conhece o teu passado de prostituta vagabunda? Ele já foi casado, Giulia. A mulher dele morreu de maneira bastante suspeita, mas ele se safou da prisão porque não provaram nada contra ele.

"Laceração da Veia Jugular", foi o que legista alegou. Porra nenhuma. Aquele miserável deve ter atormentado a vida da vagabunda da esposa a ponto de levá-la a cortar o pescoço e cair no chão da cozinha. Imagina o trabalho que ele teve para deixar tudo limpinho após o enterro? Eu vi. O piso da cozinha é tão claro e limpo que dá para comer nele. Vc continua com sua obsessão por limpeza, não é? Adivinha com quem a morta se parecia? Quer saber onde ele guarda essas fotos? Vou te contar. Adoraria estar contigo quando as visse. Queria ver a tua cara de otária ao descobrir que vc não passa de uma cópia borrada da falecida. Procura por uma caixa em cima do armário do quarto dele e vc vai ver que eu escrevo a verdade.

Por que vc não dorme com ele? Vc continua linda, amor. Ver vc dormir após chorar por ele me deu um puta tesão. Por muito pouco eu não trepei com vc dormindo, do jeito que vc costumava apreciar.

Era uma das coisas que eu mais gostava em vc, baby. Chegar a casa, tomar um banho e, em silêncio, tirar sua roupa e te beijar todinha. Vc gemia, pensando estar em um sonho enquanto eu te fodia gostoso. Vc sempre foi minha, Giulia e vai continuar a ser. Eu ainda não desisti. Só estou dando um tempo.

Perdão, baby. Fui eu quem matou seus gatinhos. Vc os amava, mas, porra! Eles eram um pé no saco! Miavam o dia inteiro! Davam trabalho a vc que, consequentemente, me esquecia. Injusto. Uma puta injustiça! Então, resolvi tirar aqueles merdinhas da sua vida. Sério. Vc precisava ver como eles se debatiam dentro do saco. A força deles triplicou. Quase rasgaram o saco. Foi lá embaixo, no porão. Uma fogueira digna da época da Inquisição. Observei com detalhes. O cheiro da carne queimando, os miados desesperados, os olhos esbugalhados e sem brilho. Isso não tem preço. Não se trata de maldade. Trata-se de Poder.

Eu nasci para ter poder sobre as pessoas. Liderar, mandar, ordenar. Seu tio não entendia isso e batia de frente comigo. Vc não. Vc acatava minhas ordens e, se não o fizesse, eu te ensinava a me obedecer. Do meu jeito, mas ensinava. Acho que fui além do ponto, Giulia. Com vc, eu fui além do ponto. Passei? Sei lá. Eu te machuquei de todas as formas possíveis e, disso, eu me arrependo.

Lembra o lance dos meus amigos que queriam passar uma noite com vc e vc se recusou? Eles pagaram uma fortuna e mesmo assim, vc se recusou a dar o que eles queriam. Por que vc acha que eu te levei ao restaurante naquela noite? Pra te pedir em casamento? Sério, baby? Casamento?!Já estamos casados. Unidos pela Eternidade. Mas vc não quis. Não topou entrar no clima e deixá-los satisfeitos. Deu no que deu. Se eu pudesse voltar no Tempo, eu consertaria aquela merda, mas não posso.

Então...ali, eu errei. Pisei na bola. Giulia, eu fiquei excitado ao te ver nas mãos deles. Vc chorava, implorava por socorro enquanto eles te fodiam e eu, ali, parado, excitado e desorientado. Uma parte minha queria espancar aqueles vermes. A outra, só queria ficar te olhando e pensando em como vc conseguia ser tão forte. Vc lutou contra eles até ser vencida. Eles te surraram e vc, baby, muito menor do que eles, ainda conseguia dar alguns golpes, mas não foram suficientemente capazes de fazê-los parar. Fiquei orgulhoso de vc. De tudo o que te ensinei. Antes de sair da adega, olhei para trás e vi seu corpo nu quase sem vida, o tronco sobre a mesa, olhos inchados, o corte na boca e eles se revezando, urrando como os vikings. Aqueles caras do seriado que a gente costumava assistir juntos. Sinto um puta orgulho de vc, baby. Lutou. Gritou. Implorou. Chorou e perdeu. Lembrando disso agora, penso que poderia ter sido diferente. Como aquele garçom medíocre ouviu seus gritos se as paredes eram à prova de som?

Meu orgulho se transformou em ódio quando o vi lá no hospital esperando por notícias suas. Notícias suas!!! Quem ele pensa que é para esperar por notícias suas!? Eu pensei em acabar com a vida dele assim como fiz com viadinho do seu professor de Ballet. Surpresa!? Ahhh...perdão. Eu precisava te manter por perto e ele queria te levar para bem longe. "Juilliard School - Ensino Superior de Dança". Não era esse o lugar? Perdão. Eu sei que era o sonho da sua vida, mas sua vida sem mim não teria graça. Vc precisa entender isso de uma vez por todas. Vc dançava bem, amor. Uma exímia bailarina. Certamente seria um sucesso em Nova York, mas vc não quis esperar por mim. Eu estava terminando a faculdade. Cansei de te pedir pra me esperar e vc não me ouviu. Não me ouviu. Não me ouviu. Custava me esperar? Não esperou. Foi teimosa. Viajar sem mim, vc não iria; logo, dei meu jeito. Pronto. Vc ficou. No início, ficou tristinha, no entanto, nada como o tempo. Acabou se acostumando ao fato de que vc é minha, mesmo que esteja transando com o babaca do garçom de quinta.

Vcs estão transando? Ele é melhor do que eu? Duvido. Eu te vi dormindo em outro quarto. Eu te vi chorando. Eu deitei ao seu lado e vc nem percebeu. Sono pesado o seu, baby. Exatamente como o do meu pai. O velho nem percebia quando eu o visitava em seu quarto. Ficava horas sentado naquela poltrona que ele adorava, observando seu corpo inerte sobre o colchão. Um vegetal ruminando a ideia de tirar a própria vida sem poder mover um dedo. Às vezes, ele abria exageradamente aqueles imensos lindos e risonhos olhos azuis. Mirava o teto sem se atrever a olhar para o lado. Ele sentia a minha presença? Tinha medo de mim? Não importa. Seu final seria bem pior. Ele deveria me agradecer.

Giulia, vc é forte. Perto de vc, eu me sinto um nada. Naquela noite em que te deixei lá na adega do "Italia Mia" com aqueles monstros insaciáveis, ouvindo sua voz fraca chamando por mim...eu fugi. Não suportei. Eles me pagaram uma grana alta por vc, amor. Eu depositei na conta. Eu abri uma conta-poupança pra vc, baby. Ninguém é eterno. Vc precisa saber que tudo o que fez, toda a grana que nós dois tiramos dos seus clientes está depositada na sua conta. Não vou te deixar desamparada.

Estou pensando em dar um tempo. Apagar. Não sei porque tenho pensado nisso ultimamente. Sinto muito a sua falta. Talvez, seja por isso. A vida não tem graça sem vc. Morrer...

Por que eu devo morrer? E se eu me arrepender de ter me matado? Não vai ter volta. Eu não quero morrer. Eu não estou só nesta casa. As paredes falam e sugerem que eu devo acabar com o meu sofrimento. Vc acreditaria se eu dissesse que sinto a presença da minha mãe aqui em casa? É algo que me incomoda. Não a sinto como antes. Doce, atenciosa, feliz. É uma presença pesada. Dá medo. Vc poderia vir aqui? Estou ficando louco. Vc acredita que ela possa estar aqui? Claro que acredita. Vc e ela adoravam essa baboseira de espíritos, vida após a morte, blá, blá, blá.

Cara! Sabe quem eu vi um dia desses no quarto de hóspedes?! Com os olhos bem abertos?! Assim, como eu vejo vc ou os funcionários lá do restaurante!? Não foi uma sensação. Eu o vi! Foi doideira! Aquele tal de Ga'al, o primo da minha mãe. Aquilo me assustou, porra. O cara de pé, no canto do quarto, vestia um terno preto e sorriu pra mim. Porra! Que susto. De verdade. Desde então, tenho bebido mais e ouvido uns lances esquisitos. Murmúrios de canções em um idioma que não compreendo; passos no piso do corredor. Risos, choros, lamentos. Giulia, aquele escocês escroto pode voltar e fazer o que quiser?! Vc sempre soube lidar com isso. Eu não. Odeio aquele verme. Ele 'comia' a minha mãe com os olhos. O besta do meu pai ainda deixava ele se hospedar aqui! Aquele cara me dá arrepios. Agora mesmo! Eu não estou sozinho enquanto escrevo essa carta. A porra dessa casa vai me deixar maluco. Vc precisa voltar, Giulia! Eu preciso de vc aqui.

Sabe que acidentes acontecem com pessoas o dia inteiro? Seu garçom pobre pode ser atropelado ou ser alvejado por uma bala perdida a qualquer momento? Já pensou nisso? Antes ele do que vc. Falando nisso, sua testa já parou de sangrar? Eu não quis te acertar, mas vc estava se mexendo no colo dele feito uma piranha no cio. Jogou a cabeça para trás, cobrindo-o, justamente quando eu mirei a cabeça dele. Foi mal. Bem feito. Poderia ter sido uma bala de revólver. Toma cuidado, Giulia. Tudo pode acontecer.

Por que vc não volta?

Vc acabou com a minha vida, Giulia. Vc deu sentido a ela e deu fim também. Por que a ideia de 'dormir para sempre' está tão forte hoje? Cacete. Aqui tá frio pra caralho.

Quem sabe eu encontre meu pai? Vc acha que ele vai me perdoar? Ele não sofreu antes de morrer. Minha irmãzinha também não. Não é engraçado como os dois partiram da mesma forma? Vc não tem ideia de como é fácil asfixiar um bebê. Com meu pai, foi um pouco mais difícil. O cara era forte. Guerreiro. Mesmo sem poder mover grande parte dos músculos e ossos, ele lutou até o fim. Tentou gritar, mas somente conseguiu pronunciar, com muita dificuldade, a palavra: maldito. Que feio. Isso é coisa que se diga a um filho?

Ele descansou, coitado. Ele podia ter seus defeitos, mas era um pai bacana pra caramba. Uma pena ter partido. Mas, pensa bem! Ele vegetava. Minha mãe, certa vez, me disse que ele havia pedido a ela que não o deixasse vegetar sobre uma cama porque não achava digno do homem que ele sempre foi. Porra. Eu fiz o que todos esperavam e fiz por vc, baby. Por vc. Ele estava te deixando doente, fraca. Vc emagreceu muito, amor. Já não era a mesma. Ele te sugava. Queria que vc fizesse tudo por ele. Te tratava mal já pertinho do fim. Eu não poderia permitir que isso continuasse. Não mesmo. Então, eu me lembrei dos gatinhos. Eles partiram e vc, com o tempo, voltou a ser só minha. Por que não seria o mesmo com meu pai?

Eu te vi dançar na boate, baby. Vc continua maravilhosa, mesmo que o seu sorriso esteja triste. É por causa do babaca do garçom? Ele não vale nada, amor. Vc é minha e precisa voltar pra mim antes que eu tome uma decisão sem volta. Ele te contou o que o médico disse sobre o seu útero? Disse que por conta da violência usada contra vc, por parte daqueles monstros, vc não vai poder ter filhos? Amor, eu não quero filhos. São miniaturas de adultos com poder de falarem tudo sem repreensão. Odeio crianças. Fica comigo. Vamos viver juntos, vc e eu, bem longe daqui. Dessa casa que parece um freezer. Tá frio, Giulia. Vou tomar um banho quente e te esperar, baby. Essa casa é sua. Para sempre. Vamos morrer dentro dela. Vc e eu...forever.

Meu pai nunca apareceu pra mim. Será que ele me odeia? Mesmo depois de tudo o que fiz por ele? Eu o libertei!

Ingrato.

Baby, eu estou chapado. Vendo e ouvindo coisas. Alucinando. Como vc pode ficar com alguém que provocou o suicídio da própria esposa? Como deve ser cortar a garganta? Seria uma morte lenta, indolor?

"Sweet Jane", aquela vagabunda dançarina do 'California'. Aquela que vc odeia e que tenta roubar o teu lugar na boate, até tentou ser como vc. É gostosa! Isso ela é! Peitões! Topa tudo, mas não tem o seu cheiro, o seu carisma, a sua inteligência mordaz, sua ousadia, seus olhos tristes, sua boca carnuda. Ela não é vc. Nunca haverá outra como vc, Giulia.

Vou tomar um banho, deitar e, amanhã, vou atrás de vc e te arrastar até aqui.

Essa é a sua casa, baby. É o seu lar. Minha mãe me disse que te espera, ansiosamente.

Bacio, bella.

***

De olhos fechados, inspiro e expiro pela boca aberta. À medida em leio a carta, sou consumida por uma avalanche de sentimentos contraditórios. Compaixão, tristeza, raiva, carinho, saudades e, principalmente, perplexidade.

O tio estava certo. Fernando é um psicopata capaz de tudo por conseguir atingir seus objetivos. Por que matou a irmã? Ela era tão novinha, meu Deus. Por que fez o mesmo ao pai?

- Meu tio. - Lamento, enxugando com o dorso da mão o rosto tomado de lágrimas. Lágrimas amargas. Lágrimas de impotência. - Ele tirou tudo de mim. O que mais ele é capaz de fazer? - Dirijo meu olhar raivoso a ele que dorme tranquilo, limpo, longe da morte, estendido na cama. Parece inofensivo o canalha. - POR QUE NÃO DEIXOU QUE ELE MORRESSE!? - Explodo. - Eu??? Eu não fiz nada. Vc fez tudo sozinha. É vc quem comanda o corpo. Não! Não fiz! Vc insistiu muito pra que eu viesse aqui. Vc sabia. Não sabia??? Diz! Sabia que ele estava prestes a morrer??? Responde! Agora que deve falar, vc se cala! - Te odeio! - Com a mão, amasso o papel transformando-o em uma bolinha tão pequenina quanto a de ping-pong . Jogo-a contra Fernando que não se move. - É uma prova! - Raciocino e, de imediato, resgato a bolinha de papel. Desamasso-a, dobrando-a por diversas vezes até caber em meu sutiã. - Preciso falar com o Carlos. Ele precisa saber da verdade. Ele vai me ajudar. - Carlos!? Aquele que te deixou sair da casa dele e nada fez. Vai voltar ao homem que não se importa em te ver seminua diante de outros homens por algumas gorjetas? - Vc só fala merda. - Digo com as mãos no rosto, a cabeça baixa entre os joelhos abertos. - O que eu faço? Aqui eu não fico. Eu não consigo respirar nesse quarto. Não consigo. Calma. Inspira. Expira. Vc não tem para onde ir nesta noite. Vc?! Não costumava ser "Nós?" Quem é vc? Eu sou vc. E vc sou eu. Simples. Vamos dormir aqui só por essa noite. - Tô sufocando. - Minha voz sai abafada. Estou tonta e morta de cansaço. São três da manhã. Levanto-me da cadeira. Caminho pelo corredor. Lembro-me do tio quando olho para o portão da garagem. Seu carro ainda está aqui. Está sujo. Ele jamais deixaria seu carro sujo. - Deus! - Exclamo, decepcionada, agarrando-me às grades pintadas de preto com ponteiros dourados. - Por que o Senhor não impediu aquele monstro de matar meu tio? Ele era um bom homem. Um bom homem. - Repito, entre soluços. - Não posso ficar aqui. Há muita coisa ruim lá dentro. - Murmuro. Será por pouco tempo. Já está amanhecendo. Vamos deitar no seu antigo quarto. Quando acordarmos, chamamos uma ambulância e ele que se ferre. - Ele que se foda! - Rosno, sentindo um imenso vazio no peito. - Ele me tirou tudo. - Ergo meus olhos ao céu salpicado de estrelas. Estão lindas. Ainda que mortas, continuam a brilhar. São frias e imparciais. Há tanta gente sofrendo abaixo delas. - Que Deus é esse que permite que ele faça tanta maldade e permaneça impune? - Digo, raivosa. Observo as nuvens absurdamente brancas e fofas que se afastam para que a lua, gigantesca, possa brilhar. "Quem poderia ter feito tudo isso, Giulia?", dissera Carlos em uma das muitas conversas sobre a Criação, Astrologia, Magia. Ele quase me convenceu. Chegara a aprender a conversar com o Criador. Eu acreditei em Sua existência porque Carlos acreditava. Não era a minha crença. Era a dele. - Não existe. - Concluo, magoada. - Por que deixou que meu tio morresse assim?! - Grito, dando pontapés no portão. Vejo pontos de luz em cada casa da antiga vizinhança que parece ter acordado com o estardalhaço que promovo, propositadamente.

- Ótimo. Espectadores. - Ouço a voz rouca e ainda assim, doce de minha tia, ao meu lado. - Exploda, querida. Coloque para fora tudo o que há aí dentro. Vamos, diga...diga. - Deixo-me abraçar por ela que ainda guarda restos da roupa com a qual fora enterrada. Por algum motivo, não está fedendo à carne podre. - Deixe seu coração falar, meu bem.

- Deus existe, tia? - Nossos dedos se entrelaçam. Sua mão é fria como uma lagartixa. Entro em seu mundo. Dor, solidão, escuridão, vozes, gritos, gemidos, um forte cheiro de enxofre, poeira, mais gritos, risadas. Tudo pelo qual ela tem passado invade minha mente atormentada. - A senhora tem sofrido, tia. - Afirmo enquanto seguimos em direção à porta da sala. Cruzamos o batente. Uma rajada de um vento frio invade a casa e penetra em meu coração. Beijando o topo de minha cabeça com a ternura com que o fazia quando éramos todos felizes, ela me olha como quem filtra um pensamento antes de transformá-lo palavras. - Deus existe, tia? - Repito, já deitada em minha antiga cama, olhos pesados, uma sensação de que estou flutuando. Eu a vejo linda como antes. Belíssima. - Tia...- Ronrono enquanto ela abre um sorriso enigmático e, finalmente, cochichando em meu ouvido, ela confessa.

- Não. Deus não existe.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 02/05/2021
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