'É ASSIM QUE DEVE SER' - CAPÍTULO 17

'I been searching for you

I heard a cry within my soul

I never had a yearning quite like this before

Now that you are walking right through my door

All of my life

Where have you been

I wonder if I'll ever see you again

And if that day comes

I know we could win

I wonder if I'll ever see you again'

(Again - Lenny Kravitz)

Contra o vento, corro até ele. Logo adiante, a velha árvore retorcida, frondosa, cuja copa vermelha encanta meus olhos cheios d'água. Meu coração pulsa nos ouvidos. A cada passada, meus pés descalços sentem o frescor da relva. A escuridão da noite me cerca, mas não tenho medo porque sei que vou encontrá-lo. O uivo de um lobo distante, o corvo num dos galhos longos da árvore. O clarão vindo da caverna à direita da árvore me causa desconforto. Parece-me um portal para algum lugar ao qual não quero retornar. Uma dor no peito, um forte cheiro adocicado, enjoativo chega com a brisa. Meus cabelos esvoaçam à medida em que corro, aumentando a velocidade, a ansiedade em abraçá-lo. Eu o vejo próximo à árvore. Abro um sorriso confiante. Apresso o passo. Sua silhueta esguia recostada ao tronco me traz calma, uma paz morna que desaparece quando percebo que quanto mais eu corro, mais eu me distancio dele. Aflita, continuo a correr e a gritar por seu nome. Há pedras pelo caminho. Esbarro em uma delas, rompendo o tecido da camisola, arranhando a pele da minha perna. Sem me importar, ainda correndo, estico meus braços como se assim, pudesse atraí-lo até mim. De repente, o ar se torna pesado, quase que irrespirável. A luz intensa vinda da abertura entre as rochas vai perdendo seu brilho, sua força. Da árvore cai uma chuva de folhas malhadas, trêmulas revestindo o chão, agora, pintado de laranja e marrom, crepitando enquanto as piso. Nuvens carregadas cobrem as estrelas e um frio súbito percorre meu corpo coberto pela camisola longa, branca, mangas compridas. Estaco, num repente, levando as mãos às maçãs do rosto. Ouço minha respiração ofegante. Deslizo os dedos até a garganta, a pele quente, as lágrimas que seco com o dorso da mão. 'Giovanni', murmuro receosa, os olhos rastreando o perigo que me cerca. Não estou só. Pequenos pontos luminosos piscam como vaga-lumes, à minha roda. Lanço outro olhar mais atento e constato que são olhos. Pequeninos olhos vermelhos, à espreita. Abafo um grito de horror. À minha frente, uma substância suave e sobrenatural vai se formando, diáfana e imensa, concentrando-se, a cada segundo. Vou seguindo, com os olhos incrédulos, a presença incômoda, a maldade que dela emana. Quero mover os pés que se afundam na terra escura e pegajosa como areia movediça. Minha boca se abre, a voz não sai. Um odor fétido penetra minhas narinas, causando-me repulsa. Vejo seus pés em forma de cascos, os pelos grossos nas pernas arqueadas, o tronco expandido e musculoso, os braços longos querem me abraçar. Instintivamente, jogo meu tronco para trás. Meus pés estão presos à terra, logo, desequilibro-me e caio,batendo a cabeça contra a pedra. Emito um gemido de dor, porém, o medo é maior do que a ardência da fenda aberta no couro cabeludo, então, cubro parte do rosto com o antebraço. A voz gutural chama por mim. Eu a reconheço de imediato. Está muito mais grave do que o normal, no entanto eu a conheço. Jamais me esquecerei dessa voz e, por isso, não quero abrir os olhos comprimidos pelo pavor intenso que ela me causa, trazendo-me lembranças de um passado de sofrimento.

Ga'al, o demônio a quem eu invoquei continua vivo e ainda me quer. Injustiça! Por ele, eu padeci. Por ele, meu Giovanni partira sem mim. Por que me olha desse jeito? Por que estou diante dele? Por que ele está livre? Ele está entre mim e Giovanni a quem não consigo ver.

- Não fale comigo. - Imploro, cerrando meus olhos aterrorizados. A figura pede que eu os abra. Há malícia em cada sílaba que ele pronuncia. Há também melancolia. Engulo em seco e, aos poucos, vou abrindo os olhos, percorrendo seu corpo, dos cascos à cabeça. No rosto peludo, há algo de humano. Os olhos azuis se abrandam com uma tristeza infinita. Os lábios finos, rosados parecem macios. Odeio o jeito como me olha. Lascivo, perverso, porém, quando ele estende seu braço para mim, vejo também a amargura em seu semblante monstruoso. - Eu não te perdoei. - Rosno como um cão raivoso. - Eu nunca vou te perdoar. Vc o tirou de mim. Vc acabou com a minha vida. Levou o meu filho de mim. - Urro de ódio. - Inferno! Sai da minha frente! - Num movimento brusco, livro meus pés da terra úmida, arrastando-me para longe dele, apoiada em meus cotovelos. A camisola branca borrada pelo marrom da terra, manchas de sangue seco na parte inferior do pano. - De onde vem esse sangue? - Atordoada, toco no tecido imundo que se cola à pele do interior das minhas coxas. A mancha avermelhada se espalha, úmida, quente. Estou sangrando. - Não chegue mais perto! - Aviso, pondo-me de pé, comprimindo meu ventre com as mãos, a cólica tomando vulto, as lembranças explodindo em minha mente como fogos de artifícios. Giro meu corpo. Uma lufada de ar sobe pela montanha, afastando o cheiro pesado por um instante. Deparo-me com um vasto oceano obscuro, ruidoso, o vai e vem das ondas que se chocam contra os rochedos lá embaixo. Está escuro, frio. Estou à beira de um precipício. Mais dois passos e posso cair, voando como uma pena. - Não. - Emito um gemido lamurioso, cerrando os olhos desgostosos. - Por favor, não. - Revejo o filho abortado, a agonia em fugir de Ga'al que o matara, o desespero em largar as mãos escorregadias de Giovanni, seu último olhar antes de cair. - Não. Não não não. - Confusa, ando de um lado para o outro, os dedos enfurnados na vasta cabeleira negra. - Eu não o larguei.- Paro, comprimindo, com os dedos, minhas têmporas. - Ele me soltou para que eu não caísse com ele. Foi isso. - Admito, baixando a cabeça. - Agora me lembro...

O riso triunfante de Ga'al logo atrás de mim, seu braço estendido oferecendo ajuda. Meu sorriso triste, a loucura, o vazio, meus braços abertos em cruz, o corpo tombando para trás. O vento frio contra as minhas costas. O voo livre do topo do penhasco, a sensação de liberdade. O desejo de reencontrar o único homem a quem amei e a quem traíra por querer libertá-lo da prisão injusta. O violento encontro contra as pedras, a Escuridão, a Inconsciência, a Solidão que parecia eterna...o Resgate. - Eu nunca vou te perdoar! - Grito, erguendo a cabeça, voltando a ele meus olhos cheios de ira. Ele avança em minha direção. Ouço um ruído metálico. A corrente enrolada ao seu pescoço se estica puxando-o violentamente para trás. Ele urra de dor e cólera enquanto voa contra o chão, de onde volta a sorrir para mim. Um sorriso insidioso, asqueroso. - Monstro. - Digo entredentes. - Morra, desgraçado! - Apoiado nas mãos, ele curva o tronco lentamente, pondo-se de joelhos, meneando a cabeça, um riso mudo, a cabeça baixa, os chifres grossos e ligeiramente enrolados até a ponta. Ele volta a me chamar. Eu o odeio a cada vez que diz o meu nome como se tivéssemos alguma ligação além do ódio que vislumbro na contração de seus olhos e em seu jeito de baixar um pouco a cabeça e me olhar por baixo das sobrancelhas grossas, bem delineadas. O braço peludo se estica, a mão se abre. As unhas negras e longas, a palma da mão rosada como os lábios. 'Eu te amo', diz a fera, mirando-me intensamente. Piedade, ódio e ternura se misturam dentro de mim. Ouço o pulsar frenético da minha jugular. Minha cabeça lateja. - Quem é vc? - Murmuro, cheia de medo. Ele nada responde. Limita-se a me observar. Levo o dorso da mão à testa. A febre não cedera. Meu corpo estremece. Outro jato de sangue escorre por entre minhas pernas. Desorientada, giro em torno de mim mesma, procurando por Giovanni. Uma dor aguda. Eu grito quando percebo meu braço lanhado por sua unha. O sangue escorrendo pelos meus dedos, banhando o solo imundo. Num impulso voraz, o demônio se apoia nas mãos, aproximando a cabeça disforme do sangue. Contenho a ânsia de vomitar quando o vejo sua língua lamber a terra com meu sangue. Sua cabeça se ergue, então ele abre um lento sorriso diabólico. Ele afirma que sou dele e que jamais pertencerei a outro homem. Afasto-me, horrorizada. - Maldito...- Balbucio, enojada, entontecida, desnorteada, perdendo, aos poucos, os sentidos.

- Espera por mim.

- Giovanni...- Surpresa, minha voz sai tão baixa quanto um sussurro. Estou em seus braços que me amparam antes da queda. - Por que demorou? - Digo, sorrindo, cerrando os olhos pesados. - Não me deixa. Não me deixa. - Repito, aspirando seu perfume amadeirado, sentindo-me sumir, cair, desaparecer. - Não me deixa...não me deixa.

NÃO ME DEIXA!

Grito, abrindo os olhos aflitos.

- Baby? - Ergo meu tronco, de súbito. O rosto suado, fios de cabelo colados à testa. Arfando, olho para o Cristo pregado à parede acima da porta. - Foi só um pesadelo, amor. - Diz ele, sentado ao meu lado, beijando minha bochecha, ajeitando meus cabelos desgrenhados. - Deita de novo. Sua febre já passou. - Ele toca em meu queixo, beijando a minha boca. - Deita.

- Não...me deixa. - Repito, intrigada, sonolenta. Partes do sonho ainda estão fervilhando em minha memória. Tenho vontade de escrever tudo em meu diário, mas, Fernando está ao meu lado, com aquele olhar fixo que me dá medo. O olhar que antecede algum ato de violência. Alguma explosão. Então, vou me esquecendo do que ouvira no sonho e repito as únicas palavras das quais me recordo. - Não me deixa.

- Não vou deixar. - Fernando afirma, elevando o canto da boca. - Eu tô aqui. - Seu braço envolve a minha cintura e, vagarosamente, ele me conduz de volta ao travesseiro. - Foi um pesadelo. Só um pesadelo. - Ele se inclina sobre mim. Cada braço ao lado do meu corpo. A luz do abajur clareia seu rosto, seus olhos ávidos me observam como se eu fosse uma refeição prestes a ser devorada. Sua mão toca meu rosto umedecido pelo suor e vai descendo, alisando a camisola até o meu joelho. Reteso meus músculos guardando a terrível impressão que sentira no sonho. - Eu vou cuidar de vc. - Murmura ele em meu ouvido. Ele molha seus lábios com a ponta da língua e com severidade no semblante, ele diz. - Eu te amo, baby. Eu cuido de vc. Sempre cuidei. Pra sempre vou cuidar. - Aprovo com a cabeça sem olhar para ele.

Um rápido e forte arrepio toma conta do meu corpo. Fernando me cobre com seu edredom e continua a me observar, deitado de lado, apoiado em seu cotovelo. Isso me incomoda de alguma forma...me intimida. Fecho os olhos, sentindo seu corpo se juntar ao meu por debaixo dos lençóis. Ele me deseja. Dá para sentir pelo seu membro enrijecido roçando minha pele. Eu sei que a qualquer momento o meu sossego irá terminar. Ele não vai suportar ficar sem me tocar por muito tempo. Em breve, voltarei a ser sua escrava em troca de um teto onde morar, da boa comida, da vida confortável que seu dinheiro me proporciona. A grana que ganho como streaper jamais pagaria as roupas que uso ou o que gasto com meu tio, embora, para isso, eu tenha que roubar dele. Eu roubo do filho para cuidar do pai, já que Fernando não paga nada além de seus remédios que o deixariam dopado se eu não resolvesse guardá-los em uma gaveta trancada à chave, caso meu tio venha a apresentar um comportamento agressivo. Impossível. Meu tio? Nunca! Meu tio não vai morrer antes da hora. Não se eu puder evitar, então, eu danço para pagar por seu tratamento. Pelas terapias que o fazem interagir com o mundo aqui fora. E, por falar nele, penso que deve estar esperando por mim no quarto escuro, solitário. Fernando parece querer ler o que penso, pois não tira os olhos flamejantes de cima de mim. Eu os sinto fixos à intimidade entre as minhas coxas. Minha trégua está se findando. A qualquer momento, o bom menino dará lugar ao louco...ao sádico e eu, terei de ceder. Por enquanto, deixo que me acaricie até que eu adormeça. O que fará comigo enquanto estiver dormindo, pouco me importa. Ele pode ter o meu corpo, mas, jamais terá a minha alma.

Minha alma...

Meu último pensamento é dele. Do homem cujos braços não deixaram que eu caísse. Disso eu me lembro. Quero me lembrar do que ouvira, mas...já me esqueci. Por que a gente se esquece tão rapidamente de um sonho? Foi agora mesmo! Merda. Do sonho ou pesadelo, lembro-me somente do calor de sua voz suave, de seus dentes num sorriso inocente. Da sensação reconfortante de seu abraço.

É tudo o que tenho dele. Seu nome. Daria tudo para me lembrar de seu nome ou do que ele me disse antes de eu acordar.

- Ai! - Gemo quando Fernando desliza seu dedo em meu braço. - Isso dói.

- O que é? - Diz ele enquanto volta a acender a lâmpada fosca do abajur ao lado da cama. - Deixa eu ver isso. - De olhos fechados, deixo meu braço em suas mãos. Quero voltar a dormir e continuar o sonho de onde parei. - Que porra é essa???

- O quê? - Giro meu corpo, assustada com seu tom de voz. O que vejo foge completamente da realidade. Lembro-me de algo ter acontecido no sonho, mas...trazer no corpo físico as evidências de que há algo do Outro Lado? É loucura! - Que porra é essa???

- Não fui eu! Juro! - Ele ergue os braços na defensiva e eu não consigo tirar os olhos aterrorizados do longo e fino arranhão que se estende do antebraço ao meu punho. Sem saber o que dizer, ergo meus olhos e encaro Fernando que parece tão atônito quanto eu.

- Tá sumindo...- Aviso, meio que alucinada. Como um gato assustado, ele salta da cama e corre até a porta. - Vai aonde???

- Isso precisa ser desinfetado, porra! - Ele escancara a porta e sai praguejando, reclamando de meu jeito estabanado de ser. - Vc precisa ter mais cuidado, amor. Parece um moleque. - Sorrio enquanto o vejo procurar na caixa branca água oxigenada, algodão. Eu sinto carinho em seu toque ao cuidar do machucado que já não lateja como antes. Meus olhos estão pesados, então, antes de Fernando terminar o seu sermão de como eu devo andar e olhar para os lados a fim de não esbarrar em tudo o que me rodeia, já estou deitada. - Vc tá me ouvindo???

- Uh-hum...- Balbucio contra o travesseiro.

- Giulia!!!

- Não correr feito louca. Olhar por onde ando e ...- Repito, num bocejo, suas instruções antes de adormecer, sorrindo. Gosto do jeito como ele tem me tratado. Poderia ser assim pra sempre.

Mas, "o pra sempre, sempre acaba".

***

Visto uma calça jeans surrada e uma camisa velha, de malha do guarda-roupas de Fernando que, em mim, fica bem larga e comprida, exatamente do jeito que gosto. Dobro as mangas até os cotovelos. A porra da ferida em meu braço sumira assim como aparecera: num piscar de olhos.

Foda-se!

Dou de ombros, prendendo meus cabelos num rabo-de-cavalo. Ponho meus óculos e passo a enxergar o mundo mais nitidamente. Enxergo, inclusive, o que não gostaria. Pelo espelho, vejo o reflexo de Fernando atrás de mim, em pé, recostado à parede do corredor, braços cruzados, as pernas levemente afastadas. Na boca, um sorrisinho onde o cinismo e a lascívia se misturam perfeitamente.

- O que é? - Resmungo enquanto ajusto o batom 'nude' à minha boca. Com raiva, esfrego violentamente os lábios, dando o último retoque. Odeio batons vermelhos extremos. Só os uso quando ele me pede...ou me obriga. - Não tem o que fazer? Não vai trabalhar? - Com rispidez, pergunto, erguendo um braço de cada vez, borrifando o desodorante em minhas axilas. Ouço sua risada gostosa enquanto abotoo a blusa até a altura dos seios. Ele seria incrivelmente sedutor se continuasse a ser esse homem gentil e bem humorado que ri de cada gesto meu. Porém, eu não me deixo enganar. Mr. Hyde está prestes a surgir, vindo diretamente do inferno. - Para de me olhar, garoto! Quero privacidade. - Digo, apoiando minhas mãos na beira da pia. - Com licença! - Empurro para trás, com a ponta do pé, a porta que não chega a se fechar porque ele se apressa, dando um passo à frente, segurando-a com força. Lá está Mr. Hyde nas mãos que querem me estrangular, enquanto aprecia a minha impotência. - O que quer?! - Confronto-o através do espelho, controlando meus nervos quando o vejo estreitar os olhos analisando-me de cima a baixo, então sorri, inflando, levemente, as narinas. Aham! Conheço todos os seus trejeitos, tiques nervosos, sinais de seu corpo. Este me diz que o monstro está chegando, mas, Dr. Jekyll o controla por algum motivo. Adoraria entender o porquê. - Tô atrasada, Fernando. - Vou falando enquanto passo pela brecha existente entre ele e o batente da porta. Sua loção pós-barba me agrada, porém, me faz lembrar de algo que está aqui, na minha cabeça. Algo ou alguém cujo cheiro adocicado e causticante me causa arrepios. Por quê? Não faço a menor ideia. O que não consigo entender é o fato de que ele, até o momento, não me tocou...sequer tentou. Ele me tem respeitado. Não sei se por imposição do médico que me prescrevera abstinência sexual por um mês devido aos estragos que aqueles malditos me causaram, ou se ele realmente se importa comigo a ponto de frear seus impulsos sexuais doentios durante tanto tempo. Será que ele tem outras com quem alivia sua tensão? Será que Sweet 'Cow' Jane tem cuidado dele durante o meu resguardo? Ela, de certo, está se sentindo a 'dona do pedaço'. Foda-se! Vão todos pro inferno! - Larga! - Grito ao me indignar com a sua mão apertando meu pulso, fazendo-me recuar, bruscamente, até ele. - Tô atrasada, porra!

- Por quê? - Diz ele tão baixo que quase não o ouço.

- Por quê o quê? - Replico, flexionando o braço, forçando meu bíceps na tentativa de livrar-me dele. Estou sendo exageradamente dramática para que ele não perceba o pânico que seus olhos insanos me causam. - Fala! Tô atrasada! - Não é somente sua loção pós-barba que me incomoda. A maneira como me toca, a carência em seu semblante. Tudo o que me fazia vibrar por ele, agora me faz querer ficar longe dele. Por San Juan Diego! O que tá acontecendo comigo?

- Por que sai assim? - Ele aponta o queixo para o meu corpo. E, em sua expressão, há um toque de soberba, desdém. - Parece um menino, uma lésbica. - Reviro os olhos, impaciente, diante de seus preconceitos patéticos. - Por que se esconde nessa roupa de homem? Por que prende seu cabelo lindo e põe esses óculos que te deixam com cara de mochileira, maconheira com destino a Santiago de Compostela?

- Chega! - Puxo meu braço com força. Ele larga meu pulso. Eu penso que nunca seremos, de fato, amigos. Há sempre essa disputa velada entre nós dois. Sempre houve e, certamente, sempre haverá. Isso não é amizade. Amigos querem o bem um do outro. Amigos não rivalizam. Amigos nos transmitem paz, calma, tranquilidade e, a única sensação que não possuo quando estou ao seu lado é a de tranquilidade. Ele odeia me ver feliz, porém, quando me entristeço (na maioria das vezes, por coisas que ele me faz), imediatamente move montanhas para desfazer seus erros e, então, me recompensa. Ele aprecia esse joguinho de gato e rato e eu...eu estou farta disso. Se pudesse, sairia desta casa ainda hoje. Se meu tio pudesse cuidar de si sozinho; se meus pais não me tivessem expulsado de casa; se minha tia ainda estivesse por aqui; Se eu já tivesse grana suficiente. Se se se se se se! Porra! Eu não valho nada! Essa é a verdade! Eu me submeto a ele porque há uma parte em mim, a parte podre, que se alimenta dessa rivalidade. Que adora conviver com Mr. Hyde, o monstro. Eu me odeio por não te odiar.

- Para de me olhar desse jeito. Fala alguma coisa. - Contesta ele. - No que tá pensando?

- Ih! - Exclamo, arregalando os olhos. - Minha mochila! Quase esqueço! - Abro um sorriso sem graça, passando, novamente, por ele que me acompanha feito alma penada. Sigo em direção ao meu quarto e ele, estranhamente, me segue. Entro no cômodo de hóspedes de onde eu não gostaria de sair. Mas, querer não é poder. Não em minha vida. Jogo a mochila nas costas, agastada com sua muda presença. Giro nos calcanhares e, de cabeça baixa, mirando seu relógio de ouro no pulso esquerdo, pergunto. - Vc não vai trabalhar hoje? Tá tarde pra cacete! - Ergo a cabeça e dou de cara com seu olhar desconfiado. Não me intimido, logo, continuo. - O restaurante não abre hoje? Tá de folga? Tá doente? Vc nunca tá aqui quando eu vou trabalhar. Tem alguma coisa errada com vc? Fala logo. Abre essa boca! O que vc tem hoje??? - Ele abre a boca, hesita por segundos, então a fecha novamente. Nossos olhos se encontram. Ele abre um sorriso assustadoramente cativante. Eu ruborizo enquanto o empurro com a lateral de meu corpo para que ele saia do meu caminho. Ele cambaleia. Eu sigo adiante. Eu gosto dele. Sinto falta dele. Sinto falta de nossas conversas, mas não quero que me toque. - O olho do dono engorda o gado! - Aviso, cruzando a porta que me leva à sala de estar. - Puta que pariu! - De súbito, lembro-me do tio, recuando de costas, trombando com ele, logo atrás de mim. - Porra, Fernando! Me deixa!

- A culpa foi sua. - Ronrona ele em meu ouvido. Seus braços envolvem a minha cintura. Dou graças por ter a mochila grudada às minhas costas. Assim, não sinto seu pênis constantemente excitado encostando-se ofensivamente em minha calça. Creio que não conseguirei ficar nua diante dele novamente, embora, para ele, esse detalhe seja facilmente superado. Basta que faça o que mais aprecia: me usar com violência. - Tenho saudades. - Confessa ele, pressionando sua bochecha contra a minha, apertando-me num abraço caloroso. Sua boca mordisca a ponta de minha orelha. Eu me odeio por sentir o mesmo por ele conquanto meu estômago se revolte ao imaginá-lo dentro de mim, repetindo os velhos rituais de selvageria. - Amanhã completa um mês.

- Uh-hum. - Meu coração bate mais forte. Medo? Tensão? Tesão? Sei lá.

- Sabe do que eu tô falando? - Balanço a cabeça numa afirmativa, cerrando os punhos com tanta força que sinto as unhas machucando a pele das palmas de minhas mãos. Eu não quero estar com ele novamente. Eu não quero . Não quero. Não posso. - Mal posso esperar...e vc?

- Eu? - Engulo em seco, pigarreando como um fumante inveterado. Eu quero que vc me solte. Eu quero que vc me esqueça. Eu quero ter muita grana pra sair daqui e levar o tio comigo. - Eu? - Repito, retirando, suavemente, suas mãos de minha cintura. O dourado do relógio reluz sob a luminária do corredor. - Eu...

- Nem pense em fugir, baby! - Eu me viro para ele. Sua voz é doce e seu beijo em minha boca é delicado. Ele me parece tranquilo, provavelmente, de ressaca. - Não gosto quando me olha assim.

- Assim como?

- Com medo. - Ele me responde, mas estou de olho no plafonier em gesso no teto, envolto em teias de aranha. Minha tia odiaria ver o globo da luminária opaco pela sujeira. - Diz. Tem medo?

- De quê? - Forço um sorriso, encolhendo os ombos. Mal escutei o que ele acaba de me dizer.

- Eu mudei, baby. - Assevera ele, roçando a ponta de seu nariz no meu. - Tá com medo?

- Eu? Medo? - Ele desliza seus dedos pela raiz de meu cabelo, até a altura das orelhas, massageando meu couro cabeludo. Chego a revirar os olhos tamanho o relaxamento que seus movimentos provocam em mim. Há algo nele que me enfeitiça e não sãos seus dedos hábeis que continuam a massagem. Havia um tempo em que eu daria um braço para estar onde agora estou. A vida é estranhamente imprevisível. Com a voz fraca e as pernas bambas, minto. - Não tenho medo de nada, Fernando. Nada mesmo.

- Não pense em fugir de mim. - Cochicha ele em meu ouvido.- Eu vou te encontrar. - Engulo em seco, lutando por não me lembrar da pior noite de minha vida. - Aonde quer que vc vá, eu vou te encontrar. - Estou ofegante porque em sua voz soturna há fortes indícios de ameaça. Um homem que fora capaz de me entregar aos chacais sem me resgatar poderia ser capaz de coisas piores. Bem piores se for contrariado. - Vc é minha. Só minha. - Assevera ele, apertando meus braços com força.

- Tá doendo. - Rosno, inflando as narinas. Estou com medo, mas não posso demonstrar, logo, estreito meus olhos e peço, engrossando a voz. - Dá pra largar a porra do meu braço porque tenho que trabalhar?

- Dançando nua em uma boate? Isso é trabalho? - Desdenha ele, puxando-me contra si, encostando meus seios ao seu tórax que se move de maneira alterada. Se tem algo que eu odeio mais do que sua soberba ou o olhar sarcástico que ele me lança agora, é a porra do preconceito contra as meninas com quem eu trabalho. - É sim! É trabalho digno. - Sua boca está bem próxima à minha quando, insultada, explodo. - Pode não ser o mais santificado, mas há respeito entre nós. Há mães de família lá! Mulheres, por vezes, melhores e mais distintas do que aquelas que vão encher a pança em seu restaurantezinho cheio de pompa. Ao menos, as meninas com que eu trabalho recebem pelo que fazem. As granfinas do seu 'ristorante'...- A última palavra sai carregadíssima por meu sotaque italiano da Sicília, terra do meu tio. - Essas patricinhas fazem tudo o que as minhas amigas fazem e, quiçá, muito mais. Elas se vendem de graça, meu bem. São ricas, lindas e burras! BURRAS! - Ele solta uma risada, jogando a cabeça para trás e, quando volta, imprime seriedade em seu cenho quando pergunta.

- Por que não trabalha comigo? - Arquejo, barbaramente surpreendida.

- Por quê??? POR QUÊ??? - De tão exasperada, quase cuspo em sua face. Ele parece gostar de minha revolta, porque está rindo como quem assiste a uma comédia. - Porque vc não me deixou! Lembra??? Lembra que eu te implorei por um trabalho? Qualquer um??? - Suas feições vão se fechando como o céu que acumula nuvens densas. - Eu queria limpar o seu restaurante. Queria lavar os pratos. Eu precisava de grana e sabe o que vc falou??? - Ele baixa a cabeça, enfiando as mãos nos bolsos na calça. Eu movo meus braços enquanto deixo que as palavras escorram de minha boca. - Lembra??? Vc disse que eu não tinha o perfil correto pra trabalhar naquela merda! A porra de um perfil. Até hoje eu não sei o que vc quis dizer! Eu não tinha a porra do perfil pra lavar pratos??? Eu não tinha a porra de perfil pra esfregar o chão???Vc sempre disse que sou bonita, atraente e falo pra cacete! Eu poderia sim trabalhar no restaurante do meu tio! Eu estudei, sacou??? Eu estudei!!! Eu poderia trabalhar na bosta daquele restaurante que o meu tio construiu! - Bato duas vezes com a mão espalmada no peito e repito. - Que o meu tio construiu!!!

- Calma. - Pede ele, com a voz mansa, voltando a tocar em meu braço. Estou absolutamente descontrolada porque toda a humilhação que passara àquela época retorna à minha memória. Eu tinha apenas dezoito anos. Eu queria trabalhar e estudar e dançar. Ser alguém e ele se desfez de mim. Ele me jogou nessa vida. Meu melhor amigo me empurrara à prostituição e fora o meu cafetão e, por causa dele que ferrou com a vida do meu professor, agora danço em uma boate quando deveria estar estudando Ballet na porra da Juilliard! - Não chora, amor.

- Solta a porra do meu braço, bandido! - Grito enquanto acerto a ponta do meu joelho em seus bagos. Eu não queria, mas, ele pediu. Ele se encolhe de dor, escorregando pela parede enquanto recupero meu equilíbrio e o ameaço, chutando a ponta de seu sapato. - E nunca mais me faça lembrar do mal que vc me fez.

- Giulia! - Ouço seu urro, então, rio satisfeita, declarando em alto e bom som.

- Esse é o meu nome, meu bem! Eu vou ver o seu pai. Digo...meu tio. - Ele ordena que eu pare enquanto caminho, leve, solta e ferida por dentro, pelo vasto corredor até chegar ao quarto onde antes, havia Luz. Ele me chama uma segunda vez, num tom enérgico, agachado, com as mãos em seu instrumento precioso. - Shhh! - Giro meu pescoço em sua direção, erguendo meu braço direito, espalmando a mão contra ele que vem até mim com passadas furiosas. - Pare! - Ordeno, imaginando luzes faiscantes e coloridas fluindo vigorosamente de minhas mãos. Ele estaca como se algo o tivesse impedido de continuar. - "Uau!' - Penso. - "Seria fantástico se eu possuísse essa faculdade...tipo 'Carrie, a Estranha'. Eu o arremessaria de volta ao seu quarto e o trancaria lá por dias, meses...talvez anos. Não. Anos não. Meses. É. Acho que por alguns meses". - Vai acordar seu pai. - Advirto-o, num tom baixo, descendo a mão que gira a maçaneta em cerâmica decorada com florezinhas tão delicadas quanto a minha tia. Abro a porta e, de imediato, sinto que há mais alguém no quarto comigo além do meu tio que permanece deitado em sua cama. Finjo não ver a Morte ao passar por ela, escondida no vão entre a parede e o guarda-roupas. - Hoje não, meu bem. - Digo entredentes. - Hoje vc não vai levar meu tio, ok?

Acendo a luz do quarto, sem esperar por respostas.

Verifico sua pressão, sua temperatura. Afofo os travesseiros. A fralda está seca. Seu pijama de bolinhas vermelhas num fundo branco lhe cai muito bem, embora eu o preferisse com seu avental lambuzado de molho de tomate diante do forno, aguardando a lasanha, sorrindo para mim, contando piadas das quais eu ria somente para vê-lo feliz. - Ainda não acabou. - Murmuro contra seu pescoço, aspirando seu cheirinho de talco de bebê. Afago sua testa, beijando o topo de sua cabeça. - Fica com Deus, tio. Volto logo. - Sufoco um grito de horror quando me deparo com a figura sinistra de Fernando que nos observa debaixo do umbral da porra da porta. Sua expressão é enigmática quando ele diz.

- Pode ir. Eu tomo conta dele.

- De jeito nenhum! - Protesto. Ele franze a testa, olhando-me com estranheza. Nunca. Jamais. Em tempo algum. Esqueça. Nem morta. Para de show. Nem vem que não tem. ESQUECE! - Não faz sentido algum. - Declaro, calmamente, dando as costas ao meu tio, olhando ao redor, respirando aliviada por não ter visto aquele vulto agourento no canto do quarto. A Morte se foi. Ufa! - Querido! - Estou sendo sarcástica quando toco em seu queixo. - Não há a menor necessidade. - Retruco, sorrindo. Estou tremendo por dentro porque tenho pânico em deixar meu tio em suas mãos. Não confiaria meu pior inimigo a Fernando. Há uma falsa cumplicidade entre nós dois. Eu finjo acreditar que ele ama seu pai. Ele finge acreditar que eu acredito nisso. - Vc vai tra.ba.lhar. - Decido. - Já chamei a baby sitter. Ela tá chegando. - Arrasto-o pelo antebraço para fora do quarto, apagando a luz no interruptor. - Dorme em paz, tio. - Sussurro levando a mão ao peito que dói ao vê-lo impotente mergulhando na escuridão à medida em que vou fechando a porta. - O que vc quer??? - Cochicho, voltando minha atenção a Fernando.

- Doeu, porra!

- Perdão. - Falo docemente enquanto beijo sua testa, apoiando-me nas pontas dos pés. Ele volta a me abraçar. Eu o afasto com as mãos em seu tórax. Estou confusa, ansiosa, com medo dos meus pressentimentos. Não levem meu tio. Não agora. Por favor. - Vamos! - Exclamo, frenética, assustando Fernando que arregala seus olhos de um azul esfuziante. Vou puxando-o pela mão, conduzindo-o à sala de estar onde encontramos Isabela, a Baby Sitter que masca chicletes e usa roupinhas tão baratas quanto provocantes. - Boa noite, meu bem. - Respondo ao seu cumprimento, medindo-a de cima a baixo. - A vida é curta, mas a sua saia!!! Eu vou te contar, hein???

- Gostei dessa, tia! - Rindo, ela estoura a bolha do chiclete que se gruda ao redor de sua boca. Seus lábios são finos e rosados. O oposto dos meus. Sua pele é lisa, fresca, firme, branca como a neve. A julgar por seu jeito de se movimentar, ela me esconde algo. E se eu a tocar, queridinha? Será que descubro algum segredinho? - A senhora é demais. Super hilária!

- Senhora? - Indago, afrontada. - Não me diga! - Seu olhar é encantadoramente infantil, seus cabelos loiros, encaracolados, despenteados lhe emprestam um ar de deusa grega, louca e inconsequente. Seus olhos estão vidrados em Fernando que finge não ser o alvo da pequena Afrodite. Fernando ainda ri do que falei sobre a saia da pequena cascavel enquanto me dirijo ao portão da garagem, sem a menor paciência em discutir com ele por ter piscado para uma adolescente que mal largou as fraldas.

- Vem, Fernando! - Berro, abrindo os portões de ferro, pesados e descascados, precisando de retoques. Se meu tio estivesse por aqui, ele já os teria pintado. Injusto!!! Tudo na vida me parece injusto. - Diabos! Vou deixar aberto. Saia quando quiser. Já tô mais do que atrasada. - Ele segreda algo no ouvido de Isabela e, logo em seguida, sacudindo o molho de chaves, caminha até mim de um jeito que somente ele sabe fazer. O cafajeste é verdadeiramente sedutor. - Não tem vergonha? Ela é menor de idade, seu imbecil! - Enfurecida, ergo meu dedo em riste que quase encosta na ponta de seu nariz perfeito. - Se eu tiver que despedi-la por sua causa, vc me paga! - Ele sorri, encolhendo os ombros, fitando-me como se eu estivesse falando em 'Massai', durante o ritual de acasalamento do Serengeti. - VC ME PAGA!

***

- Baby! - Grita ele, inclinando a cabeça para fora de seu carro preto, duas portas, rodas cromadas, faróis absurdamente potentes que cegam meus olhos. É praticamente a cópia de um dos diversos carros do ridículo e inútil Batman. Eu já mencionei que eu odeio o Batman? - Quer uma carona?

- Vá pro inferno! - Berro, descendo a pé, a ladeira, com destino ao ponto de ônibus. - Vc e o Batman! Vão pro inferno...juntos!

- Que Batman, baby???

- Não me chama de Baby! - Ele começa a buzinar com uma mão ao volante e a outra ajeitando seu topete impecavelmente alinhado. Se eu tivesse a metade de sua beleza e encanto, eu já teria o suficiente para sair daquela casa, levar o meu tio comigo e esperar...esperar o quê?

- Giulia! Vem, amor! Eu te levo ao seu TRABALHO. - Ele enfatiza a última palavra enquanto eu paro por um segundo e o fuzilo com os olhos em chamas. Ele sabe que não posso ser conhecida como streaper aqui, neste bairro abarrotado de gente preconceituosa. Ele sabe e continua a buzinar, acompanhando-me em seu carro luxuoso até o ponto de ônibus. - Sério...vem. - Ele abre a porta do carro e, com o cenho carregado, vem em minha direção, falando alto, sem controle. - Eu me preocupo com vc. Eu te amo. Amo o jeito como cuida do meu pai. Tenho medo de deixar vc aqui, sozinha...- Eu pigarreio, olhando para os lados. Não quero que o ouçam. Não quero que pensem que ele é um cara legal. Quero dizer a todos que ele é doente, sádico, vil. - Olha pra mim, Giulia.

- Não posso! - Ignoro-o, cruzando os braços, recostando-me ao muro chapiscado de uma casa abandonada. - Meu ônibus tá chegando.

- Não vou te deixar aqui, sozinha.

- O que há??? - Levo as mãos à cintura, fixando-me em seus olhos. - Por que esse cuidado todo??? Não acha um pouco tardio essa preocupação mais do que estúpida???

- Fala baixo. - Ordena ele, diminuindo o tom da voz, olhando ao redor tomado pela vergonha.

- Vai pro teu restaurante, Fernando e me deixa aqui, em paz! - Bufo, revirando os olhos. - Pelo amor de San Juan Diego. Me deixa em paz! - Ele aproxima sua boca de meu ouvido e cochicha.

- Aqui...sozinha com esse cara...nunca.

- Que cara? - Lentamente, giro meu pescoço à esquerda e, então, eu o vejo. Uma lufada de ar morno aquece meu peito. Cerro meus olhos e sinto uma fragrância que me é familiar. - Não seja tolo. - Digo mecanicamente, pois, já não o ouço mais. Minha atenção está presa a um homem cuja solidão dilacera meu coração que volta a bater em descompasso. Isso é bizarro. Eu sequer o conheço e já sinto que devo conhecer mais sobre ele. O homem está sentado em um banco de cimento debaixo da marquise. O tronco curvado, a cabeça baixa, a atenção dirigida a um livro aberto em suas mãos. É inteligente ou, ao menos, tenta ser. Sua cabeça se ergue lentamente. Quase posso ver uma parte de seu rosto quando ele olha para o lado. Estávamos discutindo. Certamente, ele nos ouvira e permanecera em seu lugar. É um homem educado. Posso sentir. Ele volta a se concentrar em sua leitura, movendo seu pescoço. Um movimento simples que me deixa afogueada. Amo pescoços longos e elegantes. Cabelos curtos, a nuca batida. Aquela discreta diferença entre a pele branca do couro cabeludo contrastando com a pele bronzeada do resto do pescoço. As costas largas como a de um nadador, os músculos das costas que se movem com a sutileza de uma bailarina enquanto ele se espreguiça, alongando a coluna. U-au! Apesar da roupa humilde, ele possui a postura de um nobre, um príncipe perdido, solitário, distante de seu reino.

- Giulia!

- Oi! - Digo sem desviar meus olhos fascinados da figura alta e imponente que se ergue do banco. "Olhe pra mim", ordeno mentalmente na esperança de ver se há esperança em seu olhar. IDIOTA! NÃO ME IGNORE! Como se houvesse me escutado, ele gargalha enquanto se aproxima, a passos largos, da beirada da calçada. Certamente, um pai de família exausto, maluco por ter que passar mais uma noite em claro a fim de ganhar um salário miserável ao final do mês. Será que é feliz com o pouco que tem? Será que sua esposa o ama? Seus filhos fazem festa quando ele volta ao lar? Por que esse interesse súbito por um estranho que sequer me olha quando eu ordeno que o faça. Onde estão seus superpoderes??? Hein??? Diga-me!

O homem pobre ergue o braço definido como os de um bailarino. "Musculoso na medida certa", penso e, simultaneamente, ouço outra gargalhada. Será que ele tem superpoderes? Pode me ouvir? Vc é casado? Por San Juan Diego! Que ânsia é essa que me consome??? Aposto que acabou de cortar os cabelos. Cabelos curtos...humm...isso me atrai.

- Para de gritar, Fernando. - Uso o tom mais suave e charmoso em minha voz para que o homem pense que sou absolutamente equilibrada. Estamos os três aqui. É impossível que ele não nos tenha ouvido. - Controle-se, homem. - "Vc me ouve? CÉUS! E se ele for surdo? Burra! Se ele for surdo, seu superpoder ainda pode funcionar já que ele poderá ouvir com a alma. Será?"

"Não sou surdo."

Cambaleio, agarrando-me à alça de minha mochila quando ouço a afirmativa dentro da minha cabeça.

- O que foi? Tá tonta? - Assinto enquanto procuro o ar, inspirando pela boca. Fernando me sustenta, perguntando-me porque estou tão pálida. Ele falou comigo ou foi imaginação? Eu não imaginei essa resposta. Eu juro que não fui eu! - Eu tô ficando puto. Eu vou embora. - Ameaça ele enquanto continua a falar e a gesticular sem que eu tenha a menor ideia do que ele está dizendo porque, por frações de segundos, ao virar o rosto para o lado, eu quase o vejo...novamente. Ao menos, a metade de seu rosto. Um repentino calor se inicia em um determinado ponto em meu umbigo e vai subindo até o meu pescoço. Exalo um suspiro quando o vejo tomar o ônibus...sem mim. Sigo-o com os olhos enquanto ele desaparece entre os passageiros.

- PUTA QUE PARIU!

- Fala comigo! - Insiste Fernando puxando meu queixo para que eu olhe em seus olhos. - Porra! Tô falando contigo. Me dá atenção! Eu mudei. Quero te levar ao trabalho. Quero te dar segurança. Entra no carro! - Suas mãos prendem meus braços enquanto assisto o homem humilde se distanciar. - O que há com vc?

- Eu?

- Sim! - Grita ele, colérico, os olhos congestionados, chacoalhando-me como se eu fosse seu porquinho de cerâmica cheio de moedas. - O que há??? Por que tanto interesse naquele cara???

- Eu??? - Lanço a Fernando um olhar espantado. - Cara??? - Imprimo horror em meu semblante e, com a voz esganiçada, eu minto. - Não sei do que tá falando! Tô puta! - Ele ergue o indicador, apontando-o ameaçadoramente para mim, pronto para contra-atacar. Mais rápido do que um relâmpago, falo antes dele. - Quieto! Vc me fez perder um ônibus que leva hooooras pra chegar! Eu estou atrasada. Agora, por sua causa! - Encosto a ponto do meu indicador em seu peito. Reparo no quão caprichado é o seu visual. Nas roupas de grife, no tecido que lhe cai com perfeição. Lembro-me da camisa puída, porém, limpa do homem do banco. Uma tristeza avassaladora se gruda às paredes do meu coração. Reprimo a vontade de chorar. - O que eu vou fazer? - Falo baixo, olhando para os pés de Fernando que ostentam sapatos lustrosos, caros, de couro. - Não vou conseguir. - Exalo um suspiro, levando a mão ao peito, procurando disfarçar o turbilhão de sentimentos que aquele estranho provocara em mim. - Não vou conseguir. - Não vou conseguir dormir, comer, viver sem que o veja novamente. - Não vou...

- Vai, sim - Fernando me olha com brandura. E eu me sinto uma puta. - Eu te levo, amor. - Arrasada, envergonhada, ultrajada, enfeitiçada e carente, eu me deixo abraçar por Fernando, encaixando meu queixo no espaço morno que há entre seu ombro e pescoço. Graças aos meus óculos, ainda consigo ver o homem, em pé, dentro do ônibus iluminado por lâmpadas fluorescentes. Meu coração quer sair pela boca quando o vejo sentar na parte traseira do veículo, com o rosto virado para trás. Será por mim? - "Hey!" - Dirijo meu pensamento a ele. - "Se consegue me ouvir, levante a mão direita."

Sei que é ridículo. É improvável. É patético e, contraditório são os meus sentimentos, porque estou nos braços do homem que diz me amar e me tortura enquanto aguardo por um sinal de um estranho com quem gostaria de conversar, ao menos, por alguns minutos. Conhecer sua vida, seus desejos, seu estado civil.

- Vem. - Diz Fernando, enlaçando minha cintura, conduzindo-me ao carro. Ele me pergunta porque estou rindo tanto. Eu nada respondo porque não consigo parar de rir. Ele diz que sou louca e que se amarra no meu jeito de ser. Eu continuo a rir, sentada ao seu lado, no banco do carona. Abro a janela, acalmando-me aos poucos, aspirando o doce aroma da 'Dama-da-Noite'. - Vc é maluca. - Repete, olhando fixamente para frente. A pista está livre. O carro alcançando a velocidade de duzentos quilômetros por hora. Fernando dirige como um piloto da Fórmula 1. Perfeito. Assim não vou perder um dia de trabalho. Aqui dentro do meu estômago, há borboletas batendo suas asinhas e uma sensação de que tudo pode mudar a qualquer momento me faz abrir um largo sorriso confiante. - Vc é maluca e eu gosto disso. - Finjo não perceber seus olhares furtivos, lascivos e ressabiado sobre mim. Sua ira contida, seu desejo crescente, sua insanidade são sentidas por mim quando sua mão direita pousa sobre a minha mão esquerda. - Gosto muito.

Mr. Jekyll está chegando, mas, eu não me importo porque alguém, neste mundo, além de mim, possui um dom ou uma faculdade e pode se comunicar comigo. Jekyll, o monstro jamais terá a minha alma, embora vá usar o meu corpo como lhe aprouver e eu vou manter a esperança de reencontrar o homem que lê enquanto aguarda por seu ônibus porque eu sei que ele me ouviu. Ele me ouviu e me tranquilizou quando ergueu o braço direito e, de dentro do ônibus, me enviou um beijo. Não vi seu rosto, mas, agora, conheço seu corpo, seu cheiro, sua fragrância amadeirada.

Não é muito, mas, é mais do que havia antes.

Por que a sensação de um enorme vazio aqui dentro do peito?

Deve ser fome. Fome de amar e ser amada.

Eu vou te ver de novo?

"Vai".

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 15/06/2020
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