Em seus olhos

Antes de iniciarem a leitura gostaria de explicar que esses 2 capítulos correspondem a um romance que estou desenvolvendo. Gostaria que se possível vocês dissessem o que acharam da leitura. agradeço, K.M.M

Em seus olhos

CAPÍTULO 1

Brasil

O relógio da recepção marca dez horas, logo os clientes do horário do almoço vão encher o pequeno restaurante, o que me deixa bastante aliviado já que as contas não param de chegar. Às vezes eu penso em desistir de tudo, mas depois paro e penso que esse lugar e minha filha são tudo que tenho na vida. Então ergo a cabeça e sigo em frente.

_ Márcio termina o molho do macarrão para mim, por favor?

Márcio assentiu com a cabeça enquanto mexia um molho branco em outra panela. Ele trabalhava comigo havia uns cinco anos, era um bom sujeito, quieto, não fazia muitas perguntas e me ajudava bastante. O restaurante não é grande, mas eu tenho mais dois funcionários um na cozinha e um garçom. Eu iniciei esse negócio do nada, comecei trabalhando de garçom e quando tive a oportunidade de aprender a cozinhar e ter meu próprio negócio não pensei duas vezes. No começo minha mãe me ajudou, cuidava da minha filha enquanto eu trabalhava, foi difícil, mais ainda quando a Amanda morreu.

Já faz quinze anos, mas sinto falta dela até hoje vejo muito dela na Luiza, o que me conforta bastante. Foram dias sombrios e difíceis parecia que tudo ia desmoronar eu não sabia como tomar conta de uma criança de dois anos que chamava pela mãe o tempo todo. Se minha mãe não tivesse se mudado para minha casa eu teria enlouquecido.

Aos poucos fomos superando essa fase e as coisas foram seguindo seu curso, os anos foram passando e Luiza se tornou uma mulher linda, inteligente e determinada. Aos vinte anos era uma estudante de enfermagem muito dedicada, determinada, pensava muito em sua carreira, Pedro seu namorado reclamava muito disso. Eu tinha orgulho da mulher que minha filha se tornara.

_Oi pai!

_Oi filha! Como foi o plantão?

_O de sempre. Você quer ajuda? Ela ofereceu me vendo arrumar as mesas.

_Sim se você puder. Vai arrumando as mesas daquele lado lá. Mostrando o lado esquerdo do restaurante. Ela concordou com um gesto de cabeça.

Eu nasci e cresci aqui em Pinheiral, meu pai era marceneiro, mas convivi pouco com ele, quando eu tinha seis anos ele simplesmente saiu para procurar trabalho e nunca mais voltou. Minha mãe, Amélia fez o que pode para me criar, limpou muitas casas, lavou muitas roupas para que nada me faltasse. Quando completei dezesseis anos arrumei um emprego em um mercadinho do bairro, era meio período, mas o dinheiro ajudava bastante. Eu não tenho irmãos, não que eu saiba pelo menos, depois que meu pai foi embora, minha mãe nunca mais teve se quer um namorado ela dizia que não tinha tempo para isso e o tempo foi passando e ficamos só nós dois.

Posso dizer que ela fez um bom trabalho (não sou um modelo de perfeição, diga-se de passagem) me ensinou pelo que vale a pena lutar na vida, mostrou que riqueza é ter aqueles que amamos ao nosso lado. Até hoje sinto saudades das nossas conversas, sinto o cheiro da sua comida e a ternura da sua voz quando falava com a Luiza, quando ela morreu foi bem difícil, principalmente para a Luiza que tinha na avó sua referência feminina.

Quando minha mãe morreu percebi que era hora recomeçar minha vida, já fazia oito anos que Amanda havia morrido também, pensava muito nela ainda, então não era esse tipo de recomeço que eu queria ainda. O que me preocupava na verdade era minha vida profissional, não tive chance de fazer faculdade, terminei o segundo grau (sim sou velho eu sei) e tratei apenas de trabalhar, tinha uma filha e muitas responsabilidades. Precisava de dinheiro para dar conforto a minha família então nunca escolhi trabalho o que aparecesse eu fazia. Mas quase sempre trabalhei em restaurantes, no início de garçom depois de auxiliar de cozinha, pizzaiolo e o que mais precisasse.

Então quando a Luiza tinha 12 anos surgiu à oportunidade de ter meu próprio negócio, no início eu fiquei com medo o que é compreensível. Sempre pensei que só quem era rico poderia ter uma empresa, afinal dinheiro chama dinheiro. Eu atendia muitas pessoas como garçom e via aqueles caras chegarem nos restaurantes em carros caros, pedirem os pratos mais sofisticados e tratarem o dono pelo nome, como velhos amigos. Eu não era exatamente da sociedade, vivia nela, mas era um Zé ninguém. Mas não tinha medo de trabalho, então num ímpeto eu peguei todas as minhas economias e comprei a velha cantina do seu Luís. Era um lugar bastante antigo na cidade, servia almoço e a noite pizzas. Não foi fácil no início (mais de uma vez eu sentei numa mesa e chorei sozinho, pedindo a Deus para me ajudar se ele pudesse me ouvir).

O Dona Amélia inaugurou no dia cinco de Agosto de 2011, não foi nada demais, estou muito longe de ser considerado um chef de cozinha, na verdade eu digo que sei cozinhar, mas isso não quer dizer que minha comida não seja boa, ao contrário é muito bem feita,mas não tem nada demais, é comida simples, do dia a dia, coisas que gente que nem eu come. Arroz e feijão, bife, salada, massa, rabada com agrião, essas coisas.

Quando todas as mesas já estavam com as toalhas postas apenas esperando os primeiros clientes daquele dia. Luiza se aproximou de mim tinha o olhar cansado, mas mesmo assim sorriu, sorri de volta e abracei como se ainda fosse aquela menininha de cinco anos que corria para o meu colo quando sentia medo.

_Tá cansada filha?

_Essa semana toda tenho prova na faculdade, mais o estágio e o Pedro fica cobrando atenção, dizendo que não tenho tempo para ele. Não sei se vou conseguir conciliar tudo pai, eu gosto dele sabe, mas sei lá acho que talvez devêssemos dar um tempo... Será que ele vai entender pai?

Cocei a cabeça, pensei um pouco e depois respondi calmamente.

_Olha filha, eu acho que se ele te ama de verdade, ele precisa entender que esse momento é importante pra você, pra sua carreira no futuro. Vocês têm que sentar e conversar é isso que eu penso filha. Sei que não sou o melhor conselheiro, mas quero que saiba sempre pode contar comigo, com meu apoio. Sorrindo ela me abraçou.

_Você é o cara pai! Te amo!

_ Também te amo minha filha!

_ Você ainda vai precisar da minha ajuda aqui?

_ Não filha! Preciso terminar o almoço, daqui a pouco é meio dia e os clientes começam chegar.

_Tá bem! Então eu vou pra casa descansar um pouco. Qualquer coisa só me ligar.

_Tudo bem! Dorme um pouco, tem comida na geladeira.

Ela assentiu com a cabeça e saiu na porta se virou e rindo me atirou um beijo. Realmente eu tinha muita sorte, minha filha tinha se tornado uma pessoa maravilhosa, olhando para ela agora tinha certeza que se a Amanda pudesse nos ver concordaria comigo. Pensando nisso fui para a cozinha terminar o almoço.

CAPÍTULO 2

Nice- França

_Por favor, cuidado com essas peças! São meus tesouros!

Sempre que estava na véspera de um desfile eu ficava uma pilha de nervos. Embora isso já fosse rotina para mim há alguns anos, mas aquele friozinho na barriga sempre me acompanhava não tinha jeito. Mas esse em especial significava muito para mim era o primeiro desfile que eu fazia com monsieur Chastel na platéia, ele era um dos críticos de moda mais conceituados da Europa, estava à frente da revista Élégance, eu realmente precisava impressioná-lo.

_Belli você está pronta para a entrevista? A pergunta da minha assistente me trouxe de volta para o burburinho que estava aquele atelier.

_ Desculpa Jane, havia me esquecido completamente... Que horas é mesmo?

_Pelo amor de Deus Isabelli! Foi muito difícil conseguir marcar essa entrevista... Todo mundo está com uma enorme expectativa sobre esse desfile de amanhã. A entrevista é às 17 horas hoje na sua casa, esteja pronta, linda e sorridente!

Às dezessete horas lá estava eu na sala de estar do meu apartamento, maquiada, usando um salto e um vestido vermelho exclusivo da minha coleção que seria lançada amanhã no desfile. Enquanto eu esperava a repórter chegar, me servi de uma taça de vinho e fui até a sacada do apartamento, olhando a rua lá embaixo eu pensava na minha vida e aonde havia conseguido chegar. Eu nunca fui pobre, minha família era como se costuma dizer hoje em dia classe média, estudei em boas escolas, fiz cursos, viagens enfim tudo que a maioria das pessoas de classe baixa não consegue fazer.

A moda sempre me fascinou, sempre adorei tudo que envolvia esse mundo e quando tiver a oportunidade dessa paixão ser o meu trabalho não tive dúvidas, mergulhei de cabeça e hoje estou vivendo o ápice da minha carreira. O caminho não foi sereno, para chegar aqui tive que fazer muitas escolhas, algumas não tão fáceis e outras que me perseguem até hoje.

Perdida em meus pensamentos não percebo Rita para ao meu lado me chamando, ela é meu “anjo do lar” faz tudo para mim além de ser muito querida, é como se fosse minha mãe.

_Dona Belli a moça da reportagem chegou, tá na sala esperando...

_ Está bem Rita, veja se ela quer um café, já estou indo.

Ela acenou com a cabeça e saiu, bebi o último gole de vinho da taça, suspirei fundo ensaiei meu melhor sorriso e a segui. A repórter estava de costas observando as fotos dos desfiles anteriores, algumas onde eu aparecia com pessoas famosas da televisão e do cinema. Assim que percebeu minha presença ela se virou com um sorriso na boca que me lembrava o coringa, ressaltado pela maquiagem carregada que usava e as cores vibrantes de batom e esmalte. Devia ter uns quarenta e cinco anos, era bonita, exagerada, mas bonita, os cabelos ruivos vinham até a altura dos ombros, estava acompanhada por um fotógrafo que devia ter a metade da sua idade, nem bonito, nem feio, mas simpático eu diria.

_Querida Isabelli Aubert! Finalmente consegui a entrevista com você! Sua casa é encantadora! Assim como seu trabalho.

_Fico feliz que tenha gostado e que aprecie meu trabalho. Não tem recompensa melhor do que o reconhecimento. Vamos sentar?

Nesse mundo que vivo é importante saber quando devemos interpretar o personagem e quando devemos ser apenas nós mesmos, na verdade acho que a vida em si é dessa forma. Sentamos, enquanto o fotógrafo faz algumas fotos da minha casa, a repórter me enche de perguntas.

_Então... Você nasceu no Brasil? Em qual cidade?

_Sim no Brasil, em São Paulo.

_Sua família ainda vive lá?

_ Na verdade só alguns parentes distantes, meus pais e minha irmã faleceram.

_ E como você se tornou estilista?Você tinha algum parente aqui na França?

_ Fiz um cursinho de corte e costura no interior de São Paulo, depois ganhei uma bolsa de estudos e então decidi que deveria vir para a França o berço da moda.

_ Incrível mesmo! E você nunca pensou em se casar e ter filhos?

Eu detestava esse tipo de pergunta, era meu trabalho que estava em destaque, não minha vida pessoal. Mas era inevitável, sempre perguntavam isso, e o marido? E os filhos? É bom ter alguém na velhice, alguém com quem dividir o sucesso, é o que dizem. Sim realmente seria maravilhoso, mas meu tempo para isso já havia passado, agora era tarde demais para pensar em marido, filhos, uma família. Eu já tinha me acostumado a ser só eu e meus crôquis. Percebo que o cosplay do coringa em versão feminina me observa atenta, esperando uma resposta, esperando talvez um furo de reportagem para sua revista de fofocas. Calmamente sorrio e respondo:

_Não penso muito a respeito disso, meu tempo é curto, o trabalho preenche todo o meu dia, além do mais um bebê nessa idade não seria o ideal.

Ela me faz mais uma meia dúzia de perguntas sobre minha carreira e minha vida pessoal, tento responder da maneira mais polida e educada possível, entre uma resposta e outra sorrio feito uma idiota, me perguntando mentalmente porque Jane me obriga a conceder essas entrevistas onde o foco não é meu trabalho e sim minha vida. Ela sempre diz que isso é bom, me humaniza e faz as pessoas projetarem essa simplicidade no meu trabalho e com isso divulgo de graça minha carreira, ainda mais agora que estou lançando uma linha de roupas com um apelo mais popular.

Agradeço mentalmente quando a entrevista chega ao fim e eles vão embora, vou para meu escritório, estou cheia de trabalho que preciso terminar, na verdade eu nunca paro de criar é uma maneira de me manter ocupada. Diferente do que eu disse na entrevista, já tive marido e uma filha, mas eles morreram, assim como meus pais e minha irmã. Esse é um assunto muito delicado para mim, havia apenas duas pessoas que sabiam Jane minha assistente e Carlo, um amigo muito especial.

Nesse instante parece que adivinhando meus pensamentos meu celular vibra, olho o WhatsApp e é uma mensagem do Carlo perguntando como foi a entrevista se estou bem e se quero tomar um vinho com ele mais tarde. Carlo é um homem incrível que conheci quando me mudei para Paris, na verdade ele não é francês, é italiano, pode se dizer um belo italiano, é alto, moreno, cabelos ondulados que vem até o seu pescoço, além de ser muito gentil e charmoso. Respondo para ele que sim, que aceito tomar vinho com ele mais tarde, sua companhia sempre é agradável e me relaxa.

São quase nove da noite quando Carlo chega trazendo uma garrafa do La Tâche Grand Cru 2000, legítimo vinho francês. Esses detalhes no Carlo me encantam, ele sabe perfeitamente qual vinho pedir, quando deve falar ou quando simplesmente a sua companhia não agrada, jamais levanta a voz, seus gestos são precisos e discretos. Carlo é um homem inteligente, culto, capaz de conversar sobre os mais variados assuntos com qualquer pessoa. Eu amo esse seu jeito, mas não posso dizer que o amo, na verdade ele me encanta e sabe disso.

_Como você está? Disse Carlo

_ Estou muito bem. Cansada e ansiosa para amanhã, mas isso é mais que normal.

_ Você precisa relaxar. Sabe que amanhã tudo sairá como planejado, seu trabalho é lindo e você uma profissional muito competente.

_ Esse seu otimismo me tranqüiliza.

Ele ri e me dá uma piscadela em cumplicidade, jogando charme como sempre. Vamos para a sala, pego duas taças enquanto Carlo abre o vinho, a noite está muito agradável, sentamos próximo a sacada, de frente um para o outro. Meu apartamento fica em uma ótima localização em Nice, na famosa Avenida Promenade de Anglais, não é grande, mas é muito aconchegante e me proporciona uma vista deslumbrante da cidade, além de ser meu.

A conversa com Carlo é tão leve que não vejo à hora passar, quando percebo são quase uma da manhã. Despeço-me do dele, ele pede para ficar.

_Tem certeza que não quer minha companhia?

_Carlo você sabe como eu fico em véspera de desfile, é melhor eu ficar sozinha e descansar um pouco. Ele faz uma careta para mim e sorri.

_Ok. Não vou insistir. Mas se quiser posso fazer você relaxar...

_É uma proposta tentadora, mas outro dia.

Ele me dá um beijo e vai embora e eu para meu quarto, tomo uma ducha rápida, coloco uma camisola e me deito, mas não consigo dormir. Meus pensamentos estão em turbilhão, penso no desfile, na minha carreira e na minha família. Pego as fotos deles na gaveta do criado mudo, sinto tanta saudade dos meus pais e da minha irmã, ela ia amar esse mundo da moda. Olha a foto do meu marido com minha filha ainda bebê no colo, uma das pouquíssimas fotos que tiramos hoje ela estaria com uns vinte anos, seria uma mulher. Às vezes me pego pensando se tudo tivesse sido diferente, provavelmente jamais teria vindo para a França, nem teria me tornado estilista, talvez tivesse conseguido um emprego qualquer em algum escritório ou supermercado teria tido mais filhos ou não.

Mas isso tudo são apenas pensamentos, eu não posso voltar ao passado e muito menos mudá-lo. Só posso rezar para os que se foram e por mim. Guardo as fotos apago a luz e vou dormir, preciso descansar e me desfazer dos fantasmas do passado.

KMachado
Enviado por KMachado em 18/04/2020
Código do texto: T6921140
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.