Viagem por São Paulo: Crônica de neves de antanho (Cap. VII)
O ano chegava ao fim; já estávamos em novembro, e três meses haviam transcorrido desde minha chegada a São Paulo. Não conseguia encontrar quem me publicasse os escritos ainda que por pena, e tal experiência começava a azedar o idílio que vivia na casa de meu mestre T…. Lia muito, escrevia pouco e falava menos ainda, e nem mesmo as agradáveis palavras de conforto que T… tinha a oferecer-me sempre, outrora tão eficazes, conseguiam fazer algo por mim.
Certo dia ele apareceu à porta de meu quarto, trajando um paletó de cor púrpura, calças negras e um grande pêssego de papier-mâché na cabeça, encimado por um chapéu-coco diminuto. Era um homem imprevisível; nunca se poderia adivinhar o que lhe passava na mente. Mas não são assim todos os gênios?
“Como estou?”, perguntou-me.
“Parece-me algo saltado de um de teus trabalhos”, ri-me. “A que se deve tal fantástica vestimenta?”
“Um amigo dará um baile de máscaras em sua casa na Rua — esta noite. É bem perto daqui! Gostaria que fosse meu acompanhante; talvez alguma diversão mais fora do padrão desanuvie teu humor. Escolha uma boa fantasia! Pegue roupas antigas minhas, se necessário – algumas delas só vim a usar uma única vez em algum concerto passado!”
E retirou-se para cuidar de seus afazeres.
T… era conhecido por seu extravagante guarda-roupa; realizava grande parte de seus concertos fantasiado. Ao deslizar os olhos e as mãos por todas aquelas vestimentas, máscaras, frascos de tinta facial e incontáveis outros apetrechos, senti-me pasmo por ali ter, a meu alcance, tal memorabilia tão valiosa. No fim, resolvi que ia fantasiar-me de Mefistófeles – sempre gostei de ser outré em público. Retirei do guarda-roupa uma longa capa escura, um velho par de sapatos de fivela, calças e um colete de cor escarlate, um espalhafatoso rufo branco e um diadema deveras peculiar com a aparência de um par de chifres, concluindo com uma elegante bengala antiga de castão de rubi. Após T… fazer os ajustes necessários para que as roupas me assentassem bem, lá estava eu, à procura de um Henrique Fausto a fim de incutir-lhe na veneranda mente princípios de infernal sabedoria proibida e profana. Ainda guardo em algum lugar minha fantasia – ou o que dela deve ter restado a esta altura, se as traças não lha devoraram; com exceção da bengala, que devolvi respeitosamente a meu mestre por achar-me indigno de possuir tamanha preciosidade.
Caíra a noite e, com meu entusiasmo revigorado, segui cantando ruidosa e alegremente com T… àquele baile que tão fatídico a mim se provaria.
[Continua no Cap. VIII]