Solidão de Aço

Capítulo I

Chamas

POR TUDO QUE VIVEMOS, VER NOSSA CASA ARDER EM BRASAS FOI PIOR DO QUE A MORTE

A casa em que morávamos, na rua Silver, pegou fogo. Foi há muito tempo, mas ainda sinto o calor hostil das chamas, e meus olhos são capazes de visualizar as paredes crepitando, enquanto escuto uma saraivada de gritos apavorantes.

Não havia nada além da noite

Nem mesmo as estrelas estavam lá

As mãos transpiravam, tentando se unir

Eram muitas

Éramos cinco

Não sabíamos quantos restariam

O desespero é comovente

Comovente

Não se tratava de cada um por si. A salvação não era individual, mesmo para quem estava acuado pelo sopro da morte. Éramos cinco, e assim queríamos continuar, nem que as chamas nos devorassem completamente.

Éramos cinco.

O enlace ávido de um braço sufocou meus ombros, me puxando para fora. Subitamente, fitei meus irmãos passarem a passos céleres, ao mesmo tempo que os escombros começavam a despencar, como trovões sobre nossas cabeças.

Choro.

Gritos.

Súplicas.

Dor.

Não queríamos nos perder, e não podíamos aceitar a perda. Era um ou todos, sem negociação com o destino. As chamas lambiam nossas faces, e nós a desafiávamos, resistindo, até o fim. Qual fim? Quem não sairia vivo das labaredas enlouquecidas?

Meus irmãos. Eu contei: um, dois... onde estava o terceiro? Aqui, afrontando a morte, apostando a vida, temendo a perda. Pais? Onde?

Deus! Por favor.

Joelhos no chão. Rosto transpirado, ardente, olhos em brasa. Lábios trêmulos, mente desorientada. A corrida para fora da casa. O vento noturno acolhendo o corpo abrasador e, então, o baque seco na calçada.

As imagens faiscadas passavam velozes, imprecisas, enquanto a mente laborava em profusão lisérgica, imaginando o fim de tudo, até mesmo de sua indócil valentia.

Luzes.

Sirenes.

Respingos d’água.

Pessoas de branco.

Pessoas de pedra.

Pessoas de papel.

Braços ao meu redor.

Por fim, a escuridão.

Éramos cinco. Eu sabia. E queria que continuasse assim. Os cincos lugares à mesa, os cinco espaços ocupados no velho Fiat e os cinco ingressos do cinema. Cinco. A nossa conta exata, o nosso número perfeito.

Cinco.

Restaram quatro.

***

Capítulo II

Amanhã, quem sabe...

Verão de 1958

UMA NOTA SOBRE A MINHA MÃE: ELA ERA A GAROTA MAIS BONITA DA RUA SILVER

O meu pai sempre fazia questão de falar isso. Segundo suas histórias, que tanto ele nos contou, eles eram um casal improvável. Sim, é o que diziam. Um militar e uma estudante. Dois corações diferentes, que insistiam em se desencontrar, por mais que parecessem em plena simetria quando estavam próximos.

Bastou um olhar — ele disse. A alma entende. Moravam em ruas distintas, e ele, o sargento Torres, sempre fabricava um pretexto para passar em frente à casa do céu, como era conhecida a residência da família Fernandes. Três inexplicáveis andares de puro azulejo branco, grades nas janelas e uma laje que podia tocar as nuvens.

O comércio dos Fernandes funcionava no térreo. Papelaria, utensílios básicos de mercearia, bebidas, fios de cobre, lâmpadas, cigarros, tecidos, agulhas, alfinetes, linhas e até aspirinas. Vendia de tudo um pouco, isto porque, de certa forma, as lojas e supermercados ainda não tinham se amontoado pelas cidades. Era o ano de 1958, um verão qualquer, e nada era tão simples naquela época. Muito menos a informação.

Poderia ter um nome, ou uma placa, mas não. Lá “No Fernandes” todos já sabiam exatamente o que iriam encontrar, e foi assim que o sargento Torres, com sede, acuado pelo sol impiedoso — até poético — conheceu Ellen Maria, que, anos mais tarde, viria a ser mãe de três caras. A garota, tão desejada, não chegou a nascer, mas uma filha não precisa ser gerada no ventre da mãe, necessariamente. Logo isso poderá ser compreendido.

Ellen Maria examinou o cliente por inteiro. Sorriso gigante. Bom porte, olhos de gaivota, quepe na cabeça, que depois revelou cabelos bem aparados, crespos, e pele morena, oleosa — ela percebeu.

Um sujeito de farda.

Um jovem militar, de botas longas e arma na cintura. Lábios vultosos, emoldurados pelo sorriso amplo. Generoso. Parecia um bom sujeito. De olhar venturoso e caminhar errante.

A testa do sargento Torres transpirava. Ele pediu água mineral à jovem de cabelos trançados sentada atrás do balcão, que lia um livro não identificado por ele, mas volumoso, desafiador. Ela o serviu. Garrafinha e copo de vidro. A geração de plástico já ensaiava destruir o meio-ambiente, mas era pouco propagada pelos estabelecimentos comerciais. O frenesi das patentes só viria a acelerar em meados da década de 90.

O sargento secou a garrafinha d’água com uma volúpia impressionante. Sede. Estava saciado. Ellen Maria o observava de soslaio. Um sujeito de farda. Um bom sujeito de farda. Quem sabe? Mais velho, uns cinco, seis, quantos anos? Ela ficou se perguntando. Não tanto.

Ele não se portou de forma inconveniente. Pediu alguns bombons de hortelã, agradeceu com o sorriso cortês, pagou e foi embora.

Não era nem o seu caminho, e começou a frequentar a rua Silver, diariamente, mas nem sempre a encontrava atrás do balcão. Percebeu que o horário certo era após o almoço. Depois descobriu que era o momento da cesta do senhor Fernandes, o pai de Ellen Maria.

Ela não custou a perceber o real interesse do sujeito de farda. Sua frequência ao estabelecimento chegou perto ao que se podia chamar de religiosa. Seja para tomar água, comprar bombons de hortelã, salgados, refrigerante e, algumas vezes, levar frutas para casa. Ele preferia laranjas.

Certo dia, o sargento identificou o livro que Ellen Maria estava lendo, quase nas últimas páginas, finalizando aquelas milhares de letras.

O Nome da Rosa

Não fazia a mínima ideia do que se tratava. Imaginou que seria um folhetim adocicado, produzido para encantar mocinhas que sonhavam com o príncipe do cavalo branco. Nunca ousou comentar tal heresia. Guardou para si. Era um sargento, digamos, prudente.

Chovia.

Era um sábado.

O sargento estava de folga.

Chovia fino. Nuvens turvas.

Chuvas loucas de verão. Às vezes, furiosa.

Na noite anterior, um temporal havia alagado a rua Silver, como sempre acontecia em casos de pluviosidade mais severa. Um tormento. As águas escorriam lentamente, enquanto moradores construíam calçadas cada vez mais altas, quase muros, para livrar suas casas da invasão aquática.

Um recorte de certas realidades que pouco se alteram.

Torres, o sargento, encontrou o velho Fernandes repondo mercadoria nas prateleiras. Prontificou-se. Ajudou. Tinha força, disposição. Interesse.

Trocaram algumas palavras, reclamaram dos bueiros, da lama, das autoridades, dos inúteis e de tanta gente que não ligava a mínima. Foi o que fizeram enquanto enchiam as prateleiras; reclamaram. Dois caras. Um velho e um jovem. Dois velhos que reclamavam até do cachorro pulguento que montava guarda na entrada do estabelecimento.

Dois bons sujeitos.

Ellen Maria os flagrou tomando cerveja. Os dois. Um brinde casual ao sucesso pelas caixas empilhadas e por todas as frutas e legumes em seus devidos lugares. Auspiciosos.

Alguém entrou pedindo farinha. Seu Fernandes já ia puxar o banco para subir e pegar, mas o sargento apenas esticou o braço, com gentileza. Ellen Maria o espiou de esguelha. Aquele sorriso ladino.

O tempo passou, o sol começou a iluminar a rua Silver, e a hora do almoço se aproximava. O velho Fernandes se adiantou e seguiu para o segundo andar.

Detalhes sobre o segundo andar:

Dois quartos, cozinha, sala (tinha uma tv bem grande sobre um rack de madeira) e varanda. Lá, dormia o viúvo Fernandes e o filho mais velho, que ganhou um apelido peculiar, Sopa, batizado como Enzo — provavelmente, o primeiro da humanidade.

Naquele sábado, só os dois no andar de baixo, impulsionado por alguns copos de álcool, o sargento convidou a jovem para um passeio.

Cinema Avalon.

Às cinco.

Estava passando “O Sol é Para Todos”.

O sargento não tinha a menor ideia do que se tratava.

Ellen Maria nem chegou a se surpreender com o convite, mas evitou aceitar, sem cortar a raiz da esperança completamente.

— Amanhã, quem sabe...

Risos.

Quando o amanhã chegava.

— Hoje, não. Amanhã, quem sabe...

Foi assim por vários dias, até que o amanhã chegou. Um passeio ao fim da tarde, na Praça Andrômeda, onde se vendia os melhores pastéis de vento do mundo. Um para ela, dois para o sargento. Era sempre assim.

Em uma daquelas tardes, descobriram as idades. 18 contra 25. Ellen Maria no 3º ano científico, enquanto o sargento se dedicava a uma carreira que balizava a sua família. Militares. Homens de farda.

Começou a surgir uma amizade que eles sabiam o perigo de prosperar. Era preciso interromper aquele elo urgentemente, e só havia um jeito de colocar o plano em prática.

Beijando-se.

Um abraço forte. Respiração acelerada. A garota na ponta dos pés, o sargento, meio curvado. Há sempre um jeito de tudo se encaixar. Beijaram-se, por um longo tempo, e trocaram confidências, desejos mútuos, sonhos, improváveis e loucos. Assim são feitos os sonhos, com pitadas de loucura.

Andaram de mãos dadas.

Sentiam-se plenos, afortunados.

Um casal feliz, impulsionado pela euforia do primeiro encontro. Euforia.

Foi bom. Ela pensou. Depois, admitiu: Foi ótimo.

Um casal que tinha planos, que parecia se amar.

Eles tinham planos.

Deitado, sonhando acordado, o sargento Torres estava decidido: Ellen Maria, eu quero morar na sua rua. Eu quero viver com você.

Foi assim que começou a arquitetar seu sonho. Comprou uma casa velha e abandonada na rua Silver, e dois anos se passaram entre reformas e construções. Uma ampliação considerável. Dois quartos não eram o bastante. Ele queria mais. O sargento pretendia ter muitos filhos com Ellen Maria. Faltava combinar com ela.

Era domingo. Fazia um calor bárbaro, mas o sargento Torres se mantinha estático em frente à casa, completamente modificada, pronta, como idealizou. Ficou ali, admirando. Exultante.

Estava pronta. Sim, a casa na qual ele iria morar com Ellen Maria e seus filhos, que ainda iriam nascer, estava pronta. A casa que ardeu em chamas muitos anos depois.

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