'É ASSIM QUE DEVE SER' - CAPÍTULO 20

No one on earth could feel like this

I'm thrown and overflown with bliss

There must be an angel

Playing with my heart

I walk into an empty room

And suddenly my heart goes boom

It's an orchestra of angels

And they're playing with my heart

(There must be an angel - Annie Lennox)

Sou arrastada do carro até a porta da sala onde me agarro às grades de ferro enquanto sinto arder meu couro cabeludo tamanha a violência com que ele puxa meus cabelos. É óbvio que haverá um perdedor nesta luta e sei que serei eu, no entanto, não sou e nunca fui de me deixar vencer sem antes lutar, logo, eu me apoio à maçaneta de metal como se disso dependesse a minha vida - E DEPENDE. Angustiada e aterrorizada, como uma égua selvagem, eu o golpeio na boca do estômago com coices violentos. De costas para ele, eu ouço sua risada sarcástica e quero gritar, no entanto, me calo. Sinto muito por ter deixado minhas botas na boate. Se estivesse com elas, eu perfuraria sua pele e teria mais chances de sair daqui sem que ele alcance seu sórdido objetivo. Meu rosto banhado por lágrimas amargas sente uma lufada de vento frio vindo do jardim, antes tão bem cuidado por minha tia. Ainda resta a Bougainville cercada pela grama alta que deixei de aparar por falta de tempo. O movimento dos ramos finos e altos, cheios de flores rosas entregues à dança. A árvore inteira se bate contra o muro da casa vizinha, soltando uma chuva de folhas miúdas e trêmulas que parecem me dizer que, assim como ela, eu posso ir de um lado para o outro, a despeito de minha vontade, mas possuo pés firmes, fincados na terra que me fazem voltar à posição inicial e recomeçar.

Penso em gritar, mas meu grito sai fraco porque desisto antes mesmo de completar a palavra 'socorro'. Por um instante, eu me esqueço de onde estou e por quem estou cercada: meus vizinhos 'amáveis' que não me dirigem a palavra, mas falam de mim pelas costas. De nada adiantaria gritar. Eles não me ajudariam. Jamais o fizeram. Em quem eles acreditariam? Na filha enjeitada, prostituta, acolhida por uma ótima família que lhe dera todas as chances para se reabilitar ou no bom rapaz, belo, bem vestido, formado em uma das melhores faculdades do país e dono de uma cadeia de restaurantes onde trabalha, dia após dia, a fim de ajudar o pai doente a se recuperar?

Não adianta gritar ou lutar contra o inevitável. Solto as grades e me deixo arrastar pelo braço, aos solavancos, sussurrando que ele pense no que está prestes a fazer. Seu lado monstruoso não tem ouvidos, então, mais uma vez, eu me calo. Ainda que eu saiba que meu tio não me possa ouvir, temo que algo o perturbe e acabe por acordá-lo. E, se acaso, isso acontecer, não me perdoaria por não estar ao seu lado.

Minha mãe costumava me advertir de que, se eu levasse uma surra das meninas que não gostavam de mim no colégio, ao chegar à minha casa, levaria outra dela também. Logo, crescera embrutecida, revoltada, atacando antes de ser atacada. Acerto seu olho esquerdo com meu punho cerrado antes de voar de encontro à cabeceira da cama com a cotovelada que recebo abaixo do queixo. Mordo minha língua quando caio de rosto no colchão. A língua esbarra nos dentes tingidos de vermelho, então sinto o gosto quente de ferro na boca. Ainda tonta, ergo, com força, a perna ereta e a ponta do meu pé o atinge na bochecha. Seu pescoço gira bruscamente para o lado. Ele se demora, olhando para um ponto fixo no guarda-roupas. Acho que enlouqueceu. A loucura típica dos que tudo têm quando querem ter e quando não o conseguem, usam da violência física contra os mais fracos. Não comigo. Não mesmo. Subo no colchão e como uma leoa, voo em suas costas, agarrando-o pelo pescoço, minhas pernas enroscadas em sua cintura. Ele apoia suas mãos ágeis e fortes em meus antebraços e, de imediato, curva o tronco para frente. É tudo tão rápido que nada vejo. Apenas ouço o baque surdo das minhas costas contra o chão. Arregalando os olhos, puxo o ar, num desespero, pela boca aberta, como uma asmática em crise. Mal presto atenção à dor lancinante nos ossos fortes que possuo. Concentro-me em voltar a respirar enquanto me arrasto pelo piso em madeira até a porta. É quando sinto o peso de seu coturno contra minha coluna vertebral. Sou obrigada a parar porque ele está firmemente decidido a parti-la ao meio caso eu não o obedeça e fique onde estou. Enfim, ofegando, movo os braços esticados, as mãos que tentam, em vão, alcançar a porta entreaberta que, com um chute dele se fecha num estrondo. Percebo que há poeira embaixo da cama de seu quarto quando ele pisa em minha cabeça e minha bochecha é pressionada contra o piso liso e frio . Sinto-me vencida quando meus olhos se distanciam. Percebo que estou só nessa luta injusta, logo, relaxo meus músculos parecendo um tapete estendido na entrada de seu quarto. A desesperança me inunda como ondas turbulentas. Ele sorri enquanto fala. Um humor distorcido. Ele ri de mim, olhando diretamente nos meus olhos, tomando-me em seus braços, colocando-me na cama. Com uma calma sombria, diante de minha total apatia, ele retira minha calça jeans e a arremessa do outro lado do cômodo. Suas mãos rudes rasgam brutalmente o tecido de minha camisa enquanto beija, com doçura, a minha testa, retirando, delicadamente, meus óculos tortos com uma lente rachada, que ele faz pousar sobre o criado-mudo. Seu rosto oculto pelas sombras me faz estremecer. Mexo a mandíbula, então, certifico-me de que nenhum osso se quebrou, embora o gosto do sangue ainda esteja em meus lábios inchados. Seus olhos brilham como reflexos de vidro na escuridão. Suas palavras ressoam como as de um fantasma quando diz com a mão apertando, levemente, o meu pescoço.

- Enfim sós.

É quando tudo tem início.

***

Não sei há quanto tempo estou neste quarto ou o que se passou quando desmaiei após ver seu punho bem próximo aos meus olhos. A dor causticante seguida do estalar de ossos foram as últimas recordações que me vem à mente. Meu corpo todo dói como se eu houvesse passado dias com uma febre alta fruto de alguma virose potente. Meus músculos estão estranhamente relaxados. Sinto-me sem forças para me levantar. Um torpor confunde minhas ideias e a minha visão distorcida enxerga seu vulto que se aproxima vagarosamente. Cerro os olhos, tentando me manter calma. Inspiro profundamente quando seus dedos deslizam dos meus pés até o meio de minhas coxas. Enojada, viro o rosto para não sentir seu hálito de uísque. Seus lábios tocam o meu pescoço e, então, eu levo a mão à boca, contendo a ânsia de vomitar e pôr todo meu asco e ódio para fora. Ele me toca delicadamente e, ainda assim, eu sinto dor. Uma dor de quem fora usada de maneira constante e com voracidade. De súbito, flashes de seu corpo sobre o meu e a sensação de ser rasgada ao meio quando ele me invade com brutalidade e fúria. Tudo parece fazer parte de um pesadelo. Um pesadelo muito lúcido do qual eu quero acordar, conquanto me sinta sonolenta...dopada.

- Vou trabalhar e já volto. - Murmura ele, beijando o topo de minha cabeça. Eu franzo o cenho sem olhar para ele que se afasta, rindo, deixando um rastro de sua loção pós-barba. - Pode demorar, baby, mas a gente vai voltar a se acertar. - Atesta ele cruzando o batente da porta. - Até a noite. - Ele me lança uma piscadela antes de me deixar a sós no quarto que, um dia, fora nosso. Meus olhos estão pesados, no entanto, ergo meu tronco com a ajuda das mãos. Recosto-me à cabeceira, retirando o lençol que cobre meu corpo nu. Minha mão cobre a boca e sufoco um soluço. Há manchas roxas por quase toda a extensão de minha pele. Fruto da briga que tivemos ou da força de suas mãos contra a minha carne enquanto eu estava apagada. Enojada, encolho as pernas e as abraço, encolhendo-me, desnorteada. Olho para o lado e vejo, sobre o criado-mudo, cartelas com a metade de seus comprimidos ainda intactos. Então, suponho, a julgar por minha lerdeza, que a outra metade fora usada por mim enquanto eu estava longe daqui sob seu poder insano. Ele me dopou com seus remédios de tarja-preta com o propósito de me machucar e saciar sua fome insaciável por sexo, usando-me da forma que lhe desse prazer. Ao pensar nisso, salto da cama e tento correr até o banheiro da suíte. Cambaleando e sem forças nos músculos, caio de joelhos, apoiando-me nas mãos e despejo tudo ali mesmo, bem no meio do quarto, a boca azeda, cheia de vômito. Diante do espelho acima da pia, encaro meu rosto lavado, a pele das bochechas avermelhada, irritada pelo atrito de sua barba mal feita durante um tempo que não consigo me lembrar. Volto ao quarto, mais lúcida, disposta a limpar o que sujei. Ajoelho-me e antes de recolher o que vomitei com a ajuda de um pano umedecido, percebo em meio ao líquido de cor indefinida, parte das cápsulas do psicotrópico que não foram ingeridas.

Havia um tempo em que fazíamos amor. Havia um tempo em que ele apenas olhava para mim e eu, excitada, transava com ele por vontade própria. Havia um tempo em que, mesmo sem querer que ele me tocasse, eu me dispunha a lhe proporcionar prazer porque éramos amigos, companheiros e, por vezes, até mesmo, comparsas.

Tempos que não voltam mais.

Chegar a esse ponto faz com que eu me sinta culpada. Não sei de onde vem a culpa, mas ela preenche grande parte do meu ser. Relacionamentos abusivos deveriam pesar sobre os ombros dos que abusam e não nos de suas vítimas. Talvez eu não me sinta a vítima. Talvez eu tenha provocado essa atitude. Talvez eu esteja procurando uma desculpa para não odiá-lo tanto em nome dos velhos tempos. Em nome da minha tia, mãe dele. Talvez eu esteja procurando motivos que o exima de culpa por não querer sair daqui por meu tio, por mim e, talvez, por ele também. De uma forma ou de outra, sinto-me um lixo, mesmo após ter tomado banho e esfregado a esponja com tanta força em minha pele que a água que cai sobre ela provoca ardência e, por mais que eu esfole a minha pele, nada...nada vai poder limpar o que sinto aqui dentro da minha alma: sujeira, nojo, raiva e impotência.

Eu não valho nada para ninguém, nem mesmo para mim. Era ele quem deveria se sentir assim. Então, por que eu me sinto tão envergonhada, humilhada e sem vontade de seguir adiante?

- Chega. - Declaro sem ânimo, cobrindo meu corpo marcado, com um vestido velho e puído como o meu coração e sigo, aflita, em direção ao quarto do tio. Com sorte, ele não vai abrir os olhos e perceber os hematomas em meu rosto e eu não terei de inventar desculpas idiotas à única pessoa neste mundo que ainda me ama, de verdade. - Tio! - Exclamo, petrificada, ao abrir a porta de seu quarto. Minha pulsação acelera a tal ponto que sinto minha jugular latejando. - Aimeudeus...- Murmuro, puxando o ar pela boca, levando a mão ao peito porque nada, nada poderia me preparar para o que estou vendo diante de meus olhos. - O senhor está...- Dou uma pausa porque meu queixo cai.

- Sentado? - Ele complementa e me olha com os olhos que sorriem. - Venha até aqui, filha. - Ele estende os braços e, como se nada o tivesse imobilizado durante meses, ele os abre como quem espera por um longo e forte abraço. Abano a cabeça como se quisesse espantar uma abelha irritante e, aos poucos, caminho em sua direção. - Não sou um fantasma. - Afirma ele e o som de sua gargalhada me faz voltar à vida.

- Tio! - Exulto, envolvendo-me em seu abraço. Um abraço tão forte que, por instantes, fico sem ar com os olhos esmagados por seu peito que bate em descompasso. Ele afrouxa os braços, então eu volto a respirar. As palavras saem entrecortadas por soluços e risos descontrolados. - O senhor tá curado! O senhor tá curado! - Não posso compreender o que se passa diante de mim e, para ser bem franca, não quero ter contato com o racional neste momento, porque meu tio está de volta, cheirando a talquinho de bebê. - O senhor tá curado! - Repito, abobalhada.

- Não, filha. - Diz ele, num tom melancólico enquanto me afasta com as mãos em meus braços. Quero voltar a abraçá-lo porque não quero ouvir outra verdade além daquela que meu coração quer gritar para que todos ouçam: Meu tio está curado!

- Eu sempre soube que isso era reversível! Eu falava pro Fernando, mas ele ria de mim. Falava com minhas colegas no trabalho, com Doc. Aimeudeus! - Bato palmas, num frenesi. - O senhor e o Doc precisam se conhecer! Vcs têm muito em comum. Posso trazê-lo aqui, tio? Eu posso cozinhar pra vcs. - Ele, de olhos fechados, parece cansado, no entanto sorri, compassivamente, - Não! Nós dois! - Concluo. - O senhor e eu podemos assar uma lasanha!!! - Pulo, repetidas vezes, o mais alto que posso, abrindo as pernas num polichinelo invertido. - Isso! O senhor cozinha e eu lavo os pratos como antigamente! Como antigamente! - Ele revira os olhos, pacientes. - Tô falando sério! - Garanto, envolvida por uma onda de afeição.

- Filha...- Rodopio pelo quarto sem lhe dar ouvidos porque algo em mim conhece a Verdade. - Por favor.

- Vai ser supimpa! Nós dois juntos! Uma dupla dinâmica! Isso é um sonho e eu não quero acordar! Não quero! Posso chamar o Doc, tio? Ele é imenso! Tão grande quanto o seu coração! - Paro diante dele, suada, cabelos desgrenhados, um sorriso no rosto dolorido. Um olho repuxando, a língua que volta a sangrar. - Posso? - Sorrio com a boca fechada, o sangue se misturando à saliva. - Vai ser demais. - Desabo no colchão, braços abertos, olhando o teto, imaginando como serão nossas vidas agora que ele está de volta.

- Me ouve, Giulia. - Seu pedido é carregado de seriedade...quase temor. Arrepiando-me dos pés à cabeça, sinto que algo passa por mim e foge pela porta que bate sem que haja vento ou motivo para que ela tenha se fechado sozinha. Embora saiba o nome do vulto, não me atrevo a pensar nela. Meu tio está vivo, bem diante do meu nariz e é nisso que me concentro quando ele me diz baixinho. - Eu não faço ideia de como estou aqui e nem de quanto tempo tenho, por isso, preciso ser rápido...

- Mas, tio! - Acaricio seu rosto rosado, beijando suas bochechas, arrumando a gola de seu pijama listrado enquanto ele tenta parar minhas mãos afoitas e calar a minha boca. Ele me conhece o suficiente para saber que estou tentando esconder as marcas do que seu filho me fez quando abro as cortinas e escancaro as janelas por onde o vento entra dissipando o cheiro que a Morte deixara no ambiente. - Dama-da-Noite! - Exclamo saltitante, eufórica, prestes a dar uma pirueta quando ele volta a me assustar, paralisando-me uma segunda vez. Fecho as cortinas num repente para que o ambiente escuro esconda os hematomas. - Não. - Sussurro fantasmagoricamente, arregalando os olhos, abrindo a boca que não se fecha até que ele caminhe, vacilante, até mim e, com extremo carinho, segure meu queixo com seus dedos delicados, abrindo um sorriso tímido e inseguro. - Tio. - Suspiro. Minha visão embaça e um incômodo nó na garganta me faz prender o choro. - Isso é um milagre? - Ele abana a cabeça numa negativa. - Um sonho?

- Também não. - Replica ele, entrelaçando suas mãos frias entre as minhas mãos trêmulas. - Preciso falar com vc. - Ele as aperta como o fazia quando estávamos em meio a muitas pessoas e notávamos algo de engraçado em alguém e não podíamos falar, logo, apertávamos as mãos como um sinal de que estávamos pensando a mesma coisa. Compartilhando do mesmo segredo. Sempre fomos amigos inseparáveis. Mais do que isso! Éramos almas gêmeas que se encontraram em um domingo chuvoso para nunca mais nos afastarmos um do outro. Talvez, por isso, Fernando tenha tanto ciúmes de nosso relacionamento. Ele gostaria de ter o que tenho com meu tio. MAS.NÃO.TEM! E NUNCA TERÁ! - Giulia! - Arquejo, surpreendida com seu grito. - Preste atenção. - Ordena ele, num tom mais baixo, fazendo-me sentar na beira da cama enquanto ele se senta na poltrona onde minha tia gostava de ficar até de madrugada lendo seus livros de magia. - Filha, me ouça sem me interromper. Vc acha que consegue? - Ele me faz rir com seu jeitinho de me olhar de baixo para cima, erguendo, exageradamente, uma das sobrancelhas, estreitando os olhos tão azuis quanto os do filho, só que muito mais doces. - Consegue? - Repete ele num tom sombrio. Eu assinto, amassando minhas mãos aflitas, encolhendo os ombros, o corpo todo se tremendo de alegria, entusiasmo e uma pitada de medo. - Então me ouça.

- Fala, tio. - Acomodo-me em seu colchão, cruzando as pernas, erguendo o tronco, olhando para ele sem me desviar um só momento de sua expressão serena que, aos poucos, torna-se piedosa. Seus olhos rastreiam meu rosto, então eu meio que jogo meus cabelos para frente, de modo que cubram parte dele. A parte mais golpeada. - Pode falar, tio. - Afirmo, pigarreando.

- Foi o Fernando. - Diz ele, apontando para o meu rosto.

- Não! - Solto uma gargalhada, batendo as mãos nas coxas. - Não mesmo! O senhor me conhece. Sabe como sou estabanada. Eu vou contar de um tudo. Lembra aquela escada... - Antes que eu comece a mentir ele me faz parar com um ligeiro aceno de mão. Então, eu me calo. Meus ombros se curvam e, balançando a cabeça em anuência, deixo que a vergonha tome conta de mim.

- Vc não deve mais permitir que ele faça isso. - Abro a boca para defender seu filho, mas, diante de seu olhar de reprovação, volto a fechá-la. - E vc sabe disso. Não posso te contar o que vejo ou como vejo. Nem eu sei ao certo como isso acontece. - À medida em que ele fala, meus batimentos cardíacos vão acelerando e meus olhos estatelados não param de apreciá-lo. - E eu sinto que não tenho tempo pra te explicar, filha. Está tudo escrito no diário. - Seus olhos incidem sobre a parte lateral do colchão para onde olho sem nada entender, então, aflito, ele continua e eu volto meu olhar atônito a ele. - Vc vai entender quando o ler.

- Para, tio. O senhor mesmo vai me dizer. - Asseguro. - A gente tem muito o que conversar.

- Por favor. - Implora ele. - Não me interrompa. Temos pouco tempo. - Inspiro e expiro com dificuldade. O ar no cômodo engrossa como algodão fechando a minha garganta. - Nós dois sabemos como Fernando é e sabemos, também, que ele não vai mudar. Sua tia e eu o criamos de maneira errada. Não é culpa dele. É toda nossa. Mais minha do que dela. - Sua voz assume um tom áspero e firme. Seu cenho carregado me faz querer abraçá-lo até que ele pare de falar, porém, ele prossegue, com pressa, receoso, olhando para a porta a todo instante. É quando eu salto da cama como um gato assustado e, num pulo, alcanço a porta e a tranco, girando a chave na fechadura por duas vezes.

- Pode continuar. - Assevero, recostada à porta fechada, as mãos espalmadas na madeira como se nada pudesse atravessar a barreira que erguera entre a Escuridão e meu tio. - Aqui ele não entra.

- Vc absolutamente precisa parar de se submeter aos sofrimentos que ele lhe impõe. Vc não nasceu para servi-lo. Vc precisa se libertar dele o quanto antes. Sua tia...- Ele parece prestes a dizer alguma coisa, mas hesita. Um instante depois, continua. - Por mais que vc tenha em mente que nos deve algo, vc não deve! Tire isso de sua cabeça. Viva a sua vida. Não se envergonhe do que é ou do que já fez. - À esta altura, estou chorando como uma criança, de volta à cama, cobrindo o rosto, curvando o tronco para frente até que a minha cabeça encoste nas pernas cruzadas. - Vc é motivo de orgulho, meu anjo.

- Não, tio. - Choramingo, sem levantar a cabeça. - Me perdoa. - Ele se ergue da poltrona e, com a agilidade de antes, senta-se ao meu lado e me acolhe em seu peito macio onde me deixo ficar por um tempo incalculável até que minhas lágrimas cessem. - O senhor sabe de tudo? - Pergunto, assoando o nariz na barra do meu vestido.

- Sim. - Diz ele, suavemente, beijando meu lindo olho inchado rodeado por tons de um roxo-esverdeado, enxugando minha pele com a manga de seu pijama. - E nada do que vc tenha feito ou ainda faz me envergonha porque é feito com um propósito nobre. - Vou erguendo a cabeça até que nossos olhos se encontrem. Eu o amo tanto! Tanto! Tanto! - Eu me orgulho de vc, filha.

- Tio, o senhor sabe o que faço pra viver? Tipo...- Hesito. - O que eu realmente faço?

- Sei. - Responde ele, com naturalidade. - Vc dança. Dança como a bailarina que sempre foi.

- Mas tio! - Replico, lamuriosa.

- Não importo onde dança ou como dança ou ainda, para quem vc dança. Vc simplesmente dança. - Conclui, afastando a franja de minha testa franzida, meus olhos questionadores. - Como eu sei? É isso que quer saber?

- SIM! - Exclamo, desconfiada e fascinada. - Por San Juan Diego!!! Não me diga que o senhor além de ver à distância, ainda lê pensamentos??? Eu tenho um amigo...digo...não. Não exatamente tenho. Digo. Eu não tenho, mas gostaria de ter. Ah! - Jogo a cabeça para trás, revirando os olhos. Estou confusa. - Eu conheço...não. - Bufo, exaurida. - Calma. - Digo a mim mesma. Então, continuo. - Eu quase cheguei a conhecer alguém que também lê mentes. - Termino, estampando um sorriso idiota no rosto. Meu tio parece me compreender porque me olha de esguelha como o fazia quando eu tentava esconder alguma travessura que havia cometido quando pequena. Ruborizo, baixando os olhos. - Ele parece ser um bom homem. - Murmuro.

- E ele é um bom homem.

- Como sabe?! - Ofego, extasiada.

- Não sei. - Ele dá de ombros, sorrindo. - Só sei que sei.

- O senhor o conhece? Sabe onde mora?

- Não, filha. Me ouve.

- Então então...- Abro a boca sem encontrar palavras. - Tio. - Enfurno os dedos no cabelo em desalinho, a cabeça se movendo, os olhos girando num ângulo de cento e oitenta graus como um robô em curto-circuito, e intrigada, questiono. - Como sabe disso tudo? O senhor ficou nesta cama durante meses. Não saiu daqui pra nada. Eu estava aqui. Eu cuidei do senhor. Eu...

- Isso não importa. - Suas mãos voltam a segurar as minhas. Seus olhos se abrem desmesuradamente e, em sua expressão, eu vejo a angústia. Suas palavras saem apressadas e impregnadas de pavor quando ele me abraça e sussurra em meu ouvido. - Já não posso mais falar. Agora é tarde.

- Não, tio! O senhor vai ficar aqui, comigo. - Apoiada em meus tornozelos, eu o envolvo em meus braços, beijando seus cabelos com cheirinho de lavanda. - Eu não vou deixar o senhor partir novamente. - De chofre, ele me empurra. Eu caio de costas no colchão, perplexa. Ele aponta para a janela. Seus olhos vão de um lado ao outro como quem rastreia um perigo iminente. - Tio...- Balbucio. Ele leva o indicador à boca pedindo silêncio. - Tio??? - Ele se deita, cobrindo-se como antes. Eu me desespero e me ajoelho ao lado de seu tronco. Seu diafragma se movimenta como o fole de uma sanfona. - Levanta, tio. Por favor, levanta. - Eu passo o braço embaixo de suas costas tentando reerguê-lo. Ele faz força para baixo. Nossos olhares se cruzam. Seus olhos estão marejados. Suas feições repletas de sofrimento. As mãos na barra do cobertor logo abaixo do queixo. - O que tá acontecendo? Eu não tô entendendo...- De supetão, sua mão me puxa pelo pescoço, até que sua boca se encoste em minha orelha. - Não se esqueça do que vou te dizer agora, filha. Nunca. Não se preocupe comigo. Apenas não se esqueça. Promete?

- Tio. - Agoniada, tento me livrar de sua mão em meu pescoço e não consigo. A força que o move é tão intensa quanto o medo que ele sente. - Fica calmo. - Digo, baixinho, ouvindo o trinco da porta se mover bruscamente e, antes de Fernando surgir no quarto de maneira ameaçadora, ouço a voz de meu tio pela última vez e suas palavras, embargadas entre as lágrimas, eu as levaria para o túmulo.

- Aqui...embaixo.

Então, ele me deixa, mergulhando no Sombrio.

***

Na mesma noite, Fernando parece ter se esquecido 'Mr. Hyde' no portão de nossa casa e me trata com carinho. Eu vejo a felicidade em seus olhos brilhantes quando ele fala do pai e de sua súbita melhora. É contagiante sua alegria. Tão contagiante que chego a me esquecer da dor nas costas enquanto ele me abraça forte, pedindo perdão por todo o mal que me causara. "Eu não tenho controle", diz ele, chorando, de cabeça baixa.

- Deixa pra lá. - Dou de ombros enquanto procuro minha camisola. Estou tão feliz por meu tio ter voltado que, sinceramente, já nem me importo com que acontecera naquele quarto onde não pretendo dormir hoje porque quero estar ao lado do tio a noite toda para, quando ele acordar, ser a primeira a lhe dar um beijo naquela bochecha macia somente para ouvir seu risinho tímido e saber que sou amada. Realmente amada por ele, sob quaisquer circunstâncias.

- Vc não se importa? - Pergunto a Fernando que insiste que eu siga com meu plano, levando meu travesseiro e o edredom entre os braços. O edredom costurado e remendado com o qual me cubro ainda que não esteja tão frio assim. Eu o tenho desde criança e se há algo naquela casa que guarda todas as boas impressões de minha infância feliz é o meu edredom de borboletas coloridas. Bem, já não tão coloridas assim. - Obrigada. - Digo a Fernando no corredor, em frente à porta do quarto de seu pai. - Durma com Deus. - Murmuro, desviando meu olhar ainda magoado de seus lindos olhos azuis.

- Cuida dele, Giulia. - Sua mão se sobrepõe à minha na maçaneta e, por segundos, nossos olhares se encontram e posso jurar que reconheço o homem por quem sempre fora apaixonada. Ei! Ele não me chamou de 'Baby'. Isso pode ser um bom sinal. É. Um sinal de que sou tola o bastante para voltar a confiar nele. ACORDA! - Prometo que daqui por diante, tudo vai melhorar. Meu pai nunca mais vai voltar a sofrer. - Assinto, abrindo um sorriso patético, embora sinta os pelinhos de minha nuca se arrepiando quando vou fechando a porta, vendo-o de pé no corredor. - Prometo. - Garante ele, com uma expressão enigmática em seu rosto, segundos antes de perdê-lo de vista.

Fico ali, deitada ao lado de meu tio, quietinha, com a mão sobre seu peito, exatamente acima de seu coração onde sinto suas batidas compassadas. Aconchego-me ao seu corpo para que nada ou ninguém o tire de mim.

- Nossa vai mudar, tio. - Garanto, num sussurro, já sonolenta. - Ah, se vai.

A imagem do garçom sem rosto surge em minha mente, minutos antes de eu adormecer, sorrindo.

"Carlos"

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 05/07/2020
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