CAPÍTULO 2 - ALUCINADAMENTE ALICE

2.

(ATENÇÃO: LEIA O CAPÍTULO ANTERIOR E A SINOPSE PARA ENTENDER A HISTÓRIA!)

Nos dias de folga, quando não estava mergulhada nos livros, gostava de ficar com meus avós paternos.

Eles moravam perto de casa e a proximidade facilitava muito o contato. Meus pais permitiam que eu fosse até lá sozinha. Bastavam cinco quarteirões e eu adentrava o paraíso. Era o melhor lugar do mundo.

Em toda a minha vida, nunca conheci alguém tão especial e que me fizesse tão feliz como minha avó Nancy. Apesar da idade, seus olhos verdes eram vivos, alegres e bondosos. Os cabelos grisalhos combinavam com o tom da pele pouco enrugada. Era dona de um frescor que a natureza teria dificuldade de roubar porque vinha da alma.

Vovó fazia manjares dos deuses, mas não era por isso que eu apreciava comer em sua casa. Na minha, a quantidade colocada no prato tinha que ser consumida até o último grão. Desperdício era uma palavra proibida. Nancy me deixava comer o que eu queria e quanto desejava e até repetir, se fosse da minha vontade. Vivera o suficiente para saber que tal exigência dos meus pais não seria responsável por quem eu me tornaria no futuro.

Havia um jardim florido na entrada da casa e, nos fundos, um quintal onde passei as horas mais felizes e mágicas da minha infância. Vovó, além de me contar as historinhas clássicas e outras tantas inventadas, encenava-as comigo. Ela emprestava suas roupas e jóias sem distinção para compor as personagens. Era uma delícia abrir os armários e as gavetas e me deparar com tantas cores e texturas. Eu ficava enlouquecida e experimentava tudo: lenços, vestidos, luvas, colares, brincos, pulseiras, sapatos, perfumes e batons.

Preparávamos o cenário com o mesmo cuidado. Nancy poderia ter sido atriz, porém, em sua época, não era comum nem visto com bons olhos uma mulher ter essa profissão. O mundo perdeu seu talento.

Eu sempre representava a princesa do conto de fadas. Parecia natural que fosse assim. Só depois de adulta, percebi que as heroínas não me interessavam nem um pouco. Não era com elas que eu me identificava.

Pedro, meu avô, muitas vezes participava das encenações e, quando não estava atuando conosco, transformava-se em espectador. Divertia-se com nossas estripulias e batia palmas com animação.

Vovô ensinou-me a andar de bicicleta depois de ter machucado meus joelhos inúmeras vezes. Com ele aprendi a soltar pipa também. Mas o que me deixava mais feliz era quando me levava ao parque de diversões da cidade. Eu ficava exausta de tanto brincar e, na hora de ir embora, vovô me comprava um algodão doce. Eu tinha o impulso de sempre escolher o colorido de rosa, mas Pedro, sem me induzir, dizia:

- Alice, a graça da vida está em provar vários sabores!

Então, eu comprava o azul e ia para casa satisfeita pela escolha.

Era um homem trabalhador, bondoso, simpático e charmoso. Gostava de me levar à padaria para que me vissem em sua companhia. Tinha orgulho de ser meu avô e eu jamais teria escolhido outro homem para este papel, se me houvesse escolha.

Certa noite, quando levantei do sofá para ir dormir, o telefone tocou. Meu pai atendeu e seu semblante assustado mora em minha memória até hoje. Do outro lado da linha, minha avó chorava e pedia socorro.

Entramos no carro velho e branco do papai e fomos ao encontro de Nancy num silêncio aterrador.

A cena, com a qual nos deparamos, era digna de um filme. Encontramos vovó aos prantos, na cozinha, com uma faca espetada no centro da palma da mão esquerda. No piso branco, o sangue parecia ainda mais escarlate. Senti uma tontura e um enjoo momentâneos.

Pedro havia chegado mais tarde em casa e levemente embriagado. Uma discussão teve início durante a qual vovô confessou estar apaixonado por Elisabeth, a balconista da padaria, e revelou que pretendia viver com ela. Nunca consegui entender como meu avô podia trocar Nancy, que era uma mulher incrível e linda, por uma fulaninha desclassificada quinze anos mais nova do que ele.

A faca? É claro que meu avô seria incapaz de machucar Nancy. Quando eu perguntei a vovó como aquilo havia acontecido, ela disse:

- Alice, a dor era tanta em meu coração!

Naquela noite, aprendi duas coisas importantes. O amor é um sentimento pontiagudo que faz sangrar. Para livrar-se de uma dor é preciso arranjar outra.

Lady Blue Eyes
Enviado por Lady Blue Eyes em 04/07/2013
Reeditado em 22/09/2015
Código do texto: T4372091
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