'MORGANA - VAGANDO'

VAGANDO...

Não sei quanto tempo levei para chegar ao topo daquela montanha. Sequer me lembrava de ter estado lá, antes de pisar na grama verde, macia, inspirar o doce aroma das flores exuberantes que se despediam da Primavera sob o vento frio que soprava do norte. Na verdade, não saberia dizer de onde ou para onde o vento soprava. Nunca fui uma boa aluna em Geografia, mesmo porque, meus pais não me deixavam estudar. Diziam ser desperdício de tempo para quem estava fadada a pertencer a algum bom homem que me sustentasse. Ironia do destino, meu pai. Tu me vendestes ao pior deles na face da Terra, por um mísero saco de moedas de ouro. Padre Pietro conseguia ser mais sórdido do que o próprio Ga'al, o falso demônio. Se tivesse de me orientar através da rota em que o vento soprava, estaria irremediavelmente perdida para sempre em algum deserto ou floresta, pois não tenho a menor noção de onde fica o leste, 'o berço do sol', como diria meu Giovanni. O pobre tentara me ensinar até a exaustão, conquanto não lograsse êxito.

- E se eu não estiver acordada quando o sol nascer? - Eu o provocava, de pé, bem no meio de nosso quintal, braços estirados tal qual uma cruz humana, fitando-o com laivos de luxúria.

- Vc sabe que o sol nasce atrás de nossa casa, Morgana! - Advertia-me, afundando os dentes no lábio inferior enquanto enfiava suas mãos nos bolsos, gesto típico de que sua paciência estaria se esgotando ou que seus instintos selvagens estavam prestes a me saudar. De uma forma ou de outra, ele me deixava sem ar, com o torso à mostra em sua camisa branca com decote em "V" e as maravilhosas mangas bufantes. A voz rouca, exasperada insistia. - O sol nasce atrás da casa, Morgana! - Seu polegar sobre o ombro indicava a floresta logo atrás de si e eu só possuía olhos para o seu pomo-de-Adão que se exaltava a cada palavra dita. - Loooogo!? - Exigia-me raciocínio em um momento de extrema insensatez, o tolinho. - Logo!? - Repetia, inclinando-se perigosamente, num tom de ameaça. - Onde fica o leste, Morgana!?

- Não faço ideia! - Eu replicava, arfante, rindo-me de sua expressão atordoada, a respiração descontrolada, os olhos fixos no abismo entre meus seios cobertos pelo decote de meu vestido. Gasguitando como uma louca, apoiando as mãos no quadril, inclinei meu tronco para que ele pudesse ver um pouco mais do que o vestido escondia. Então, eu o desafiava. - Que diferença fará saber onde ele nasce ou morre? Pouco me importa se o sol nasce aqui ou acolá, meu bem! O que quero está aqui, bem diante dos meus olhos, com ou sem sol! - Ele carregava o cenho, excitando-me ainda mais. - E é de carne, osso e músculos bem torneados! - Atrevia-me a tocar em seus braços e deslizar minhas mãos até as suas, entrelaçando meus dedos aos dele, fitando-o com com uma expectação juvenil. Ambos emudecíamos quando nossos olhos se encontravam e, somente então, ele compreendia minhas intenções. - Não se atreva a me olhar assim, mocinho! - Seus olhos risonhos, sua gargalhada gostosa produzia em mim o efeito das asas aflitas de milhares de borboletas presas na boca de meu estômago. Um passo adiante e meu coração batia descompassadamente porque eu, mais do que qualquer outra mulher, entendia o significado daqueles olhos brilhantes que se estreitavam à medida que escaneavam meu corpo. Nossos jogos eram tão infantis e, ainda assim, tão eróticos! Absolutamente fora de controle, despido de sua altivez de professor, largando, de súbito, aquele par de óculos pornográficos sobre a mesa da varanda, avançava em minha direção, abrindo desmesuradamente os olhos flamejantes que me prometiam mais do que um puxão de orelha. Excitada, eu dava gritinhos eufóricos, escondendo-me nos arbustos, ouvindo-o a ronronar meu nome de maneira avassaladoramente sedutora. Eu me deitaria ali mesmo, miando como uma gata no cio, no entanto, jogar com ele fazia-me rejuvenescer. Correr dele, escapar de suas mãos ávidas, fazia-me voltar à infância; a uma infância que nunca tive. Por entre os galhos das árvores antigas e tortas, eu o provocava como uma adolescente.

- E se eu não estiver aqui onde.o.sol.nasce.atrás.da.casa.? - Novamente levava as mãos ao quadril, requebrando como uma cigana, afrontando-o. Ele sorria, ali, parado, observando-me extasiado. - 'Com o quê, Senhor?' - Eu sempre me fazia a mesma pergunta, pois nunca entendera o porquê dele ter me escolhido entre tantas outras que se jogavam aos seus pés, mulheres ricas, mais bonitas e jovens do que eu. "Magia, Morgana. Vc tem magia", respondia-me ele selando minha curiosidade com beijos atrevidos ora serenos ora devassos.

- Se estiver perdida em uma floresta desconhecida quando o sol já estiver alto? - Arquejava dramaticamente. - Pior! - Aumentava o tom da voz esganiçada - E se estiver vendada? Ou cega!? Como poderei saber se o sol nasce à minha direita ou à minha esquerda? Leste, Oeste, Norte, Sul?! Isso é tão patético! - Dizia eu revirando os olhos, dando a ele a chance de me alcançar tão facilmente quanto um cervo nas garras de um felino. - Giovaaaanni!'

Berrava ensandecida enquanto fugia dele, levantando a barra de meu vestido, pés na grama, solta, feliz, sentindo o vento esvoaçar meus cabelos e tocar o meu rosto corado. Arrepiava-me de prazer e medo olhando por sobre meu ombro, vendo seu vulto se agigantar e me cobrir como um lençol, agarrando-me com a precisão de um leopardo, as mãos cuidadosas, o hálito quente, o perfume amadeirado. Eu mal sentia as costas quando tombávamos juntos contra o chão de terra, rolando como bolas de feno no deserto. Éramos duas bolas de feno felizes e completas rolando na relva de onde não saíamos antes de fazermos amor sob o sol se pondo a oeste, leste, norte ou sul, deixando-nos em companhia das estrelas no céu de um azul estonteante.

Deus...nunca mais eu vi um céu tão estrelado como aquele ou senti uma felicidade tão profunda quanto aquela. Tudo era tão perfeito e, agora, tão distante. Parece ter sido em outra vida, com outras pessoas, em um outro mundo menos cinza do que este que habito.

O vento parece ser o mesmo, mas falta o calor e a mansidão com que tocava minha pele. A relva se embrenha por entre minhas pernas, agarrando-se ao meu manto sujo. Passo minhas mãos em suas folhas e já não as sinto tão macias quanto naqueles dias quentes de verão onde fugíamos de casa, longe dos olhos das crianças que dormiam, e mergulhávamos, nus, no lago, bem no meio da clareira, adentrando a floresta densa. Ríamos juntos como duas crianças travessas até que o desejo tomasse conta de nossos corpos ardentes e, novamente, fazíamos amor.

Era amor o que fazíamos. Amor. Amor. Amor. Por mais que eu a repita, esta palavra não tem sentido sem ele ao meu lado. Sinto uma dor lancinante na cabeça. Passo os dedos no ferimento provocado pela pedra. Um fio está duro grudado ao ferimento. O sangue empedrou. Volto a alisar o topo de minha cabeça. Encontro pedaços dele, espalhados, disformes, desiguais. Extremamente curtos. Tosaram-me como se faz a um cachorro. Não. A um cão, dedicam carinho. A mim, não. Arrancaram-me os fios, cortando-os na raiz enquanto eu, em prantos, implorava perdão pelo que não havia feito. EU NÃO CONTAMINEI A CIDADE. Por mais que eu gritasse, eles não me ouviam. Não queriam ouvir. Já haviam me julgado e me condenado a vagar sozinha sem a única prova de que fui bela um dia. O que restava de saudável em mim, eles deceparam entre risadas histéricas e xingamentos levianos. - Meus cabelos. - Emito um gemido quase infantil. Meu rosto se contrai de dor. Minhas mãos esfregam, num gesto atormentado, o couro cabeludo ainda dolorido, machucado. Curvo meu tronco para frente, cobrindo a cabeça com os braços dobrados. As lágrimas descem, em profusão, até o queixo, e meus olhos enxergam uma gota brilhante escapar para dentro do decote do meu vestido roto, sob o manto vermelho. - Quero meu cabelo de volta. - Imploro, encolhida, vergastada pelo horror. - Ele não pode me ver assim. Ele amava meus cabelos. - Respiro fundo e lanço um olhar odioso para o céu escuro. As gotas da chuva batem insistentemente em meus olhos abertos. Eu não os fecho. Encaro...desafio o Criador. - Por que deixou que me fizessem isso? Por quê!? O que o Senhor tem contra mim!? O que Lhe fiz de tão ruim para guardar tanta ira contra mim!? - Bato os punhos na terra úmida - O QUÊ!? - Eu O amaldiçoo por tudo o que Ele tirou de mim. Arrependo-me, de imediato, erguendo os olhos súplices, o rosto sujo lavado pelas gotas da chuva fina. - Por que não deixou que me matassem? - Minha voz está tão rouca que mal consigo falar. - Olhe o que sou. - Deixo as mãos caírem ao lado do meu corpo molhado. - Olhe o que restou de mim!

Ajoelhada, apoio-me nos tornozelos, aguardando algum sinal de que o Criador me enxerga de algum lugar daquele céu imenso, infinito. Meu corpo é tomado pelo luto e então choro tão intensamente que nenhum ruído sai de minha boca. Vou caindo lentamente de joelhos e deixo-me tombar de lado sobre o chão da floresta para poder olhar para cima e ver, através dos ramos rendados dos pinheiros, as estrelas escondidas, acima do algodão das nuvens esparsas.

Não há nada a fazer além de sentir o imenso vazio que há em mim. Creio que minha vida se baseou em sentir. Em sentir intensamente e sofrer. Não me recordo de um afago materno ou de uma palavra de carinho de meu pai. Os afagos e carinhos surgiram, milagrosamente, em minha vida quando ele chegou. Giovanni me ensinou o que era amar e ser amada. Dera-me filhos e, somente então, entendera o Amor em plenitude. Foram tão poucos os momentos que passamos juntos. Foram anos, mas, tão céleres. Um dia, abro os olhos e os tenho ao meu lado. Meus filhos, meu homem, meu lar. No outro, tudo me é tirado. A Noite Fria chegou tão sorrateiramente. - Por que não me preparou? Por que me deixou errar? - Lamento num longo murmúrio. - Agora minha alma não é mais Sua. - Ao longe, ouço o uivo de um lobo. Ao meu lado, no galho de uma árvore ressequida, há um corvo que me fita, inexpressivo. Um mau agouro - Agora não posso me juntar aos meus filhos! Por Sua culpa! - Lamento, furiosa, deitada no chão. A terra úmida contra minhas costas. Há uma pedra embaixo de minha cabeça. Rindo, lembro-me dos travesseiros com essência de lavanda que bordava para os meus filhos. - Meus filhos estão aí com o Senhor? - Pergunto num fio de voz, estirando a língua, captando a água da chuva que molha minha garganta. Minhas mãos estão cruzadas sobre meu peito. Meus olhos estão cerrados. Desejo intensamente que a Morte me encontre. Maldita! Ela é cega, surda, muda e burra. Tantas oportunidades perdidas! Idiota. A Morte é uma perfeita idiota, penso, mais uma vez arrependida. - Não. Não é. - Digo num bocejo. - Venha até mim...- Eu a chamo, tremendo tanto que meus dentes chegam a bater. Meu estômago está vazio. Sinto a dor da fome. Engulo minha saliva. Sinto o cheiro do assado que preparava aos domingos. - Giovanni...- Cantarolo seu nome, perdendo a razão. Estou fraca demais. Quero dormir. Dormir para sempre.

"Não repita isso, amor. Vai passar.", Giovanni me repreendia em minhas crises existenciais. - Crises existenciais. - Repito, tentando rir de mim mesma, mas não encontro forças, então eu tusso. Daria tudo...tudo para voltar a ter aquelas crises idiotas, no aconchego do meu quarto, tendo seu corpo grudado ao meu, aquecendo-me. Está tão frio. Limpo o canto da boca com o dorso da mão. O dorso de minha mão está manchado de vermelho. - Da-da cor do meu ma-manto. - Gaguejo, ouvindo meus dentes que se chocam entre si, violentamente. - O assado está pronto! - Exclamo, rindo baixinho. Abro os olhos devastados pelas lágrimas. Cubro-os com a palma da mão, evitando os pingos grossos. Logo acima de mim, uma árvore robusta e tosca me oferece seus frutos vermelhos com a casca fina, escamosa. As folhas planas têm graciosos espirais nas hastes. Fico encantada, além de estar faminta. "É Taxus Baccata", ouço a voz dele a me prevenir contra os perigos de sua ingestão. Dou de ombros, esticando os braços, apanhando um punhado delas. O que quero é saciar a minha fome e, se a Morte me quiser, haverá de me levar de barriga cheia para ter mais trabalho. "As folhas são venenosas.", lembro-me do que ele me disse, tarde demais. Engulo tudo. O fruto vermelho, a casca, as hastes e folhas. - Cuide do assado, amor. - Digo, mastigando com dificuldade, revirando os olhos de maneira impaciente, pois acho que seu zelo por mim é exagerado. - Fique tranquilo...- Curvo os cantos da boca. - E de olho no assado.

Giovanni me auxiliava na cozinha, lavando os pratos enquanto eu os enxugava, de olho em sua nuca abusadamente bronzeada, seus pelos eriçados, seu cabelo sem corte, em desalinho. Lambia sua nuca, num repente. Não havia um domingo em que não perdíamos um ou dois pratos espatifados no chão. Bobagem. O que eram pratos comparados àquele pescoço cheiroso, esguio e todo meu? - Giovanni...- Minhas palavras voam com o vento. Sinto-me inebriada pelas lembranças há muito esquecidas. Outro uivo agourento. O corvo já não está mais no galho da árvore retorcida. Acho que desistiu de aguardar pela Morte cega, surda, muda e burra. - Vc me faz feliz, amor. - Digo a ele, abrindo um sorriso por sua sombra ajoelhada ao meu lado. - Sempre foi vc...- Suas mãos me erguem do solo encharcado. Enlaço seu pescoço com meus braços molhados e marcados. Sinto vergonha, mas estou tão cansada que não penso em meus cabelos ou na falta deles. Ou em meu rosto desfigurado pela doença. Aperto-o contra o meu peito, matando as saudades. - Vc emagreceu, amor. - Digo isso porque deslizo a mão por suas costas e sinto os ossos de suas costelas evidenciados sob a camisa fina. - O assado está pronto. Chame as crianças. - Murmuro em seu ouvido. Noto que seu perfume não é o mesmo. - É doce. - Dou duas fungadas em seu pomo-de-Adão, como um cão farejador o faria. De olhos cerrados, declaro, indignada. - Adocicado! - Giovanni jamais usaria um adocicado, raciocino inflando as narinas. - Não o meu Giovanni! - A voz sai num sussurro furioso que poderia congelar uma chama. Abro os olhos, pressionando minhas mãos contra seu tórax franzino. Minha visão desfocada não me deixa distinguir o rosto do homem que me carrega em seu colo. É calmo, cauteloso, suave como uma pluma, mas não é meu Giovanni. - Ponha-me no chão! - Ordeno, com o coração fulminado pela efedrina, princípio ativo da plantinha linda cuja semente de tom castanho-escuro, recoberta por uma capa carnosa, cor escarlate, percorre meu esôfago. - Meu Giovanni vai acabar com vc num só golpe de sua mão. - ]Com a voz entaramelada, eu o ameaço, puxando o ar pela boca. - As mãos de Giovanni... - Estou convulsionando nos braços dele, mas ainda consigo me lembrar do toque preciso, seguro de suas mãos em minha cintura ou dos afagos em meu rosto.

- A senhora comeu daquele fruto!? - A voz atônita ecoa em meus ouvidos.

- Ponha-me...- Estou exausta. Ele para de falar por um momento, enquanto procuro pelo ar que parece ter evaporado da Terra. Estou engasgando e chiando como uma gata que engoliu suas bolas de pelo, no entanto, percebo que há algo em sua voz que me soa familiar. Eu o conheço e, mesmo que não o conhecesse, não faria a menor diferença, pois já estou desorientada, sufocando em seus braços.

Ele é célere. Corre enquanto murmura palavras em Latim. Disso eu me lembro, embora não consiga juntar as frases soltas, formando uma sentença inteligível. Giovanni me repreenderia se estivesse aqui. Não é culpa minha! Por mais que tentasse, jamais consegui me manter concentrada nas aulas da 'língua morta'. Como poderia com aqueles óculos que teimavam em escorregar pelo osso de seu nariz afilado e levemente arrebitado na ponta? E como raciocinar diante dos olhos incisivos e negros e mansos com os quais me fitava, sem palavras? Por Baco! Um encanto de homem, o meu Giovanni!

Stupida! Azar o meu. Aprendi pouco. Mas aprendi! Quem me carrega agora, com a delicadeza e a rapidez de uma gazela, está pedindo a Deus que me salve. NÃO QUERO, IMBECIL! - Ponha-me no chão...- Cuspo-lhe na cara, antes de perder os sentidos.

- Ainda não chegou a sua hora. - Deixando o meu corpo, ainda consigo ouvir sua voz se distanciando. Eu o conheço. É ele. É sim. - Não vai morrer agora. Não depois de tanto trabalho para encontrá-la.

- Vc...- E lá fui eu.

- Tsc, tsc, tsc.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 17/01/2020
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