XXV

A ligação cai.

_Droga! E agora? Se Leonardo o encontrar, tudo cairá por terra. O que fazer? Pense, Márcia! Pense!

Caminha pelo suntuoso consultório, no oitavo andar de um dos edifícios mais valorizados do jardim Bela Vista, região central de São Paulo. Com decoração em estilo clássico, o lugar se divide em dois espaços. O primeiro, com uma mesa em L, acompanhada por uma cadeira giratória extremamente confortável, tendo à frente uma poltrona, para que o paciente, bem acomodado, pudesse expor sua alma e delatar todos os seus mais íntimos infortúnios. No outra ponta, sobre um legítimo tapete persa, há um divã, com outra poltrona ao lado. Um lugar sutilmente preparado àqueles que mais precisam de seus cuidados. Márcia apresenta um caráter duvidoso, mas é de um bom gosto extraordinário; sempre teve a noção de que bastasse um pequeno deslize para que sua obra de arte acabasse como pilhéria nas páginas das revistas especializadas. E isso jamais admitiria. Era uma Médici, símbolo-mor da elegância e dos bons costumes.

Toca o telefone.

_Pois não, dona Esmeralda! Como? Ela está aqui? Não pode ser! Não tenho paciência para tanto. Invente uma história, não suporto essa criatura vazia, só em pensar, ataca-me a urticária!

_Senhora, ela marcou horário, mostra-se muito abalada, não para de chorar, causa-me até dó!

_Tornou-se médica para antecipar diagnósticos?

_Não...não senhora!

_Então recolha-se à sua insignificância. Se eu precisar de conselhos, certamente não serão os seus. Pois a mande entrar, fazer o quê? Apesar de todo meu sentimento de repulsa, hei de ser profissional.

Levanta-se da cadeira, muda a expressão, troca de personalidade como quem troca de roupa, assim que a porta se abre, torna-se meiga, um ser angelical, que conquista pelas doces palavras, apoiadas em sentenças bem elaboradas.

_Lícia, minha querida! Como pôde chegar a esta situação? Por que não me ligou antes? Teria adiantado sua consulta – abraça-a, fazendo expressão de nojo. _ Venha, sente-se no divã, percebo que sua alma sofre como uma criança longe dos pais. Pois me conte, tudo isso é por conta de An...

_... Ernesto! – interrompe-a. _ Perdi meu “filhinho”, querida, e a dor é perfurante. Como poderei viver sem a companhia dele? Sinto-me uma alma errante, completamente destroçada, perdida no tempo e no espaço. Isso é normal?

_Claro, minha linda! Perder “um filho” é como perder o próprio reflexo. Você fica sem as referências que lhe garantem o equilíbrio natural entre a realidade e a fantasia, a fé e a descrença. E a perda de Ernesto, o gato, foi uma tragédia para todos nós – debocha. _ Sentia-o tão próximo, como um outro sobrinho; quando soube de sua morte, verti-me em lágrimas, para o desespero de meu criado Jarbas, que pensou, veja você, que eu estivesse sendo vítima de um infarto. Acha? Mas Pobre é tudo igual, né? Limitam-se ao senso comum!

_Pois você também sofreu com a perda de meu bebê?

_Claro! Quem não amava aquele bichano? Tão carinhoso, de um paladar refinado, porque ao se aproximar de uma mesa, agia como um ser de nossa estirpe, sabia a hora de miar e de apontar qual dos cardápios gostaria de degustar.

_Poxa! Estou emocionada com suas palavras, ele era mesmo tudo isso. Quando eu estava na cama, ele se ajeitava ao meu lado e pedia que lhe lesse uma trama de Agatha Christie. Ouvia cada palavra como se estivesse visualizando os cenários e as personagens fantásticas da primeira-dama do crime. Iniciá-lo na literatura inglesa foi ideia de Giacomo, que o mimava muito. Na hora do chá da cinco, se houvesse um atraso, ele miava – era uma advertência, porque pessoas de nossa estirpe devem zelar pela pontualidade e pelo respeito às tradições.

_ Nossa! Do modo como relata os fatos, estão mais para ingleses que para italianos.

_Italianos no sangue; ingleses na alma! Assim nos sentimos completos.

_ Tem sentido! Mas Ernesto era mesmo um gentleman – sua vontade era de rir - , não havia quem não o admirasse! Alguns até diziam que era um ser divino, insubstituível! Mas, e a perda de Anna, o que lhe despertou? Porque você também a perdeu e no mesmo dia!

A mulher ignora a pergunta, focando-se apenas no bicho peludo.

_Estou muito deprimida, Márcia! Preciso de um coquetel que me faça levantar da cama; Ernesto sofreria se me visse assim, tão desencorajada. _ limpa as lágrimas que lhe saltam dos olhos. _Tadinho, era tão preocupado comigo, bastava eu me achegar para que pulasse em meu colo e me fizesse carícias...muitas carícias...

_Vou lhe receitar uma medicação que a fará acordar amanhã com a dor do peito aliviada.

_ E esse remédio existe? Psicotrópicos geralmente demoram dias para fazer efeito.

_Claro! Confie em mim!

Prescreve-lhe um coquetel desatinado, composto por drogas antagônicas; a julgar por sua desfaçatez, a mulher não veria mais o sol no dia seguinte.

_Tome – dá-lhe a receita azul. _ Compre já!

_Pois me vou – sente dificuldades para se levantar, recebendo o apoio da psiquiatra._ Põe na conta a consulta de hoje, estou desprevenida; Giacomo sempre esquece de me deixar o cheque.

_Claro, querida! Não se preocupe, você sempre está desprevenida, não é novidade alguma, entendo, não é todo dia que nos lembramos de pagar em dia nossas contas, até porque, vivemos uma vida atribulada, repleta de altos de baixos, de ganhos e perdas...Mais perdas que ganhos! Não é mesmo?

_Ainda bem que é compreensiva – não se abala com as indiretas da mulher._ Devo-lhe pouco...

_...Sim! Doze consultas apenas. Uma ninharia! Mas não se preocupe com isso, o importante é que melhore, quero vê-la sorrindo o mais breve possível, entendeu?

_Como te adoro! – beija-a de leve, pega a bolsa e sai. Assim que a porta se fecha, a psiquiatra cai no riso.

_Quer amenizar a dor que a corrói, megera? Pois amanhã há de se encontrar com aquele gato fedorento no inferno. Menos um na minha coleção de doidos!

_O que aconteceu, Marcos? Por que parou?

_ O pneu do carro furou, senhor! – responde o motorista, estacionando o veículo às margens de uma avenida com trânsito moderado.

_Logo agora?

_ E tem hora para isso?

_ Pois trate de trocá-lo imediatamente, tem muito chão até chegarmos à Zona Leste.

Marcos se aproxima do pneu, que diferentemente do que afirmara, está em perfeita ordem. Sacando-se de um canivete, aperta o bico, que expulsa todo o ar. Depois, faz-lhe um rasgo de ponta a ponta.

_Senhor, o pneu se perdeu, tem conserto não.

_Como assim?

_Lembra-se que passamos por um acidente? Pois é, os estilhaços devem ter feito isso, ele está cortado de um lado para o outro.

_Cadê o estepe? – pergunta, irritando-se.

_Está vazio! – mente.

_Mas....mas...como deixou isso acontecer?

_E como alguém pensaria em estepe ao vê-lo naquele hospital, à beira da morte? Eu não pensava em outra coisa, se não no seu reestabelecimento. Assumo a culpa! E se errei, foi sem intenção!

_Vou fingir que acredito, seu “171” de uma figa. Mas e agora, o que faremos? Nem sei onde estamos! Vou pedir ajuda pelo celular.

_Eu não faria isso, estamos na fronteira da terra sem lei, se grampearem sua linha, em poucos minutos a bandidagem estará aqui, com fuzis nas mãos, prontos para o depenarem, além de correr o risco de se tornar mulherzinha nas mãos dos mais afoitos, mas disso o senhor não se importará, né? Ops, de novo, falei demais, como está minha cabeça - é de um cinismo surpreendente. _Perdoe-me, patrão! Isso não vai mais acontecer!

_E não vai mesmo – diz, retirando-se do carro, para a surpresa dele. _ Na escola do crime em que você estudou, eu fui o diretor. Então vamos direto ao assunto: o que está tramando?

_EEEU??? Nada, senhor! Sou mais puro que os assessores do Metalúrgico.

_Mas tal pureza não lhe garantirá misericórdia. Fale já! Pensa que sou algum tolo, infeliz? Percebi as voltas que estava dando, como se quisesse me impedir de chegar à criatura. Por acaso está tendo um caso com ele?

_ Vixe Maria! Sô homem com “H” maiúsculo. Dessa fruta não suporto nem o cheiro. Aff! – repugna. _Traçaria até Jacira, mas um veado - com todo respeito aos presentes-, nem se eu estivesse com uma venda nos olhos ou uma arma na cabeça. Conheço muito bem o “terreno” que costumo frequentar e as pessoas com quem devo me relacionar.

_Verdade? Pois bem! Então vamos ver!

_ O que o senhor fará? – estranha.

_Verá! Um minuto...

Invade a avenida, parando um automóvel.

_É louco, coroa? Podia ter batido em você! – grita um rapaz, colocando a cabeça para fora.

Retira do bolso algumas notas de cem reais e lhe oferece, dizendo:

_ Meu carro foi danificado, o celular não pode ser usado, o lugar é perigoso e a bandidagem pode baixar aqui e me fazer de “mulherzinha”, por isso, preciso que me ajude, leve-me à Zona Leste, que lhe dobro estas notas. É pegar ou largar.

_O homem é o cão - comenta o chofer, consigo mesmo, sem saber o que fazer. _ Como vou impedi-lo de chegar à casa do bombeiro?

O dono do carro aceita na hora, não é todo dia que dinheiro cai do céu.

_Senhor, espere, vou dar um jeito, deve ter um borracheiro por aqui, é questão de tempo – segura-o pelo braço.

_Claro que vai dar um jeito ...- ironiza, soltando-se... Agora você terá tempo suficiente para arranjar uma desculpa que me convença de que não me traiu.

_QUE CONVERSA É ESSA, PATRÃO??? Sou seu servo; o senhor é o meu deus! Como pode pensar isso de mim? Logo de mim, uma criatura tão pura...

_...tão pura que se esqueceu de uma coisa...- interrompe o criado, às gargalhadas.

_E...e ... o que foi?

_Da ligação que fez a Márcia!

Marcos arregala os olhos de susto.

_Que...que ligação?

_Não se lembra? Vou-lhe refrescar a memória. Aproveitou-se de um momento meu com os médicos, para retirar-se do quarto sem levantar suspeitas. Mas astuto como sou, pedi licença e fui até a porta. De costas, você não me viu. Mas eu o vi e ouvi sua conversa. Como qualquer pobre, não sabe falar baixo. Uma pena! Retornei ao quarto. Logo você chegou. Esperei que se inclinasse para pegar meus pertences para lhe confiscar o celular. Como é todo desleixado, nem percebeu. E aqui ele está – diz, devolvendo-lhe o aparelho. _ Li todas as suas conversas com aquela cobra criada! Então querem o meu filho? Hum! Pago para ver!

_Senhor...senhor...me deixe falar, entendeu tudo errado!

_Entendi? Estou com o juízo em perfeitas condições, Ronaldo Aleluia, ou não é este o seu nome de batismo? Pensou que me esqueci? Minha memória permanece intacta. Ah, e se for ligar para aquela megera, diga que também se prepare, agora lhe tirarei tudo, da casa nos Jardins ao consultório da Bela Vista. O tempo pode ter passado, mas minha ira é eterna; pouco foram aqueles que me desafiaram e não serão vocês, com esses truquezinhos baratos, que me farão desistir de uma ideia. Por ora, boa tarde! – entra no carro.

Acuado, Marcos implora:

_Senhor, espere, faço o que quiser, serei seu escravo para sempre, mas não lhe faça nenhum mal...Por favor! Eu lhe peço!

_Nossa! – aplaude, abaixando o vidro._ Tudo isso é amor? Ao menos a você, Márcia serviu para alguma coisa!

_Eu a amo muito! Deixe-a em paz! Desconte em mim sua ira! Estou pronto para as chibatas...

_Sua dor já não me causa prazer! – desdenha. _ Assim que terminar com Gabriel, irei atrás dela como um lobo solitário.

_Senhor, eu imploro!

_Vamos! – pede ao rapaz, ignorando-o. _ Tenho uma história para concluir.

_Ele descobriu? Como você é descuidado, Ronaldo! Ainda não sei o porquê de amá-lo tanto; agora aquele peste virá para cima de mim feito um leão. Será uma carnificina!

_Não vai não! Ele agora saberá do que sou capaz. Aguentei todo esse tempo os seus desmandos por amor a você, porque sabia, se errasse a dose, ele a fuzilaria; agora que descobriu, está na hora de eu desenterrar o Faísca, um dos maiores pistoleiros da Favela Pantanal, que por acaso, sou eu.

_Ele é muito esperto, o plano estava caminhando, agora...

_...chegou a hora do revide! – completa, abrindo o porta-luvas. _ Como? – surpreende-se. _ O velho pegou a arma que estava aqui!!! Não pode ser!!! Me passou a perna de novo! Mas isso lhe custará o último suspiro, prometo!

A porta é escancarada por Jacira, que invade o consultório da psiquiatra aos gritos, para o desespero de Esmeralda, a secretária sexagenária, que não tem forças para contê-la.

_O que está acontecendo aqui? – surta, escondendo-se atrás da mesa, com medo de levar outro tapa. _ O que faz em meu consultório?

_Quer que diga na frente da véia ou vai partir para o particular? Temos uma DR para resolver– mostra-lhe parte da arma, presa à cintura, que brilha ao encontrar um raio de sol. _ Responda, Pomba Gira de terreiro interditado.

_O que pretende? -pergunta a funcionária.

_ Bem, véia, se a senhora já tá com a boca aberta antes de ouvir os podres deste demônio de saia, que dirá depois; mal lhe pergunte, tem um plano funerário? Porque é para o buraco que irá, vítima de um enfarte!

_Do-do-dona Márcia, posso sair? Uso marcapasso.

_Oxi! Tão tá lascada! Vai bater as botas antes de ouvir o início da história... Quer já ligar para reservar o velório? Ah, e se precisar de um cemitério bão, tem o da Vila Formosa, na Zona Leste. – volta-se para a médica. _ Zona Leste, entendeu, “Marcinha do coração” ? É lá que mora o seu amigo do peito, não é? Aquele que invadiu a internet, a seu pedido, e que quase piorou o meu moleque, por coincidência, o seu sobrinho.

Percebendo que o assunto era comprometedor, a irmã de Nathalia ordena que a secretária saia.

_Consultório bonito, hein? Quem te viu, quem te vê! De uma puxa fumo a uma das mais aclamadas psiquiatras de São Paulo. Nem dona Nathalia, a irmã que a senhora sempre invejou, acreditaria. Mas me diga aí, parou de puxar um beck? É difícil, né? O vício é cruel e o cheiro da erva pior ainda.

_O que quer aqui?

_ Que cama ajeitada. Posso me deitar?

_É um divã, sua analfabeta!

_Já começaram as ofensas, né, Suzicreide? Pois divã ou cama, pra mim dá no mesmo. Será que é resistente? Vamos ver...

Perdendo o senso do limite, Jacira pula com tudo em cima do móvel, que se parte com o peso dela. Ao passar a mão pela cintura, ela percebe a ausência da arma. Ao vira-se, toma um susto. Márcia a recolhe do tapete e a aponta para ela, com um sorriso maquiavélico no rosto.

_Você quer brincar? Então vamos! Estou doida para ver como este jogo vai acabar, Suzicreide! – debocha da empregada, chamando-a novamente pelo nome da filha.

Batem na porta.

_Quem será que está aí? - pergunta Gabriel, que se levanta da cama a muito custo; não imagina que seu algoz, a quem dedicou quase toda sua vida, o aguarda, para liquidá-lo para sempre.

Ao abrir, o fôlego lhe falta, não sendo capaz de impedir que Leonardo entre.

Vendo-o recolhido à parede como um bichinho sem dono, com os ossos à mostra, os cabelos ralos e finos e a face deformada por cicatrizes profundas que impressionam, dispara, sem piedade:

_Então era você que iria dar fim no meu filho? Coitado! É o retrato perfeito de um zumbi, sem falar do cheiro, podre como o da carniça. Se os urubus o encontrarem, nada sobrará dessa carcaça!