'PAPA LOVES MAMBO' - do livro Giulia - Quando a Luz se apaga

Em meio ao burburinho, visivelmente incomodada com o perfume da fumaça dos cigarros e das colônias masculinas misturadas ao cheiro adocicado de fragrâncias femininas e shampoos caros exalados pelos cabelos exageradamente lisos, roçando em seu nariz, tão lisos como se tivessem sido passados a ferro, ouvia, dos alto-falantes que derramavam por todos os lados, uma música baixa, ritmo marcado, de uma banda de metais. Parecia estar ouvindo os batimentos cardíacos coletivos de diversos grupos, separados, divididos. Alguns densos e sinistros. Outros, animados, leves e risonhos. A multidão continuava a rir, engolir, beber. Um garçom descuidado pisara em seu pé com sua bandeja mal equilibrada. Vira, receosa, a metade dos copos da bandeja colidir com a outra metade. Cerrara os olhos, pensando que seria atingida. Cobrira a barriga com os braços cruzados deixando escapar um grito de espanto. Procurava por ele, em meio à penumbra, enquanto era alvo dos olhares lascivos de homens, murmurando e sorrindo e cochichando sobre ela.

A música latejava e enveredara pelo ritmo caliente da salsa. Garçons de paletó branco passavam por toda parte, enchendo os copos vazios.

- Onde fica o banheiro? - Giulia, em voz alta, perguntara ao garçom, puxando-o pela barra do paletó, com os olhos passeando por grupos estridentes em constante movimento. - Vc viu o Fernando??? É claro que vc sabe quem é o Fernando??? O Nando! - Exaltara-se ao ver a expressão apalermada dele que a fitava com piedade. - Caramba! Fernando! - Gesticulando, descrevera-o como um homem elegante, num terno caqui, de corte primoroso, camisa social e gravata vermelha. - É amigo do aniversariante!!! - A boca entreaberta, os olhos vívidos e questionadores. - Ele disse que não ia me deixar sozinha. - Murmurara de si para consigo enquanto o garçom a conduzia, gentilmente, à entrada do banheiro.

- É aqui. - Sorrira ao se despedir. - Cuide-se.

- Com licença! - Gritara enquanto passava pelos casais amontoados, de uma forma libertina, em um corredor bastante apertado, insuportavelmente quente e cheirando à mesma erva que Camila costumava utilizar. Ahhh...Camila! Que saudade! Seu coração se confrangia ao se lembrar dos amigos distantes. - Tô passando! Tô passando! - Alertava, fitando aquele amontoado de homens e mulheres atracados uns aos outros, com um certo ar de desaprovação em seu semblante. Por Deus! Procurem um motel! Praguejara, cruzando o batente da porta. Levara menos de dez minutos dentro daquele lugar luxuoso, bastante iluminado, conquanto imundo, onde mulheres retocavam seus batons de um vermelho rubro e ajeitavam seus decotes mais ousados do que o dela. Tagarelavam sem parar e aquele barulho começara a irritá-la ao extremo. - Posso? - Ela apontara com o queixo, a torneira, logo ali, ao seu alcance. - Tá muito quente aqui. - Dissera, passando a mão pela nuca, deslizando-a até o pescoço. - Chega um pouquinho pra lá! - Erguera a sobrancelha ameaçadora à moça de cabelos loiros que se afastara, fitando-a com uma expressão de surpresa e triunfo e traços de inveja. Um corpo escultural num tubinho vermelho de alças, com a bainha acima dos joelhos e os saltos audaciosos retesando os músculos das pernas que logo chamaram a atenção de Giulia. Por que me olha desse jeito??? Algum problema???, questionara silenciosamente, enchendo a mão em concha, levando a água ao rosto. - Que delíiicia! - Exclamara, com um largo sorriso e a água em uma temperatura agradável que escorria por entre seus dedos, encontrando caminho entre os seios que se espremiam num delicado sutiã em renda preta. Estavam cada vez maiores e doloridos. Ele tá em algum lugar me esperando. É claro. Ela se consolava a si própria, olhos cerrados, cabeça baixa, na altura da torneira, bebendo da água que fingia não estar contaminada. Morria de sede e calor e o queria por perto, pois estava insegura. - São os hormônios, Sunshine. - Falara baixinho com o bebê. - Papai tá procurando a gente. Fica tranquilo. Sua mãe é uma boba. - Dissera de olhos fitos na barriga que empinava para frente, orgulhosa, satisfeita e incomodada com aquele olhar fixo nela. Esticara o braço à direita, fazendo rolar do tubo da caixa de aço branca de onde arrancara, com laivos de fúria, dois lenços de papel, macios e cheirosos. Secara o rosto, cantarolando a música que chegava aos seus ouvidos. Abrira os olhos e erguera a cabeça. Dera de cara com o reflexo da loira que não tirava os olhos dela. Giulia inspirou profundamente, soltando o ar, vagarosamente, pela boca. Não gosto de vc, pensara, voltando os olhos para a porta de saída, ignorando-a solenemente.

- Vc é bem como ele me disse que seria. - Comentara a mulher de vermelho, em um tom alto o suficiente para que Giulia pudesse ouvir. Acrescentara um riso desdenhoso. Giulia que estava prestes a escapulir pela porta entreaberta, voltara, arquejando, sentindo o ar a lhe faltar. Tonteira, náuseas. Pousara a mão na pia em mármore, num esforço para não cair naquele chão úmido, repleto de bactérias. Sentira o chute de Sunshine. Sorrira para a barriga, cheia de júbilo, apoiando-se, respirando com dificuldade, mãos espalmadas sobre o mármore, cabeça baixa, entre o burburinho que cessava à medida em que as mulheres se ausentavam daquele cubículo. Alívio. Com o canto do olho, percebera a loira ali, de pé, ao seu lado. Que diabos vc quer???

- Eu não entendi, meu bem! Repete! - Giulia apoiara uma mão na pia e a outra, na cintura como quem toma satisfações. - Ele quem? Disse o quê??? - Ah! Ela sabia entrar em uma briga. Isso ela sabia desde criança! Esquecia-se da barriga e, na ponta dos pés, esticava-se a fim de ficar frente à frente com aqueles olhos maquiados com extremo mau gosto. - Muita sombra e pouco rímel. - Pensara alto. - "Aliás! Cadê seus cílios, queridinha!"

- Seu marido. - Ela o dissera, simplesmente. - Seu marido me diz isso...sempre. - Um empurrão não teria abalado mais sua autoestima já nos pés, misturados às bactérias do piso podre. - Ele fala tanto de vc! - Sorria maliciosamente. Giulia perdera o equilíbrio e a voz, e esbarrara, acidentalmente, na mão da mulher que agora penteava os cabelos com os dedos.

Relances de um beijo ardente. Uma sala com papéis sobre a mesa. Um homem debruçado sobre a loira na mesma mesa num ambiente de trabalho. Porta entreaberta, móveis escuros, armários de ferro num tom de cinza. Gavetas por todos os lados. Computador ligado e a luz que dele irradiava, iluminava o casal sobre a mesa que gemia como gatos no cio.

- Tá passando mal, meu bem? Seu olhos...- A loira dissimulada estranhara o olhar distante, quase fosco de Giulia, em transe. - Quer ajuda? - Sua voz irritantemente sedutora, seus olhos frenéticos, impiedosos, pupilas enormes, sua mão ornada por um único anel onde uma cobra enroscava-se em seu dedo anelar com duas pedras em Jade vermelho no lugar dos olhos, tocara em seu rosto pálido. Giulia dera um tapa em sua mão abusada e na cobra que a fitava ameaçadoramente, lançando-lhes um olhar de ódio. Com um risinho, a loira afofara o cabelo, virando-se para ela com uma sinfonia de correntes e braceletes chacoalhando-se. Parecia divertir-se diante da evidente perturbação da mocinha grávida com um vestidinho simples em um corpo ainda curvilíneo. - Vc é realmente deslumbrante. - Concluíra com a voz aveludada, cheia de intimidade. - Ele é um homem de sorte.

Foram as últimas palavras que Giulia ouvira antes de, drasticamente, fugir dali, agora, com os olhos embaçados pelas lágrimas que escorriam em profusão por seu rosto consternado. Empurrava de sua frente quem encontrasse pelo caminho, como um jogador de futebol americano, na final da temporada, com a bola na mão. Nunca entendera aquele jogo que atraía tanto a atenção do pai de seu filho sempre em frente à TV, com uma garrafa de cerveja na mão e os olhos vidrados que não a enxergavam ao seu lado.

- Infeliz! - ela praguejara sem ser ouvida pela multidão. Em sua mente, flashes do rosto de Fernando, seu sorriso cafajeste, seu olhar penetrante que ela julgava ser somente dela, direcionados a outra mulher, tão loira e tão perfumada quanto aquela que acabara de deixar para trás. Chegara a sentir o cheirinho da loção pós-barba dele quando a tocara. Queria morrer. Sumir dali. Mas havia tanta gente. Tanta fumaça. Cadê a porta??? ODEIO TODOS VCS! Ela gritara para si mesma em meio ao salão onde poucos arriscavam-se a dançar. Afinal, a salsa não é um ritmo fácil de se dançar. Não para quem não tem o sangue latino nas veias ou a Arte da Dança em seu coração. Giulia possuía ambos, misturados ao ódio e aos hormônios e à insanidade temporária.

Soltara os cabelos que abriam-se em uma cascata reluzente. Cabelos negros, azulados da cor da noite sem luar. Jogara-os para trás, num repente, erguendo o queixo, altiva, imponente, coração em pedaços e o corpo que se movia, na ponta dos pés em suas sapatilhas, em torno da pista. Estava de volta às aulas de Ballet. Ahhh! Seu professor querido que tudo fizera para que ela fosse com ele, estudar na famosa e considerada Julliard Music School, em Nova York. Comprara-lhe até as passagens. - "Vou ficar com o homem que amo", lembrava-se agora da resposta mais tosca que poderia ter dado a alguém tão importante em sua vida profissional. Tola! Idiota!, maldizia-se enquanto gingava os quadris, mãos acima da cabeça e, nos lábios, um sorriso convidativo. Olhos cerrados que sonhavam com seus dias de bailarina. A falta de equilíbrio por conta da gravidez parecia ter sumido, de um momento para o outro e lá estava ela. Holofotes coloridos sobre seu corpo e suas pernas delineadas e os seios...ahhh! Agora gabava-se de seus seios fartos, fartíssimos se comparados aos da loira. A barriguinha estava bem escondida num modelito em godê com elástico logo abaixo do busto. Seus fitilhos tão negros quanto o vestido estavam um encanto. Ornavam com as longas e desleixadas madeixas que lhe caíam sobre os ombros que se moviam vagarosa e voluptuosamente. Em poucos segundos, era o alvo de todos naquele buraco onde o pai de seu filho a deixara sozinha. Agora vc me vê, querido! Ela pensara, elevando uma sobrancelha, inflando as narinas enquanto Fernando, tão encantado quanto colérico, aproximava-se dela, afastando os convidados com as mãos enfurecidas, agressivas. Giulia não conseguira distinguir se aquela expressão no rosto dele era de culpa ou de raiva ou ambas, perfeitamente misturadas. Ele, agora, estava perto demais. Quase a tocara...

- Dança comigo??? - Perguntara o homem misterioso que surgira, deslizando pelo piso de madeira, lançando-lhe olhares altamente pessoais. Camisa aberta para revelar um torso de músculos untuosos, o cabelo preto e lustroso escovado para trás, deixando livre o rosto moreno e liso, com os lhos extraordinariamente bonitos - Gostei do modo como se mexe, babe! - Exclamara, entusiasmadíssimo, estendendo-lhe o braço, ao estilo John Travolta.

- E eu do seu! - Giulia francamente exultara ao ver aquela figura exótica diante de si. Sorria ao rapaz que salvara sua noite. - Arriba, abajo, al centro y adentro! - Giulia bradara, instigando-o, com a raiva a corroer suas entranhas. Lançara um olhar fulminante ao pai de seu filho, logo à sua esquerda. Teria ele encontrado com os olhos de Medusa??? Porque me parece uma estátua! - Ela exclamara, dando uma gargalhada ensandecida, de olhos cerrados.

- Não ouvi, princesa!

- Deixa pra lá! - Ela gritara em seu ouvido. Ele fez que sim, aprumando-se para o espetáculo.

- Arriba! - Giulia arregalara os olhos surpresos com aquele grito tão alto quanto agudo, deixando-se guiar por ele. Dançaram magistralmente ao som de "Papa loves Mambo", de Perry Como. Dançando, ela voltara no tempo, aos braços de seu tio que a guiava quando ainda possuía destreza e firmeza nas pernas, agora, trôpegas e enfraquecidas. As lágrimas escorriam por seu rosto onde se liam a tristeza, a saudade, a revolta, o desprezo, a humilhação, o desequilíbrio. Na plateia, não havia quem não os admirasse. Alguns até os incitavam com vivas e palmas. Um show de salsa, suor e lágrimas.

Nando, enfim, conseguira descolar os pés do chão e, agora, a caçava como um louco enquanto a via nas mãos hábeis de seu condutor compenetrado que a fazia girar e girar para, então, abraçá-la num repente. Giulia sorria, encantada, ouvindo os risos estridentes de seu tio, animado com sua evolução. "Bravíssimo, Giulia! Bravíssimo! Vc não nega que é minha filha!"

Fernando a via chorar, ali, espremido pelo povo que começara a se animar. Levava aos mãos à cabeça, desorientado, arrependido, preocupado com o filho naquele corpo em fúria. Apiedava-se dela em um dos surtos aos quais acostumara-se a presenciar durante os anos de convivência. Seu corpo era jogado de um lado para o outro, pelos casais que despiam-se da vergonha, incentivados pelos bailarinos estrangeiros contratados pelo dono da festa. Ao menos, era o que o comentava-se, de boca em boca. Estavam tão enlouquecidos os convidados àquela altura. A festa seria lembrada por muitos. Uma festa da pesada! Bebida, comida e um pó branco que costumava acelerar os ritmos cardíacos, dilatar as pupilas e desinibir os mais recatados.

- Giulia, para! - Ela o ouvira gritar, entre braços erguidos e copos cheios, cabeças vazias e risos histéricos. - Agora! - A voz dele era grave, severa e um tanto arrastada, abafada pelo som que bombava fazendo pulsar os corações. - "Bandido. Vc bebeu e me deixou aqui, sozinha.", ela pensava e dançava com ardor acompanhando o compasso acelerado do exímio dançarino que parecia ter saído das filmagens "Dirty Dancing". Se fechasse os olhos e usasse um pouco de sua imaginação, juraria estar dançando com o próprio Patrick Swayze em meio à clareira que se abrira para ver o casal que, juntos, eram aplaudidos, corpos colados, pernas entrelaçadas e movimentos extremamente sensuais. "Wow!"

Giulia parecia sorrir, no entanto, seus olhos cheios d´água causavam estranheza no jovem latino com pinta de gigolô.

- Larga a minha mulher! - Fernando mal terminara de pronunciar as últimas palavras quando o bailarino transtornado, de olhos estúpidos, quase chapado demais para saber o que estaria por acontecer, já se vira dominado pelos braços fortes do pai de Sunshine que o puxava para trás, imobilizando-o. - LARGA A MINHA MULHER! - Ele agora dominava o pobre homem numa dolorosa chave-de-braço. Por pouco, quebrara-lhe os ossos, se não houvesse despertado de sua ira há tempo. Empurrara-o para longe, desconhecendo-se a si mesmo. Era avesso à violência. Brigas, socos e pontapés era da alçada da amiga de infância. Não dele! Giulia recuara, horrorizada, abafando um grito de horror. Repudiava tudo à sua volta. Sua própria permissividade, a atitude violenta e inesperada do pai de seu filho, as sombras que os cercavam e que somente ela conseguia ver. Os risos diabólicos que ecoavam naquele recinto fechado, claustrofóbico, repleto de figuras dantescas com olhos reptilianos que aguardavam um final sangrento ante a briga que se iniciaria entre os dois homens se o latino, tremendamente, insultado por ter sua blusa branca, nova, importada, rasgada pelas mãos pesadas de Fernando, não recuasse a tempo, praguejando em portunhol, lastimando-se pela camisa perdida.

- Eu não sabia que ela era casada, idiota! - Defendia-se, afastando-se de Nando, olhos que o temiam, mergulhados num desconsolo, empapuçado de suor e os cabelos sem o seu topete avassalador. - Se soubesse...

- EU NÃO SOU CASADA! - Giulia berrara a longos haustos, dedos enfurnados nos cabelos emaranhados, olhos injetados, lábios trêmulos e as lágrimas que devassavam seu rosto transfigurado pelo cólera. - Nunca fui. - Ela abanara a cabeça, afastando-se dele, secando o rosto com o dorso da mão. Parecia sentir dor, pois levara as mãos à barriga. - Vc nunca me quis como sua esposa. Nunca. Sempre fui sua amante. A amante das amantes. Uma das amantes das amantes. - Rira freneticamente, girando seu corpo em torno de si mesma. Fernando tentara alcançá-la, pará-la de alguma forma. Controlar sua ira, seu descontrole. Tomara seu braço com força, olhos cheios de culpa. - Eu perdi tudo por vc...- Sua voz embargara. E o silêncio fora ouvido. - Perdi minha vida, meus sonhos...por vc. E vc fez isso comigo.

- Não fiz nada, amor. Vamos sair daqui. - Ele a puxava com o medo estampado em seu rosto, evitando seu olhar vago e sombrio. - Vem. - Passara a mão em torno de sua cintura e quando estava prestes a erguê-la em seus braços fora surpreendido por um estalo em seu rosto que ardera logo em seguida. Arquejos de espanto ressoaram pelo recinto. Suspiros e alguns risinhos vindos lá do fundo. Ele cerrara os olhos, o rosto contraído pela dor do tapa, mas, principalmente, por reconhecer-se merecedor daquele castigo e vexame. Conquanto o rosto ardesse em chamas, ele não soltara sequer um instante a mão que agora machucava a pele fina do braço dela. - Vamos pra casa. - Ele sussurrava, com aquele gesto só dele de morder os lábios quando estava muito nervoso ou embaraçado ou sentindo-se derrotado. De súbito, a mão dela, livre do braço dele, subia na direção de seu rosto. Outro estalo surdo se fez ouvir. - Chega! - Ele a puxaria pelo braço e a jogaria sobre o ombro direito. Lembrara-se a tempo da barriga e do filho. Do filho que tanto medo lhe causava. Um ser que dependeria dele para o resto de sua vida. Tenho medo e é por isso que fujo de vc e de nós dois, confessaria a ela não fosse covarde, entregando-se aos beijos de outra mulher.

- Volta pra vagabunda! Volta pra piranha que ainda trabalha contigo! - Ele passara as mãos pelos cabelos, deslizando-as sobre o rosto, despenteando suas grossas sobrancelhas. Estava desorientado. - Acha que eu não descobriria, Fernando??? Hein??? Vcs precisavam fazer isso aqui??? Na minha presença, Fernando??? Precisavam??? SEUS PORCOS! SUJOS! - Ela sentia os olhos da loira sobre si, mas, jamais daria a ela o prazer em vê-la sofrer. Suas pernas estavam cansadas, os pés inchados, a barriga que começava a pesar. No afã em voltar a dançar, esquecera-se da gravidez. Sentia-se tão leve! Exausta, sem ar, tonta e enojada, sentara-se sobre o piso onde havia bailado com seu tio amado. Me tirem daqui. Me tirem daqui. Me tirem daqui, ela repetira, pernas cruzadas, tronco que se movimentava para frente e para trás como um autista. Isolava-se daquele mundo trevoso. Eu bati nele. Meu Deus, me tira daqui.

Ela o esbofeteara diante de todos, odiando-se por isso. Jamais havia machucado aquele rosto. Jamais erguera a mão a ele. Nem mesmo quando ainda eram crianças e ele implicava com ela por tudo e qualquer coisa.

- Quero sair daqui. - Ela declarou com os olhos orlados de vermelho, o corpo que tremia sem parar. - Cadê a saída??? - Erguia-se do chão com dificuldade, segurando a barriga como se ela pudesse sair do lugar a qualquer instante. Nando a ajudara a se reerguer, sem jamais erguer os próprios olhos a ela. Sentia-se um lixo.

- Giulia, deixa que eu te levo...

- NÃO TOCA EM MIM! - Ela, num repente, olhos flamejantes, dentes cerrados, voltara-se contra ele, empurrando-o uma, duas, três vezes. Mãos espalmadas sobre seu tórax, obrigando-o a recuar. Ele retesava o tronco, firmando-se nas pernas a cada recuo. Agarrou-a pelos braços, impedindo-a de continuar. - VC ME TOCOU, IDIOTA! AGORA NÃO TENHO COMO FUGIR DO QUE VI! - Cobrira o rosto com as mãos, curvando-se para frente, desolada. - Infeliz. Agora eu posso ver tudo...- Os braços abertos em cruz, os olhos demasiadamente abertos, os cabelos desgrenhados, um sorriso macabro conferiam a ela um ar de loucura que tocava o coração dos convidados. Mobilizavam-se por ajudar o amigo do aniversariante a controlar a esposa com surtos esquizofrênicos, psicóticos, paranoicos ou algo do tipo. Queriam-na longe dali. A festa deveria continuar e Giulia, a louca, não poderia permanecer ali. Fernando dera-se conta de onde estivera a noite inteira. Trocara a paz de seu lar por bebida, um par de pernas bonitas e um 'tapa' na cocaína que era fartamente distribuída em bandejas. Sentia-se parte da escória. Culpava-se por estar ali e ter deixado que eles a contaminassem. Impedira, com os olhos alucinados que tocassem em Giulia e em seu filho. Estaria disposto a brigar com todos se fosse preciso, mas, não encostariam o dedo nela. Agora, era ele quem surtava. - Não toquem em mim. - Ela avisara, dedo em riste, já refeita, corpo ereto, o rosto que se erguia, lentamente, mostrando-se acima daquela sujeira. - Vcs, seus riquinhos de merda. - Falara mansamente voltando os olhos insanos aos que a fitavam com horror. - São vcs que financiam a violência que rola lá fora! São vcs que enfiam esse pó maldito goela abaixo que tiram as vidas de inocentes lá fora. - Sua voz crescia. Sua figura se agigantava. Ela não mais tremia. - Vcs são um bando de hipócritas que reclamam do governo e da violência. Seus merdinhas viciados que dão dinheiro pra traficante. MORRAM! ENTUPAM-SE DE PÓ ATÉ INFARTAREM! NÃO TOCA EM MIM. - Ela esbofeteara o rosto do aniversariante obviamente chapado, abobalhado demais para revidar. Estava perplexo com o tapa que sequer sentira por estar com o rosto anestesiado. Apenas ria. Um riso bobo, sem sentido.

Ela pensara estar em um filme de terror e queria acordar e ouvir a voz de sua tia e sentir seu beijo doce em seu rosto. Fernando sentira o mesmo e, num arroubo de coragem, ele a tomara em seus braços, pronto a receber outro tapa. Mas, nada acontecera. Ela o encarou com frieza enquanto que, por sua mente atormentada, passavam flashes dele com a loira no banheiro masculino. Beijos roubados, molhados, risinhos de cumplicidade. - Por que fez isso comigo? - Sua voz era baixa e dolorida. Seus olhos amendoados e tristes. Ele, calado, contrito, baixara a cabeça, levando-a embora dali. - Eu tenho nojo de vc. - Dissera entre dentes, recostando a testa em seu peito.

- Eu também tenho nojo de mim. - Ela o ouvira falar baixinho quando cruzaram o batente da porta daquele lugar que se assemelhava ao inferno. Antes, porém, tivera tempo de, num relance, vislumbrar a loira que a tudo assistira, com uma expressão neutra, ora bebericando o vinho branco ora tragando seu cigarro, baforando jatos de fumaça pelo canto da boca. Vira, igualmente, a multidão invisível aos olhos humanos que se abraçava aos que se entregavam aos vícios. Reconhecera um ser em especial, embora, dele, não se lembrasse ao certo. Sabia que o conhecia, mas...diabos! De onde eu te conheço??? Em agonia, braços que se apoiavam no pescoço de Nando, rígido como uma estátua, resmungara, sentindo uma lufada de ar quente em seu rosto umedecido. Ouvira a voz suave e cheia de paixão que a seguira até o carro.

"Estarei por perto. Basta que me chame. Estarei aqui."

Os imensos, tristonhos e súplices olhos azuis de seu grande amor fora a última visão antes de mergulhar, de braços abertos, na Escuridão.

Morgana Milletto
Enviado por Morgana Milletto em 19/10/2019
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