XVII

Atiçado pela curiosidade, Marcos leva o notebook para seu quartinho sem que percebam, nos fundos da propriedade, de onde o vasculha, impressionado com o fato do patrão ainda nutrir algum afeto pelo rapaz que mandara matar. Abre os programas, os arquivos, quer calar as perguntas que lhe surgem à mente, desorientadas. E são muitas. A ponto de perturbá-lo. Ao acessar o histórico do navegador, depara-se com muitos endereços de sites de pornografia, todos voltados ao público homossexual, e diversos bate-papos, em inúmeros provedores, em horas alternadas do dia, como se Leonardo estivesse de novo à caça. Que homem de apetite insaciável!

Permanece investigando, agora pelas pastas, inúmeras delas, onde há de tudo, desde o controle financeiro da empresa, projetos de reforma da mansão, itinerários de viagens, mas sua atenção se volta para uma que estava escondida entre tantas, com o estranho nome de O Desbravador de Identidades. Por um minuto, é como se algo se apossasse dele.

_ Não pode ser!

_Sim! Marcos! Ajo como um daqueles desbravadores dos tempos do império, mas ao invés de ser um expedicionário das matas, invado pessoas e delas retiro o que há de melhor. É como se a cada nova descoberta, um outro mundo estivesse à minha frente, pronto para ser devorado e destruído – diz Leonardo, no banco de trás, enquanto passam pela Marginal Tietê.

_Credo, patrão! O que o senhor está dizendo?

_Que estou viciado nesta arte.

_E que arte seria esta?

_Desbravar novas essências e consumi-las até me fartar.

_Meu Deus! – diz, bastante tenso, relembrando-se das palavras do patrão.

Marcos teme pelas revelações, mas dominado pela curiosidade mais letal que existe, invade a pasta, sem se atentar às consequências. E lá encontra fotos de muitos rapazes, de todas as idades, de todos os tipos. Brancos, morenos, negros, amarelos, altos e baixos; em comum, apenas a beleza e a aparente ingenuidade. Em meio a todos, está a foto do bombeiro Gabriel, em destaque, com as bordas em negrito. O que aquilo queria dizer? Que ainda o amava, apesar de ter se relacionado com tantos outros garotos? Ao clicar sobre a foto, muitas outras aparecem, como se ali estivesse o dossiê completo do caso que eles tiveram.

Gabriel novo, com uns 18 anos, em um shopping do centro da Capital; no interior, em cima de um cavalo, com ele ao lado; na viagem à Europa, quando visitaram a bela terra de Camões e comeram os deliciosos pastéis de Belém ao lado do Rio Tejo ou à porta do Coliseu de uma Roma apaixonante... Quantas recordações! Meus Deus! Ele tinha tudo do rapaz. É como se Nathalia nunca houvesse existido em sua vida. Isso seria possível? Sim! Apesar de ser muito cruel.

Continua a empreitada, as imagens são muitas, mas para diante de uma, que o abate com violência. Nela está o bombeiro, ensanguentado, entregue à própria sorte. Era para ser sua última foto em vida. As palavras da mãe de Gabriel lhe retornam, como se quisessem confrontá-lo por todo o mal que fizera ao seu filho. Não suportando a agonia, ele cai sobre a cama, respira fundo como se a vida fosse lhe faltar e, quando se dá conta, está em outra dimensão, entregue às dores de um passado ensandecido.

A noite zomba dos tolos que encontram nos santos de barros a cura para todos os males da humanidade. As corujas piam ao som dos prantos que se levantam a cada corpo encontrado no desmoronamento em que estão Gabriel e sua equipe. A chuva não cessa, novas tragédias são aguardadas durante a noite.

Exausto, o jovem bombeiro pede para se ausentar por alguns instantes, precisa comer algo, está há horas sem se alimentar. Ao aproximar-se de uma das viaturas, é surpreendido pela figura nada ingênua do motorista.

_ Marcos, o que faz aqui?

_Vim buscá-lo! Seu Leonardo não está bem - dissimula o criado.

_ Como assim? Você está me assustando...O que tem ele? Eu o vi no cair da noite, quando esteve aqui e, pelo que me parece, estava muito bem. Você mesmo viu, nós brigamos! Não entendo o que se passa, seja mais claro, por favor!

_Depois que saímos daqui, seu Leonardo chorou muito, não acreditava poder perdê-lo; sentiu-se inferior, assim como um inseto, por ter sido trocado por essa gentinha... esse povo!

_ Pessoas estão soterradas, algumas ainda vivem debaixo dessa lama e, naquele momento, uma criança resistia à morte, salvá-la era meu dever. O que ele queria que eu fizesse? Que eu a deixasse ser devorada pelos vermes e caísse em seu colo, como um daqueles amantes alencarianos desalmados? Ó, me desculpe, Marcos, mas amar o próximo, estender-lhe a mão quando mais necessita faz parte de mim, de minha essência!

_ E abandonar o homem que mais o ama nesta vida durante um enfarte também?

_Enfarte???- atemoriza-se o herói da plebe. _O que você está dizendo?

_Tão grande foi sua dor, Gabriel, que ele enfartou durante o retorno a Alphaville.

_ Meu Deus!- as mãos escondem-lhe a face. _Eu nunca pensei que isso fosse acontecer... E onde ele está agora?

_Enfrentou a própria mulher para que eu viesse buscá-lo...Será sua última despedida!

_Mas...mas...mas... é tão grave assim? – indaga o rapaz, com os olhos anuviados.

_Os médicos lhe deram mais algumas horas de vida!

_ MEU DEUS!

O choro penoso de uma mãe o atrai. Com o filho de oito anos morto sobre os braços, ela cobra de Deus explicações para tal crueldade, como se sua desgraça fosse uma sentença divina. Comovido, Gabriel dá alguns passos em sua direção, mas a imagem de um Leonardo adoecido o faz recuar. Ainda que os gritos dos soterrados lhe aflijam os ouvidos e a dor de uma mãe ao perder um filho lhe mortifique o coração, partir é o seu destino, pois o homem que ama agora agoniza à sua espera.

_O senhor irá?- cobra o empregado, com um estranho sorriso nos lábios.

_Sim!- responde, virando-se.

Marcos abre a limusine. Os bancos estão forrados por uma capa plástica escura, causando estranheza ao bombeiro, que nada pergunta, está às vias de perder todas as forças.

Os minutos se perdem na imensidão das horas...

O rapaz adormece profundamente. Vendo-o pelo retrovisor, Marcos, por um breve momento, sente pena, enquanto para o carro ao lado de um orelhão.

_E o otário? – pergunta Leonardo, ao receber a ligação.

_Dorme como um príncipe...ou seria princesa? – ironiza o serviçal, para o deleite do patrão.

_E o que fez para tirá-lo do meio daquela gentalha?

_Contei-lhe uma daquelas lorotas quem derretem o coração dos apaixonados.

_Como assim? Não entendo esse linguajar de boteco, fale como gente, animal!

_Disse-lhe que o senhor havia sido vítima de um enfarte, tal era o sofrimento ao ter sido deixado de lado por um bando de marginais...

_ E daí? – inquire, alterando o timbre da voz para o escárnio. _O que aconteceu?

_ Como o senhor está nas últimas, chama-lhe o tempo todo, ainda que isso cause profundas feridas no coração de Dona Nathália.

O empresário ri com gosto da maldade contada pelo empregado.

_Você foi genial, Marcos! Merece um bom aumento!

_O senhor sabe que eu não quero aumento algum, quero é minha carta de alforria, pois a liberdade me espera!

_"Libertas quae seras tamem"– debocha o patrão.

_ Deixe de piadinhas, senhor, quero minha liberdade! Sonho com isso todos os dias.

_ Mas você é livre, a escravidão já não existe mais neste país tupiniquim, fora banida há séculos por uma excêntrica que se intitulava princesa...

_Não me refiro à essa escravidão, mas àquela que é alimentada pela chantagem.

_Hum! Faça o serviço bem feito, quem sabe dessa vez, os ares da liberdade resolvam baixar em seu terreiro.

O chofer emudece.

_Marcos! – chama o empresário, alguns segundos depois.

_Sim senhor! – responde, visivelmente decepcionado.

_Sirva-se da máscara que deixei no banco da frente e não deixe rastros, o serviço deve ser fiel ao roteiro original. Quero esse infeliz estirado ao vento o quanto antes...Hum! Terá o castigo que merece por ter me tratado como um qualquer. Sou Leonardo Médici, dono de metade desta cidade e não será um Gabriel da vida que me fará venerar os vermes que estão a fenecer nas entranhas daquele morro.

_ O senhor tem certeza disso? Não quer esfriar a cabeça? Logo tudo isso passará...

_Quem pensa que é para tentar me persuadir? Tolo! Coloque-se no seu lugar!

_Só pensei...

_Pobres não pensam; pensamos por eles. E para falar a verdade, desta praga já suguei toda a essência de que precisava, só lhe resta a embalagem, porque do conteúdo já me esbaldei até a última gota.

_Se o senhor está dizendo...

¬_Cumpra conforme o determinado.

_Sim senhor!

O telefone é desligado.

O motorista cruza uma extensa avenida que dá acesso à favela Pantanal, em Cidade Júlia, divisa da zona sul da capital com o município de Diadema. O tráfico se levanta com o som do motor da limusine. Olheiros estão por todas as partes. Homens armados se arranjam no topo dos becos, prontos para dispararem ao primeiro sinal.

Relâmpagos clareiam o céu. O vento traz de novo a garoa, que lambe com vontade o corpo daquelas criaturas desumanas. Um garoto de uns catorze anos, de figura esquálida, com um bermudão vermelho fazendo combinação com uma camiseta regata da mesma cor e um chinelo meia sola, portando uma dessas metralhadoras só vistas nos filmes do Rambo, põe-se à frente do veículo, forçando a sua parada.

Marcos abre de ímpeto o porta-luvas e dele retira um embrulho. O garoto se aproxima, bate no vidro com o cano da arma. Ao seu redor, saídos da escuridão, mais três outros moleques, também magricelos, maltrapilhos, sujos, com armas em punho, como se a vida se resumisse apenas ao disparo de suas balas. Um retrato perverso da pobreza desse imenso e rico país.

_Abri logo, mané, senão eu ti encho di furo...- ameaça aquele que se pôs à frente do carro, para a alegria dos companheiros, que demonstram já não suportarem o desejo de meter suas balas na cabeça de algum filhinho de papai.

_Tá louco, Coroné? – pergunta Marcos, ao abrir o vidro. _Sou eu, o Faísca.

_Mais é ocê, truta? Eu nunca que ia te reconhecê num carrão desse. Por acaso robô ondi? Fala aí, irmão...

_Por onde andava, Faísca? – pergunta Pau d’água, o mais alto do bando e talvez o mais velho, achegando-se. _Mais tá gordo, hein? Devi di tá comeno carni a semana toda, né, vagabundo? Aí, como saiu da cadeia? Num tinha pegado trinta anos?

_Tive a ajuda de Deus!- limita-se o empregado.

_Sei! De Deus i da bufunfa...

_É verdade!- concorda o motorista. _E a mina, continua gostosa?

_Dei um fim nela dia desses, catei ela com um tipo da rua de cima...Cê sabi, né, posso sê criminoso, mas corno, nunca!

_Gostei de ver! – parabeniza o empregado com um grande sorriso na face.

_ Mai o que te traiz a essas banda onde Juca perdeu as bota e a muié? –pergunta Coronel.

O sono pesado de Gabriel o impede de assistir às cenas que precedem aos seus últimos minutos.

_Preciso da ajuda de vocês! – diz, entregando o embrulho ao líder da gangue.

_ Pois fali, nóia, semo todo ovidos! – atende Coronel com satisfação, ao perceber que dentro do saco havia uma fortuna em cruzados.

_ Tá vendo o fulano que dorme aí atrás???

_Sei...

As horas cavalgam...

A limusine chega a um barraco, numa ribanceira, dezenas de léguas da entrada da favela, em uma região conhecida como “depósito de corpos”, onde até mesmo a polícia se acovardaria a desbravar.

Marcos desce do carro, olha para os lados, não há ninguém. Abre a porta do passageiro, chama pelo bombeiro, que só desperta na terceira ou quarta chacoalhada.

_Hã?! Onde estamos? – pergunta, bastante sonolento, saindo do carro.

O empregado não responde. Antes que uma nova pergunta pudesse ser formulada, Gabriel é golpeado na cabeça com um pedaço de telha por um dos garotos, que demarca a área com disparos ao céu.

O bombeiro ensaia uma resistência, mas a dor o aniquila. Antes de se render, encontra os olhos do empregado, que reluzem como fogo na escuridão. Ali percebe ter caído numa emboscada, cujos motivos ainda lhe são ignorados.

_O que acontece..?

_Acalme-se!- ordena o chofer, numa voz beirando à loucura. _Você não gosta da plebe? Pois então, o meu patrão lhe enviou esses filhos do lixo para saciá-lo, já que você prefere a carnificina do morro à fragrância doce e irresistível dos grandes e luxuosos apartamentos por onde um dia ousou pousar suas asas.

_ Leonardo...- Gabriel desmaia com um segundo golpe na cabeça.

Os garotos o levam para dentro do barraco. Por todos os cantos há sobras de construção e alguns móveis envelhecidos. A impressão era a de que alguém havia ocupado os cômodos do casebre, porém, flechado talvez por uma ameaça, caíra no mundo, deixando o pouco que tinha para trás.

Pau d’água despe o “herói da plebe” a mando de Coronel, sendo o primeiro a violentá-lo. Em seguida, como se cumprindo um ritual, apresentam-se os outros. Sob o efeito de entorpecentes, zombam do corpo do pobre homem, que desacordado, não reage à agressão. A selvageria, em seu espetáculo mais desumano, é fotografado pelo motorista, a pedido do patrão.

_Gostei, Faísca! Servicinho bão esse que tu nos troxe. Gastei as energia da semana...- escarnece Coronel, com um papelote de maconha entre os dedos. _E agora, o que cê qué que nóis faiz? Só mandá!

_Quero que vão embora! O serviço de vocês terminou.

_ Comu? Já? Mai nóis pensou que ia ferruá a cabeça dessi infeliz como naqueles firme do Rambu!

_Não! Esse serviço é meu! – responde, cuspindo sobre o rosto da vítima.

_Mai é memu? Num tem jeitu di nóis dividi u sirviço? Pô, cara, tô com mó vontade de vê os miolo dessi cara pipocá pelas parede...

_Já disse! O resto do serviço é meu! Entendeu? – brada o motorista, pondo a mão na arma que está presa à cintura.

_ É melhó a genti i imbora, Coroné, sabi como o Faísca é, né? O bicho não vali um traqui, se resorve atirá, mata nóis tudo!

_ Tá certu!- concorda o rapaz, ao avistar Marcos se preparando para sacar a arma e derrubar impiedosamente as vidas ali presentes.

_ Agora vão!- ordena o serviçal.

Mesmo contrariado, Coronel é levado pelos comparsas acovardados pela habilidade de Faísca com a pistola.

Marcos abre a limusine, retira a capa plástica que se revela um invólucro para defuntos, retorna ao barraco, saca a arma, carrega-a apenas com uma bala – um costume seu, gira a roleta e a engatilha. Todo o processo é acompanhado por espantoso prazer.

A passos lentos aproxima-se do bombeiro e ri ao vê-lo todo ensanguentado, pois não há satisfação maior do que ter a certeza de que uma alma boa poderá também ser condenada ao esquecimento por toda a eternidade.

A máquina fotográfica é posta em uma metade de pia pendurada à parede, enquanto o calibre da arma corre o corpo do rapaz até encontrar a cabeça. Roça seus cabelos com uma frieza de causar inveja até mesmo a João Acácio Pereira, o Bandido da Luz Vermelha, um dos maiores criminosos da década de 60.

_ Bicha! Vou despachá-lo dessa para pior...Será minha carta de alforria, o meu passaporte à liberdade.

Com a arma engatilhada rente à nuca de Gabriel, prepara-se para o tiro de misericórdia. Prestes a dispará-la, é surpreendido por um trovão, que sacode a terra e o desconcerta; momento ideal à reação da vítima, que recobrando a consciência, reúne todas as forças em um golpe fulminante que o joga longe. Asfixiado, Marcos solta a pistola, que comandada por forças divinas, atinge o chão e dispara contra o teto a única bala.

Possuído pelo ódio, Gabriel quer apenas vingança. Ignorando a dor e o heroísmo quase mitificado pelos atos de bravura, serve-se de um pedaço de lajota, cuja ponta, afiada como a de uma faca, crava o joelho do motorista.

O grito é medonho. Acuado, Marcos tenta, desesperado, atrair a atenção de Coronel e de seu bando, que já vão longe.

_ Por que, Marcos? Por que fez isso comigo? Eu nunca lhe fiz mal...- exige o bombeiro, pegando-o pela gola e o imprensando contra a parede.

_Piedade! - suplica o chofer, já não sentindo a perna atingida.

_Piedade? Seus gestos monstruosos me fizeram esquecer o significado dessa bela palavra.

_ Eu não tenho culpa, só fiz o que mandou o doutor Leonardo...

_Leonardo? Ele não enfartou? Era tudo mentira? Tudo era mentira! Por quê? O que eu lhe fiz para merecer tal castigo? O quê? Fale!!!

O silêncio do chofer o enlouquece. O motorista rasteja até a porta, quer se livrar do monstro que se emerge daquele corpo outrora salvador.

_Vixe, o Faísca não perdoa memu, né, Coroné? Os grito do cara estão batenu nos meu zovido – comenta Pau d’água, ouvindo a gritaria.

_ Se é! – confirma o líder. _Ele é um fominha, tamém queria podê ter vomitado minhas balas naquele frutinha...Mai vamu ino, temo muito pó pra vendê.

E se embrenham pelos barracos do morro, desaparecendo na escuridão.

Caindo em si, Gabriel chora ao ver o motorista gemendo diante de seus pés, suplicando clemência. Incapaz de findar o homicídio, abre a porta e sai. A chuva lhe vem de encontro. Leonardo, o amor de sua vida, havia-lhe assassinado não o corpo, mas o coração. Descontrolado, olha o céu com desdém e grita. Mas quando ele menos imagina, o chofer reúne toda sua experiência no mundo da bandidagem, levanta-se e o acerta a cabeça com um tijolo. O bombeiro cai.

A ópera do desespero, cujas notas inspiraram Edvard Munch28 na criação de O Grito, uma das gravuras mais aclamadas da crítica moderna, ecoa pelo tempo, prenúncio de que o portal que separa a vida da morte, a esperança da descrença, a vitória do infortúnio, a fragrância da podridão, novamente se abrira para a passagem de uma carruagem envelhecida, conduzida por um chofer coberto por um manto negro, adornado com penas de urubu e essência de enxofre, tendo nas mãos cadavéricas o sangue dos grandes holocaustos humanos.

As trombetas tocam, os anjos choram, o paraíso entra em crise e o inferno saboreia o momento, logo uma de suas vítimas também cozinhará no grande caldeirão da maldade, para onde se encaminham as almas perdidas. Gargalhadas de regozijo se confrontam com lágrimas de misericórdia.

O tilintar da carruagem estremece o corpo de Gabriel, que se contorce, como uma cobra acuada, tentando se libertar de uma sina sem volta.

Os olhos saltitam reluzentes diante de uma face devastada pela vermelhidão. A saliva desce desatinada pelos cantos da boca, o ar já não encontra os pulmões, o coração bate descompassado, como se quisesse sair pela boca... Seu fim já é aguardado, a carruagem está aberta, com o chofer à porta, pronta para aprisionar sua alma e condená-la à dor eterna.

_Marcos, ei, meu filho, se levante, o que foi? – corre Jacira ao seu socorro, após encontrá-lo caído no chão._ Vamos, se levante!

_Já estou bem! Pode deixar!

_Oxi! Caiu a pressão, foi? – olha para os lados e vê sobre a mesa o notebook do patrão. _Então é aqui que estava o computador? O moleque está louco à sua procura, teme que o pai lhe dê uma sova.

Marcos até tenta fechá-lo antes que Jacira veja a imagem, mas não consegue.

_ O...o...o que é...é isso??? – balbucia, horrorizada, diante do suposto assassinato de Gabriel._ Fale, homem! Que droga é essa? – aproxima-se da tela. _ Mas...mas é o tal do sujeito!

_Acalme-se, mulher! Esqueça isso!

_Como esquecer? O bicho tá todo esfolado neste barraco! Quem fez isso? E por que esta foto está no computador do seu Leonardo?

Não demora a matar a charada.

_Não pode ser! – faz o sinal da cruz. _ Além de morder a fronha, é assassino? E este nome aqui? – arrepia-se toda. _ Quem escreveu isso? – aponta para a pasta. _ Fale.

_Que nome? O Desbravador de Identidades? – pergunta, receoso.

_O moleque me contou tudo, queria mostrar a conversa, o que eles chamam de histórico, mas como o computador não abria, despejou logo tudo. Ele foi levado a acreditar que alguém o desejava. E esse alguém se apresentou com esse nome. Como isso, criatura? O que está acontecendo aqui? Como pode ele me falar desse tal de desbravador e o nome dele estar no computador de seu pai? Responda, criatura, antes que dê cabo de sua vida agora! Você não sabe do que sou capaz de fazer para proteger meu moleque. Pois abra o bico já antes que...que...Quem é esse tal de Desbravador??? Responda!!!

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28 Antecipador e um dos criadores do expressionismo, Munch foi pintor e gravador de angústias existenciais e ameaças invisíveis. Junto aos dramaturgos Ibsen e Strindberg, sintetizou o fin-de-siècle escandinavo.