Dialeto Fluvial
Acordei.
Uma leve enxaqueca tomou minha cabeça. Cheiro de algo como incenso. Vasculho ao meu redor, procuro alguém, algum rastro. Fecho os olhos novamente e algumas vozes se arrastam sobre a minha pele.
Naquele dia, meu primeiro dia de vida pós-morte, eu não compreendia absolutamente nada do que estava acontecendo. Alguns médicos se aproximaram sorrindo. Eu fui uma experiência do projeto Lázaro. Havia dado certo. Era a primeira vez que uma IA havia recolhido informações suficientes para recuperar um ser vivente que havia morrido há mais de duzentos anos. Sim, mais de duzentos anos. Fui literalmente impressa numa impressora 4D. Lembro do meu passado. Não me recordo de absolutamente nada do que me ocorreu durante o estado de morte.
- Você acordou, disse uma médica sorrindo. Sua silhueta me causaria um incômodo profundo no contexto em que eu era viva, digo, antes da minha morte.
- Onde estou?
- Num hospital. – eu podia ouvir som de pássaros cantando alegremente lá fora. As paredes não eram brancas, e sim, coloridas. O verde e rosa com detalhes em branco, alguns arabescos de pérolas. Pérolas impressas. Não havia mais necessidade de extração de material da Terra.
- Colorido assim?
- Dá pra notar que você realmente é de outra Era.
- Perdão, de outra o quê?
- Era. Desde o fim do capitalismo estamos na Era Comunal. Não precisamos mais plantar, nem abater animal algum, ou extrair matéria prima do solo. Com apenas uma célula produzimos cidades orgânicas inteiras em questão de minutos. A energia que utilizamos é estritamente solar ou eólica.
- Cidades orgânicas? – senti o estômago apertar. Quis vomitar. Um gosto amargo rasgante se agarrou ao meu esôfago.
- Sim, cidades orgânicas. Algumas são estacionárias, outras móveis.
- Como eu vim parar aqui? Tô com enxaqueca.
- Você morreu há mais de duzentos anos. Nós recup...
- Pera, pera, pera! Como assim eu morri há mais de duzentos anos?
(Continua)