O salve lindo
Foi "pé-pu-pé" que Maria José entrou naquela sala de aula. Ainda que
tudo fizesse na imaginação, não queria perturbar a meninada nem a
mestra. Sagrados são os momentos e mementos da educação.
E de pensar que havia bem pra lá de cinquenta anos que Maria José
deixara os livros e cadernos de lado - ou era a lousa - para trabalhar,
criar família, botar os filhos na escola...
Bem que, após décadas de peleja na fábrica, passara-lhe pela cabeça
trabalhar numa escola. Ser servente, bastava, e ferventemente o
desejava. Era mais próximo da casa do que a "companhia". Mas isso era
o mínimo. O que importava, é que estaria em contato com a criançada,
cuja algazarra ao menos tinha vida, não era como aquela monocórdia
zoeira ensurdecedora dos teares e todo o maquinário da "fapa". E havia
a perspectiva das folgas aos sábados, coisa desconhecida do
operariado. O salário havia de ser menor - se possível algo abaixo do
mínimo. E era, podia também atrasar.
Mas e a nomeação para o cargo? Quedê um padrinho, uma pessoa de
posição e influência para reconhecer-lhe os méritos de tantos anos num trabalho duro e cuidando de família ao mesmo tempo. Sem falar nos caprichos do fogão a lenha que fazia a comida mais gostosa mas como levava tempo pro fogo aprumar, e isso se não chovesse... com lenha molhada, nem estopa empapada. E estopa ou stop, esse desejo tão acalentado não se realizou, pois foi na "fapa" que Maria José se
aposentou.
As desvitórias, contudo, não esmoreceram o sonho de Maria José. E ei-
la agora, atenta, na sala de aula, ainda com o mesmo assoalho de sua
infância, pondo sentido na turma, em que podiam muito bem estar seus
bisnetos, se bisneto já tivesse.
Quer ver e ouvir tudo, ainda que o ouvido já a venha traindo, no olvido
nada há de cair. E assim também foi com o grande Beethoven, e ele
não perdeu o amor à música, pelo contrário, compôs as suas mais belas
sinfonias, lutando contra a surdez. E se não tão bem ouvia, sentia-as
em sua inteireza, ainda maior beleza.
Maria José, a parte o sol, quiçá não difira um dó de mi. Mas regeu sua
orquestra, entre os teares e suas crias, por anos a fio. E a pavio.
E se surpreende Maria José ao não ouvir a turma perfilando-se para
ensaiar um hino. Tão bonitos, os nossos hinos, forjadores do amor e do
sentimento de Pátria. O hino à Bandeira então, é de uma musicalidade
tão suave, que até os meninos se desinibem perante as meninas e
soltam também a sua voz. Além dalgum peito atroz...Soltavam. Pois ao que parece já não se canta mais com aquela regularidade. Que pena.
Hora da merenda e recreio. Maria José queria ter podido ouvir mais
vezes, quem sabe regularmente, aquela sineta, tão gentil - e que
desperta tanto alarido entre as crianças, e alívio entre as mestras.
Maria José aproveita para ir ao quadro e deixar um lembrete, em sua
escrita desconforme mas espevitada: Que tal cantar o Salve lindo
pendão da esperança?