A PASSAGEM - capítulo 02

Sem conseguir conciliar o sono, resolveu voltar à casinha onde morara Altino e olhar de novo a estranha mancha, que, após o incidente, parecera familiar, diferente do que aparentava de início. Sua mente era um mar revolto, com muita informação indo e vindo, flashs e acontecimentos, mas ainda de modo confuso, sem nexo. No meio de toda a bagunça, antevia alguma coisa mais concreta, e a mancha parecia estar presente na maioria das lembranças.

Ao entrar na casa, tentou acender as lâmpadas, sem sucesso. Olhou disjuntores, mas parecia tudo em ordem, e mesmo assim, nada. Buscou a lanterna, que funcionou bem, até entrar lá, novamente. Coincidências demais. Algo estranho se passava. Decidiu ir no escuro mesmo, mas quando se aproximou daquele quarto, notou tênue claridade vindo de dentro. Amedrontado e curioso, aproximou-se devagar, e ficou embevecido com o que viu. A mancha pulsava com luz própria, alternando várias cores, conforme se movimentava, como um coração em atividade contínua. Apesar de emitir luzes fracas, conforme Genon se aproximava, crescia a luminosidade, aumentava a pulsação, a tal ponto que ele se viu envolvido por raios coloridos.

Apesar da situação fora do comum, perdera o medo, completamente.

Após poucos minutos de contato com o fenômeno, sentia-se mais disposto, forte, lúcido, e que tudo se ajeitava na cabeça. Passou a lembrar, com clareza, de fatos, pessoas, detalhes do que acontecera naquele intervalo, durante a estada do casal, e que parecia apagado ou esmaecido na consciência, até momentos antes. Porém, a recordação acontecia de forma reversa, ou seja, do presente para o passado, pouco a pouco, regressivamente.

Via as cenas se desenrolarem em seu cérebro, como se estivesse assistindo a algum documentário. Viu-se levando verduras e legumes para o casal, pouco antes de se irem, indo à farmácia, comprar remédios, fazendo reparos ocasionais. Mas . . . , eis que surge uma cena, no mínimo, insólita e difícil de aceitar. Ele saindo da casinha, de mãos dadas com Rita, a caminho de sua própria casa, e, no trajeto, trocando carícias, que sugeriam extrema intimidade entre os dois. Na janela, viu Altino sorrindo, acenando e voltando, tranquilo, ao interior de seu aposento.

Negou-se a prosseguir com as reminiscências. Aquilo não podia ser verdade.

Nunca agiu daquela forma, nem se lembrava de sentir algo por Rita.

Saiu, intempestivamente, e voltou para sua casa. Sentou-se, pesadamente, na poltrona.

Fechou os olhos e tentou pensar em outras coisas. Queria esquecer o que viu.

Acordou quando o sol já ia alto no céu.

Pulou rápido, jogou água no rosto e foi alimentar a criação, aguar plantas, cuidar das tarefas usuais. Em meio à lida, cansado, lembrou do que lhe incomodava o íntimo, quando teve a impressão de ver uma sombra passar. Olhou em volta e não havia nada. Foi observar se a mancha estava diferente, também, do lado de fora da parede, mas não notou nada de anormal.

Quando se recolheu, no início da tarde, percebeu não ter comido nada, nem ter fome. Também não sentia sono ou cansaço, mas mal sentou e relaxou, recomeçaram as lembranças. Desta vez deixou que fluíssem, para ver no que dava, pois mesmo incomodado, queria por a limpo a estranha cena da noite anterior. Curiosamente, como se fosse um filme pausado, tudo seguiu a partir do ponto interrompido. Contrafeito, viu a si mesmo e Rita, entrando em sua casa e se dirigindo para o quarto, dispostos ao enlevo sexual. Não quis ver mais.

Nova surpresa! Ao se recusar a assistir a continuação da cena, uma mudança.

Viu-se alguns anos antes, conversando com Altino, na casinha deste, e Rita trazendo algum lanche. Ao se aproximar, abraçou e beijou Genon nos lábios. Ele se afastou, olhou, sem jeito, para o marido, e quando ia tentar uma desculpa qualquer, viu o amigo pegar a mão de Rita, juntar com a sua e dizer:

- Faço gosto de vê-los se entendendo! Ela precisa de carinho que não posso dar.

- Mas isso não está certo! Não posso ter intimidades com sua esposa.

- Lembre-se, Genon, que quando me aceitou aqui e me pôs em contato com meu novo destino, salvou-me a vida física e tirou-me de uma situação muito aflitiva. Sei o quanto perdeu, para que eu ganhasse a chance de refazer a existência, e ter um novo horizonte. Apesar disso, meu corpo degenera, e sei que Rita terá em você um companheiro amoroso e respeitador.

A imagem se apagou aos poucos, enquanto Genon tentava desatar os nós mentais.

Que Altino quis dizer com ele ter perdido algo para que o amigo ganhasse?

Precisava, urgentemente, esclarecer todo o mistério que envolvia o casal.

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 16/06/2019
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