'MORGANA - O SOMBRIO"

O Sombrio

Um silêncio sepulcral antecedera a tempestade. Giovanni só tivera tempo de saltar sobre nossa filha, retirando-a do caminho dos demônios que invadiram nossa casa pela porta da frente, praguejando, chutando nossos móveis, quebrando tudo o que encontravam pelo caminho. Eu os via, embora tivesse dificuldade em processar aquilo em minha mente. Quem eram aqueles homens fardados e violentos em nosso lar? Quem os havia convidado? Por que Giovanni me fitava com os olhos súplices ao lado de nossa Giordana que me lançava um de seus sorrisos enigmáticos? Balancei vagarosamente minha cabeça, reprovando-a com meus olhos, adivinhando-lhe a intenção, quando sentira minha face arder sob a mão suja e espalmada de um dos soldados. Atingira meu rosto em cheio, fazendo meu corpo perder o equilíbrio, tombando ao chão. Recostada à mesa de madeira, estatelei meus olhos, contendo a vontade de chorar. Gemi de dor e raiva, apoiando-me à pia. Ouvira o chamado de Giovanni. Vira seu corpo curvado sobre o de nossa filha sendo espancado impiedosamente pelos covardes que o chutavam com suas botas sujas de lama. Minha visão nublara-se de ódio e, do ódio, retirei as forças de que necessitava para lutar por minha família. - "Faça o que for preciso.", assentira, curvando os cantos da boca, cravando minha mão no cabo em madeira da faca afiada com que destroçava os suínos para o almoço, bem ali, ao meu lado. Ainda pude vislumbrar meu reflexo na lâmina antes de avançar sobre o verme.

- Feche os olhos, meu anjo. - Minha voz soara como uma canção de ninar quando me voltei para Giordana com seus olhos de esmeralda, aturdidos, encolhida num canto da sala. Ela os fechou. Inspirei aliviada, enfurecida, desorientada, tomada por uma fúria demoníaca. Cravei a faca, repetidas vezes, nas costas do homem que me impedia de ver o rosto do meu homem. Devo confessar que sentira prazer em ver o metal atravessar as costelas, resvalando nas partes duras dos ossos, penetrando profundamente, atravessando as camadas da pele, gordura e chegando aos órgãos vitais. Ele morreu, suspirei inebriada.

- Morgana! - Exclamara Giovanni, estarrecido talvez pela morte do homem. Talvez pelas minhas feições de quase júbilo. - Meu Deus...- Livrara-se do corpo sem vida, empurrando-o para o lado, arrastando-se com o apoio dos braços, até nossa filha. Larguei o cabo da faca e, ajoelhada, apoiei-me nos calcanhares. Por frações de segundos, sentira um imenso ciúmes de Giordana que recebia os carinhos do homem que deveria estar cuidando de mim e não dela. - "Eu o matei por vc".

Afastei aquele pensamento nefasto, trocando-o por um ato ainda pior. Rindo, chutava o morto em seu estômago até me certificar de que nada mais restava ali além de alimento para as larvas.

- Morgana. - Agora ele usava de ternura em sua voz sussurrada ao meu ouvido. Meus olhos vagos custaram a encontrar os dele. - Vc precisa parar. Olhe para mim, amor. - Dissera-o num desespero, puxando-me para junto dele. - Inspire. Expire.

- Aaah, Giovanni! Olha o que fizeram com vc. - Lamentei, acordando do transe. Tocando, de leve, suas feridas. Lágrimas amargas lavavam meu rosto contraído pela dor. - Não vão tocar em vc. Eu prometo... - Ele me abraçou com força e me fizera respirar no mesmo ritmo lento e compassado que o dele como o fazia em nossa cama, quando eu me perdia em pesadelos, onde me via torturada, violada por algum monstro. O Tempo havia parado somente por nós dois. Tivemos tempo para nós dois! Tudo ao nosso redor parecia ter estagnado, imobilizado. Até mesmo o pêndulo do relógio carrilhão, próximo à lareira, havia parado. Aquilo era cientificamente impossível. Baixei meus olhos desconfiados e logo os ergui na direção de Giordana que me lançara um sorriso cúmplice, deslizando em minha direção. Ela não caminhava. Deslizava a centímetros do piso de terra batida, embora seu vestido longo escondesse seus pés. Sem pronunciar palavra, sufoquei um grito quando ela tocou em minha mãe, suavemente, sem me olhar. Olhava para as minhas mãos pousando-as sobre as de seu pai.

- Não se preocupe comigo, mamãe. Está feito. - Balbuciara erguendo os olhos para além do telhado, proferindo palavras que eu desconhecia. Ela o faria novamente e me dera tempo suficiente para recobrar as forças dentro do abraço do homem da minha vida. Eu a amei ali, mais do que em sua vida inteira. Eu também me arrependi, ali, por não lhe ter dado o amor que consagrei ao meu Antoine. Eu a amava, mas...Antoine... - Protejam-se. - Avisara, deixando rolar uma lágrima por sua pele lívida e virginal.

- Não. Não. Não. Não ... não comece! Por favor. Deixe que o Tempo congelar. Vc pode...não pode? - Ela sorriu de minha infantilidade, beijando-me no topo da cabeça. Beijou os olhos congestionados do pai. Eles se entreolharam e se compreenderam mutuamente. Giovanni chorou, compenetrado, enquanto a via se afastar. - Faça alguma coisa! - Ordenei, aos gritos, ao mesmo tempo em que tentava impedi-la de seguir adiante, esticando-me, implorando que ele me libertasse de seus braços em torno de minha cintura. - Ainda há tempo. - Eu o encarei, desafiadoramente. - FAÇA ALGUMA COISA!

- Não mais...- Seu rosto cheio de hematomas, seu olhar perdido, sua boca contraída. Era a imagem da desesperança.

- Não deixa! - Berrei contra sua camisa, enterrando minha cabeça em seu peito, puxando-o pela gola, num gesto de total impotência. - Só vc pode fazer algo! Faça! - Meus olhos vasculharam a casa e ainda havia tantos deles...

***

Sem aviso, a fúria dos ventos invadira os cômodos, tomando-os de surpresa. Estilhaços de vidro das janelas caíam sobre todos nós, embora ferissem somente os invasores. Ele tentou conter Giordana em pé, logo adiante.

Tarde demais.

Um leve erguer de seu braço e uma trovoada monstruosa superou os gritos e berros ensurdecedores vindos de todos os cantos de dentro e de fora da casa. Os malditos haviam trazido consigo testemunhas que nos acusavam de bruxaria. Relâmpagos repetitivos me permitiram vê-la e ouvi-la a invocar os espíritos das florestas num leve e inocente cerrar de olhos. Em desespero, compreendendo o perigo que a envolvia, pusera-me na frente dela, cobrindo-a com meu corpo, empurrando-a para trás, ameaçando-os com a faca ensanguentada. Estavam tão perplexos quanto furiosos...e imobilizados por alguma força que eu apenas pressentia. De súbito, fora erguida do chão por Giovanni que enlaçara minha cintura com seu braço direito, levando-me para fora da casa, pela porta dos fundos.

- MALDITO! ME SOLTA!

- Fique aqui e voltarei com ela. - Cravei meus dedos no caixilho da porta, cerrando meus dentes, arfando como um cão raivoso.

- NÃO! ELA É MINHA FILHA! VOU COM VC! - Ele me tomou pelos braços e, com a testa colada à minha e, num tom ameaçador, dissera-o baixinho.

- Ao menos uma vez na vida, obedeça-me. - Fazia força nas mãos contra minha pele. - Entendeu??? - Assentira com a cabeça baixa, praguejando, arquejando, aguardando, escondida entre os arbustos do jardim atrás de nossa casa. Esperei o tempo necessário para que ele retornasse à sala. Não suportei esperar. Eu o segui e então, pude ver meu pobre Giovanni cobrir a cabecinha ruiva de Giordana com o capuz negro de seu manto, posicionando-se ao seu lado como seu fiel escudeiro. Por que me mantinham distante? Achavam-me fraca? Incapaz? Indigna?

Ajoelhada, Giordana curvara o tronco em reverência, invocando, sem temor, os Silfos e as Salamandras, sorrindo ao Vento que rugia em resposta, adentrando, furioso, tocando nossos rostos, revoltando nossos cabelos. Em meio aos poucos que ainda restavam, ela ordenava e o vento a obedecia, vergastando, como chibatas, as costas daquela gente imunda, açoitando-os fazendo-os sofrer. O fogo alongava-se da lareira até os soldados como tentáculos de um polvo faminto e feroz, queimando-os, enxotando-os sob meus olhos flamejantes. Estava tão absorta com aquele espetáculo que não percebera a aproximação rasteira de um dos soldados que, violentamente, puxara-me para trás, agarrando-se aos meus cabelos. Meu grito de surpresa ecoara pelo cômodo. Arquejei de dor quando minhas costas chocaram-se contra o chão. Ele me arrastou e tudo o que podia ver era o telhado passando por mim como a vida feliz que compartilhamos debaixo dele. Minhas mãos seguraram as deles. Minhas unhas rasgaram sua pele.

- VAGABUNDA! - Ele me insultara ao ver o sangue em seu antebraço. Ouvira minha gargalhada histérica. Olhava-me com desdem e malicia, levando-me para o meu próprio quarto. Quebrei parte de minhas unhas, cravando-as no chão ou nas paredes, tentando me agarrar a algo que o impedisse de concretizar seus sórdidos desejos. Minha cabeça doía, minhas costas ardiam, minhas mãos estavam em carne viva quando ele me jogou contra a cama onde Giovanni me tocava com amor e suavidade. - Abra as pernas, vadia. - Sua voz soturna, seu odor fétido e o peso de seu corpo gigantesco contra o meu impediam-me de gritar. Não gritaria. Não o deixaria machucar os meus. Desistia de tudo, fitando o teto, a vela ao meu lado. Repentinamente, uma lufada de ar quente, trazia-me de volta à vida. Um cheiro doce inebriante. Eu me lembrei daquela fragrância quando ouvira o seu pedido, num murmúrio.

- Invoque-me. Ainda não terminou.

Estava prestes a pedir ajuda a quem quer que ele fosse, porém, o susto da porta se escancarando com um chute certeiro fizera-me esquecer da voz tão serena quanto sedutora. Giovanni golpeara-o por trás com o machado de cortar lenhas. O maldito arqueou as costas ainda sobre meu corpo. Urrou de dor antes de receber um último golpe fatal. Cuspi em seu rosto, erguendo-me rapidamente da cama, arrastando Giovanni, paralisado, arrependido, horrorizado com o que havia acabado de fazer.

- Ele mereceu! - Comentara tentando esconder meu sorriso de satisfação. Não sabia o que mais o horrorizava naquele momento: ter acabado de matar um homem ou a forma leviana como eu o encarava. - Venha! - Estendera-lhe o braço, erguendo meu queixo. - Isso precisa ter fim. - Giordana nos esperava, agachada, ao lado da porta. Corremos até a biblioteca onde havia uma saída secreta que a ligava diretamente à estufa. Passamos pelas plantas, ervas e poções e eu amaldiçoei cada um daqueles miseráveis que fora curado por meu Giovanni. - A porta! - Chegávamos à floresta, próximos à clareira. Um grito estridente ecoara em nossos ouvidos, constringindo nossos corações. Estacamos os três, de mãos dadas.

- Bruxa! Queimem a bruxa!

Girei meu pescoço para trás, numa mórbida lentidão. Apontavam para minha Giordana. Miseráveis! Ela estava exausta. Não conseguiria usar de seus dons. Pobrezinha. Era somente uma criança. Ainda não havia completado sete anos e já havia lutado tanto!

***

Eles vieram em nossa direção. Dava para sentir o ódio, a cobiça, a inveja, o prazer em nos ver sofrer e a Escuridão que os circundava como uma grande nuvem de seres alados e malignos.

- Vão! Sigam sem mim. - Olhei, de relance, para minha família a um passo atrás de mim. À minha frente, a Morte me sorria. Não. Não tocariam neles. Não. Ainda que eu...- "Eu o invoco!", ajoelhei-me sobre a terra molhada, o barro em minhas mãos cerradas. - Salve os meus e eu me entrego a vc...- Murmurei, de quatro, arqueando minhas costas como um gato selvagem, de olhos cerrados, sentindo os pingos da chuva acariciarem minhas costas lanhadas. E como Giovanni não movesse um músculo abraçado à Giordana, eu deixei que o demônio falasse por mim. Sua voz gutural fluiu através de minha garganta, queimando-me por dentro.

- VÃO...AGOORA!!!

Um raio imediatamente surgira no céu e atingira, de uma só vez, três grandes árvores que tombaram como se alguém as tivesse arrancado pela raiz e as jogado sobre os infames que, esmagados, gemiam e sofriam diante de meus olhos exultantes. Engatinhei até eles como uma fera faminta a observar sua presa, antes de abocanhá-la. Meus cabelos longos cobriam meu rosto com laivos de loucura.

- Dói? - Murmurei a pergunta aos ouvidos de um deles, apoiando meu corpo deitado, estirado sobre o gigantesco tronco que, esmagava, aos poucos os pulmões de um antigo comprador de ervas a quem Giovanni, por incontáveis vezes, salvara sua perna da amputação, ministrando-lhe chás antiinflamatórios ou espalhando, sem demonstrar qualquer tipo de repulsa, unguentos sobre as feridas que tomavam, pouco a pouco, seu corpo. - Ora, ora, ora...- Cantarolei sarcasticamente como um ser diabólico, fitando-o de cima do tronco, ouvindo seus gemidos cada vez mais fracos. - Essa aí já era, meu caro. - Apontava, com o queixo, a parte visível da coxa amputada. - Quer dizer algo? - Indaguei, com ironia. Pulara do tronco tão rápida quanto um felino, apoiando-me na grama, com as mãos, os joelhos dobrados. - Não ouvi...perdão. - O pobre se engasgava com o próprio sangue que brotava de sua garganta. - Diga...- Subitamente, sentira piedade dele. Meu peito doía. Minha sensibilidade despontava. - Diga. - Implorei, docemente. Tomara suas mãos entre as minhas, desviando meus olhos culposos daquele ser que partia por minha causa. - Quer que reze por vc? - Abanei a cabeça enfaticamente. - Não. Não posso...- Recuei, alucinada, coberta pele escuridão da noite, deixando-o entregue à morte. Lançara um olhar desolador à minha roda e nada mais vira além de destruição e morte. Apavorei-me. - GIOVANNI! GIORDANA!

Corria em direção à clareira, desvencilhando-me dos galhos e seres alados, pequeninos e brilhantes. Não me eram estranhos, pensara enquanto adentrava a densa floresta sabendo que olhos me observavam, escondidos, receosos. Outros, maliciosos. Dera um giro em torno de mim mesma, sentindo-me completamente perdida. Chamei por Giovanni ouvindo o eco de minha voz como resposta.

- Não tem graça! Respondam-me! - Levei minhas mãos imundas às faces, cobrindo-as como uma criança com medo do escuro. - Giovanni! Aparece!

- Perdida, mocinha? - Dentre todas as vozes do mundo, aquela era a única que possuía o poder de me acalmar, de trazer à tona o que ainda havia de bom em mim. - Acho que alguém aqui precisa de um banho...

- Amor! - Exclamara feliz jogando meus braços em volta de seu pescoço, beijando suas bochechas, os olhos avermelhados, as olheiras ainda arroxeados e, por fim, seus lábios inchados. - Onde está...? - Arregalara meus olhos, arquejando de pavor.

- Estou aqui, mamãaae! - Giordana surgira, rodopiando e cantarolando, das grandes samambaias e antes que ela pudesse abrir sua linda boquinha e continuar a falar, eu a tomei em meu braços, erguendo seu corpo, fazendo-a girar como o fazia com meu Antoine. Daria todo o meu amor a ela. Seríamos felizes juntos e eu, nunca mais a deixaria sozinha, entregando-me às lembranças de meu amado filho morto. - Ooopa! - Girávamos e girávamos até que, tontas demais, caímos sobre as folhagens coloridas da Caládio. Ríamos de perder o fôlego, protegidas pelos seres das floresta que então se faziam visíveis. Giovanni, de pé, apreciava-nos com um ar melancólico que me incomodava. - "Estamos bem! Estamos a salvo! Eles se foram", testara sua capacidade em me ouvir, fitando-o com um olhar vacilante. Ele não me respondera como costumava fazer. Ao invés disso, estendera-me sua mão com um sorriso compreensivo, embora triste. - O que o senhor tem, papai? - Ela o abraçou pela cintura, afagando o próprio rosto em sua barriga. - Não precisa ter medo. Estaremos bem...

- Isso! - Exclamei exultante, suja e com o coração profundamente agradecida ao Criador por nos ter salvo a todos. - Vamos embora daqui antes que outros loucos apareçam. - Puxara-o pela mão que se fechava contra a minha, apertando-a. Deixei escapar um suspiro e continuaria a correr se ele não alcançasse meu antebraço com a mão livre. - Vamos! Eros deve estar exausto, assustado com tudo o que aconteceu! Ainda é noite. Vamos agora antes que eles...

- Eros está morto.

- Morto. - Repetira, incrédula. - Quem faria isso? Que monstro mataria um animal tão lindo, puro e indefeso? - Baixara a cabeça, soluçando, fungando, limpando meu rosto com o dorso da mão e, talvez, por isso, não vira os olhos petrificados de Giovanni olhando por sobre meus ombros. - Vamos andando. - Erguera os olhos ansiosos e, como a vontade de partir era urgente, sequer reparei que ele estava paralisado, de mãos dadas à Giordana que olhava na mesma direção, com as feições intrigadas para o vulto que se aproximava em meio às trevas daquela noite fria. Um vulto que caminhava vagarosamente, pois mancava e apoiava-se a uma bengala que afundava na lama.

- Papai! Quem é?

O vulto riu. Uma risada baixa, conquanto triunfante. Eu ainda estava de costas para ele, mas agora percebia o olhar vencido de Giovanni que me encarava com os olhos úmidos. Abrira a boca para falar, mas as palavras se perdiam em sua mente visivelmente perturbada. Havia pânico em suas faces e a boca que se contorcia querendo falar. Num gesto de exaustão, passara a mão sobre o rosto.

- Meu Deus...- Exalara um profundo suspiro de dor.

- Pelo visto, ela não sabia. - Aquela voz congelara meu corpo antes mesmo de me virar e entender o que ou quem causava tamanho desgaste em meu marido. Quem o desequilibrava a ponto de fazê-lo emudecer e se envergonhar. Não. Meu Giovanni não teria motivos para se envergonhar. Homem bom. Pai exemplar. Um marido perfeito. - Vc não contou que eu havia retornado, Sr. Salviatti? Acaso esconde algo dela?

- Bastardo!

Girei nos calcanhares, com os punhos cerrados e o ódio retornando às minhas veias. Seguira em direção ao vulto prestes a lhe socar até que ele pedisse perdão ao meu homem. No entanto, as nuvens permitiram que a luz do luar voltasse a brilhar e então eu o vira, estreitando meus olhos, perscrutando aquela imagem, aquele rosto que me causava náuseas. Vomitei em seu coturno de couro. Giovanni ajudara-me a erguer meu tronco curvado, puxando-me para longe dele. Suas mãos estavam frias, suadas e trêmulas.

- Morgana, lembre-se do que lhe falei. Foi pelo seu bem.

- Isso não é hora de conversar, Giovanni! - Protestei, exasperada. - Vamos embora.

- O que ele fez para que vc me esquecesse, meu anjo? - Ele dera um passo em nossa direção e eu me recordei do tom grotesco daquela voz e do horror que ela me causava. Recusava-me a olhar para ele, pois sabia que algo de muito ruim viria à tona. - Estou curioso, Giovanni Salviatti. Magia? Bruxaria?

- NÃO! - Giovanni dera um grito em sua defesa. - Não lidamos com isso.

- Aaah...não? E o que eu vi há pouco vindo daquela menininha linda ali? - Apontara seu dedo longo, repugnante, as unhas imundas, o olhar lascivo sobre a minha filha inocente! Era ele! Ele havia retornado do inferno! Ele desviara seu olhar para mim. - Ora, ora, ora! Vejo que agora se lembra de mim, Morgana. - Um riso de escárnio, um olhar altivo e não havia dúvida. - Feliz em me rever?

- Vc...vc...morreu? Eu te matei! - Enfurnara minhas mãos nos fios de meu cabelo desgranhado, recuando como um bicho acuado, feroz, prestes a atacar. - Eu vi seus miolos espalhados pelo chão da igreja, miserável! EU VI! VC ESTÁ MORTO! MORTO! - Giovanni! - Voltara meus olhos súplices a ele. - Diz que eu estou tendo alucinações. Diz, amor! Não é a primeira vez! - Ajoelhara-me aos seus pés. - Me ajuda. - Toquei em sua mão. Revirei os olhos, arqueando minhas costas para trás. Mergulhei no obscuro. - Isso dói! - Relances dos castigos de meu pai, o abandono, os estupros repetitivos do padre Pietro, o cilício castigando minhas costas, a fuga, a floresta, as fadas sobrevoando a minha cabeça, o fauno, os Texos, a convulsão, a solidão, Giovanni me tomando em seus braços, a banheira, o odor de lavanda, a água morna limpando minhas entranhas, o sorriso compassivo do homem que me salvara, sua voz suave..."Três, dois, um. Esqueça, Morgana e só se lembre quando eu ordenar". - Vc me fez esquecer...

- Perdão. - Ele se ajoelhou diante de mim como se houvesse cometido um crime. - Foi pelo seu bem. Eu juro. - Afirmara, entre lágrimas. Giordana pousara sua mão firme e pequenina em seu ombro direito. - Perdão, amor. Perdão.

- Levante-se...- Erguemo-nos juntos, olhos nos olhos. Eu enxuguei suas lágrimas com meu dedos e ele, fizera o mesmo. - Não se desculpe. - Ele suspirou aliviado. - Por que se culpou esses anos todos? Vc sempre me amou e eu não poderia desejar prova de amor maior do que essa...- Sorrindo, encostei meus lábios aos dele. Suas mãos deslizaram em minha nuca e antes de seu polegar acariciar a minha orelha, vira-o empalidecer olhando sobre os meus ombros. Fora a última visão dele antes de voltar-me para trás. Padre Pietro de mãos dada à minha filha, abria um sorriso macabro enquanto deslizava a lâmina afiada de seu canivete em seu delicado pescoço.

Giordana partira tão suavemente quanto vivera na Terra. Antes de perder os sentidos, ouvira um grito lancinante sair do peito de Giovanni.

Entreguei-me à Escuridão.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 08/12/2019
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