Capítulo 7 de A Educação Sentimental de Xavier Renart.

Na Maine Coon

Era antes de tudo uma loja em tons castanhos. Desde as lâminas e móveis de ipê em marrons claros à iluminação em tons amarelo escuros, passando pelos mostruários onde predominavam as roupas e produtos em cores marrons, somente alguns produtos em couros pretos, ou os ternos azuis escuros e cinzas davam uma diferença na cor da loja. Mesmo assim, não contribuiam com nenhum colorido. A única exceção era pelo piso em ladrilho hidráulico em tons também beges claros, mas com suaves linhas em verdes e vermelhos, com motivos que vagamente lembravam um pé de café. No entanto, apesar dessa monotonia de cores, o ambiente dava antes de tudo uma impressão de espaço, e arejamento. No entanto, nenhuma modernidade podia ser buscada ali. A primeira impressão que Fernanda teve ao entrar na loja é que não era uma loja feita para mulheres. O ambiente inteiro lhe dava a impressão que não haveria nada novo qu ela pudesse encontrar ali, ou com que se empolgar. Monotonia e dureza. Ela não encontrara o senso de superioridade do qual Renart havia falado. Um aroma cítrico aumentava a sensação de arejamento do ambiente. Monotonia, dureza e arejamento. Sua mãe havia ido com ela ao shopping e não se importara com seus argumentos quase desesperados de que aquilo era uma atividade do curso. Ela disse que não precisaria nem cumprimetá-la, se não quizesse. Ela iria aproveitar a ocasião para se encontrar com Dorotheia. Já havia conversado com a amiga e combinado o encontro. Mas naquele momento, enquanto Dorotheia e Renart não chegavam, ela aproveitara para dar uma olhada nas outras lojas.

- Oi Fernanda – A voz de Karine era firme, mas não apresentava nenhum tom de hostilidade. Fernanda respondeu com um oi um pouco surpreso, mas sentiu que não tinha intimidade suficiente para pronunciar o nome de Karine. Procurou instintivamente os outros dois membros do trio que desde então nunca vira separados. Viu Theo e Carol pela vitrine da loja, olhando e comentando sobre os produtos.

- O Renart e a Dorotheia ainda não chegaram?

- Ainda não. Mas acho que a gente chegou mais.

- Hummm... o que você achou da loja?

- Muito marrom. – Karine riu com a resposta que ela mesma teria dado na primeira vez que entrara na loja. Riu, mas sem se entregar ou dar a impressão de nenhuma intimidade com Fernanda, porém, riu sinceramente.- É, eu pensei isso também.

- A impressão que tive é que uma loja feita só para homens. Se uma mulher quizer comprar algo para o marido, provavelmente ela não viria aqui, a não ser que saiba que ele quer algo daqui. E duvido que ela compre algo além do que veio comprar.

- Oi Fernanda.

- Oi Theo, oi Carol.

- Carol, a Fernanda achou a mesma coisa que a gente achou.

- Bom, pelo menos a loja dá a impressão de ser limpa. Mas é meio que formal demais, podia ter umas bermudas aqui, umas blusas pelo menos. Homem sério usa blusa também.

- Ah Theo, só se for em casa meu filho. Ou se tiver na praia, ou num churrasco. Para trabalhar ninguém usa blusa não.

- Só o nosso professor de psicologia, que aliás, é dono daqui também.- Carol se lembrou da vez que viu Tomás com uma blusa com motivos do filme Star Wars em um restaurante – Mas ele fica super arrumado quando vai trabalhar na reitoria né Theo. - Karine, que gostara mais de Tomaz por esse ter dado espaço para que ela discutisse um assunto que não compartilhara com outras pessoas, nem com seus colegas, nutria uma maior afeição por Tomaz do que Carol e Theo. Ele lhe esplicara, para um certo constrangimento dela, de como as relações amorosas faziam parte da atividade educativa. Era uma conversa superficial sobre o assunto, que fora necessária para que ela entendesse outra coisa. Mas a forma tranquila como ele abordou o tema, e como ela se sentira a vontade com a explicação, que para outros poderia parecer como algum tipo de insinuação, dera-lhe uma simpatia natural pelo professor. Além disso, ela conseguira ver o intelectual de alto nível por traz do professor das faltas frequentes e das aulas elaboradas as pressas. Viu que era alguem com quem ela poderia aprender algo. Até agora não tinha atentado para o fato de que ele também era um sócio da Maine Coon. Renart havia citado seu nome de maneira muito passageira, e ela estava mais preocupada sentindo ódio de Fernanda por esta estar reparando em sua roupa. A pensar nisso o ódio voltou novamente, e olhou para Fernanda que estava se entrosando com Theo e Carol. Respirou forte e com o ódio, e sentiu a mistura do aroma cítrico da loja com o aroma de couro e das madeiras dos móveis e dos paineis que cobriam parte das paredes.

- Fernanda, já chegaram?

Fernanda queria cavar um buraco e se enterrar no chão com a chegada de sua mãe. Ela entrou e se dirigiu a Fernanda e ficou olhando para seus colegas esperando ser apresentada. Como Fernanda estava totalmente paralizada, ela mesma resolveu se apresentar.

- Olá, tudo bem, eu sou Letícia, sou mãe da Fernanda. – Karine a cumprimentou e apresentou os outros, que também a iam cumprimentanto. – Oi Letícia. Eu sou Karine, essa é Carol e esse é o Theo. Nós estamos no estágio com Fernanda aqui na Maine Coon.

- Olha, que bom. Vocês são da sala dela?

- Não, somos do sétimo período.

- Nossa, que bom né Fernanda, eles já tem mais experiência e vão poder te ajudar não é minha filha. Então a Fernanda vai ser a mascote da turma?

- È, parece que vai ser sim – Karine se divertia um pouco, pois percebia que Fernanda estava mais branca do que já era. Carol e Theo estavam com vergonha por ela, e sentiam muito mais incômodo do que o prazer mórbido que Karine sentia. Letícia também sabia que a filha estaria envergonhada com isso. Mas como ela ainda se envergonhava de tudo que a mãe fazia, principalmente naquele dia, ela resolvera que a filha precisava passar por algumas situações para ver que isso não a mataria, para que ela deixasse essas bobagens de lado. No entanto, Fernanda sentia-se na iminência da morte. Morte por vergonha. Não sabia nem mais o que queria fazer. Estava com vontade de chorar, mas a vergonha era tanta que nem isso conseguiria fazer. Foi salva com a chegada de Renart com Dorotheia.

- Oi Dorotheia, oi Renart.

- Oi Letícia.

-Oi Letícia, que bom que você podê vir. Temos mesmo que conversar. Renart, A gente espera o Tomaz ou não?

- Ele falou que vinha. Agora, você sabe como ele funciona né.

- Vamos esperar um pouquinho. Oi gente. – Só então Dorotheia se dirigira aos alunos, que também a cumprimentaram. – Oi Fernanda, tudo bem querida. – A distinção de Fernanda do resto dos colegas fez a tênue sensação de alívio se desfazer de vez. Sentiu ódio de sua mãe por ela estar ali. – Renart, fica acho que você pode ir começando a mostrar a loja e os produtos para os alunos enquanto eu vou conversando sobre aquela linha de produtos. – Dorotheia se distanciava com Letícia para um canto da loja enquanto Renart inspecionava uma prateleira com jaquetas de couro. Depois de terminar a inspeção, olhara para o grupo de alunos flutuando num vácuo de expectativas para adiar sua espera. - Vamos esperar o Tomaz chegar, ai a gente começa. – E continuou a inspecionar as prateleiras, agora a de sapatos, mas afastadas do grupo. Uma vendedora conversou algo com Renart e depois voltou a atender os fergueses que entravam espassadamente. Eram na imensa maioria homens. Entravam e não se dirigiam aos vendedores. Olhavam as roupas, e quando eram abordados, agradeciam e os dispensavam. Só quando se resolviam por algo chamavam um vendedor para poder experimentar as roupas ou tirar alguma dúvida. Um casaco em forma de blazer em couro preto pareceia ser o que chamava a atenção da maior parte dos fregueses que entravam na loja.

Theo o estava esperimentando enquanto Carol e Karine o observavam com pouca atenção e conversavam entre si. Fernanda ainda com vergonha e com ódio da mãe se refugiava em um canto e prestava atenção nos vendedorese nos clientes que entravam. Homens, em torno de quarenta anos ou mais, roupas mais simples na maioria, alguns com blusas, jeans e tennis, uns poucos com ternos. Alguns poucos com os filhos ou com a esposa. Na maioria homens. Geralmente os homens mais novos vinham em dupla, ou em trios. Esses se demoravam mais na loja, olhavam mais e experimentavam mais roupas e pedia a opnião um do outro. Os mais velhos, sozinhos, chegavam, escolhiam, experimentavam, compravam e iam embora. Como se comprar roupa fosse mais um problema a ser resolvido. Reparou que havia um canto da loja onde esses homens mais velhos se demoravam mais, e adotavam um ar mais contemplativo. Por sinal era perto de onde estavam sua mãe e Dorotheia. Resolveu esperar as duas sairem de lá com medo de chegar perto da mãe e esta lhe fazer passar mais vergonha ainda. Quando as duas se encaminharam em direção a Renart, aproveitou a ocasião para ver o que havia ali. Era a parte de traz de uma parede coluna que ficava entre o canto onde ela estava e o local de atendimento da loja. Só uma estante em uma madeira marrom escuro fechada por vidros com detalhes laterais, como uma antiga cristaleira. Dentro, uma série de canetas, abotoaduras, pulseiras, chaveiros e outros produtos de metal. Percebeu que não tinham o logotipo da Maine Coon. Eram de uma outra marca. Sentiu que destoavam um pouco do resto da loja e entendeu o que Renart tinha dito na reunião. De repente percebeu que Theo, Carol e Karine estavam atrás dela.

- É, destoam mesmo. Esses ai tem um ar de mais modernidade. O que você acha Fernanda.

- São mais modernos mesmo. – Ainda continuava sem coragem de falar o nome de Karine. E mesmo que não fossem, parecem com o que o Renart falou. Parecem ser coisa uniforme.

- Se tirar daqui da loja e colocar no bolso da camisa, vai parecer falsificação também. – Theo tinha razão. Já vira vários de seus colegas que resolveram seguir carreiras mais rentosas, onde a ostentação de sinais de status como canetas importadas eram importante para a afirmação da capacidade e da competência que compravam canetas falsificadas e eram, mesmo para olhos treinados, praticamente iguais às originais. Pairava sempre sobre elas, mesmo as originais, uma aura de falsificação. Quanto mais visível e mais importante fosse a marca para a identificação da caneta, mais pairava sobre ela a aura de falsificação.

Karine se lembrou de suas reflexões sobre se sentir como uma impostora. Olhou para Fernanda. Não estava mais com tanta raiva dela. Na verdade, começara a repará-la melhor agora. Ela era pequena, e aperentava ser mais nova que seus 17 anos. Ainda tinha todo o frescor da adolescência recém adquirida. Seus cabelos loiros, muito finos e lisos, com uma longo franja lateral, e as bochechas rosadas ressaltavam essa juventudo. Não era gorda, embora desse a impressão de ser fofinha, talvez, mais uma vez pela bochecha ressaltada pelo rosa natural. Mas de forma alguma transpassava força. Nem fraqueza. Ela se movia com tranquilidade, e, por traz do ar meio perdida, olhava tudo com muita atenção. Essa foi a primeira característica que chamou a atenção de Karine. A atenção com que ela olhava para as coisas dentro da loja. Dava a impressão de uma apreensão lúcida sobre o que estava ao seu redor. De uma clareza sobre o que era percebido...

- Oi Gente, atrasei, mas cheguei. - Os olhares dos alunos se dirigiram em direção a porta. Tomaz chegara e já conversava com Renart, Dorotheia e Letícia. Eles conversaram um pouco e o grupo se dirigiu em direção aos alunos. Renart apresentou os alunos.

- Tomaz, esses foram os estagiários selecionados. A Carol, o Theo e Karine do sétimo período...

- Esses eu conheço, foram meus alunos, tudo bem ne gente, bom saber que você vai estar com a gente Karine. Acho que vai gostar muito daqui.

- Uai professor, já estou gostando.

- ... e a Fernanda, do primeiro. A Fernanda que é filha da Letícia.

- Uai, que bom, se tiver puxado o talento da mãe nós estamos feitos, né Letícia. Mas você tem mais sorte que os seus colegas de estágio – Fernanda mais uma vez setiu o rosto enrubercer de vergonha – em vez de ser aluna minha vai estar psicologia da moda com o Renart semestre que vem. – Fernanda respirou um pouco aliviada com a brincadeira. Olhou para Renart mas esse ria também, e nem pensava em responder ao elogio. Ela ainda não entendia, mas depois veio a aprender, por sofrer na pele, que essa era uma das armadilhas de Tomaz. Mas naquele momento, ficou aliviada.

- Dorotheia, vou andando então. Daqui vocês vão para outro lugar não é.

- É vamos mostrar alguns fornecedores e a confeção para os alunos.

- Então tá querida, vou andando então. A gente continua conversando. Mas gostei muito da idéia. Acho que vai dar certo sim. Tchau Renart, tchau Tomaz. – Os três professores se despediram dela – Foi até a filha – Tchau querida, boa sorte. A gente se encontra em casa então. Tchau! Prazer. – Se despedia também dos alunos já indo em direção a porta. Quando sua mãe saiu Fernanda se sentiu mais aliviada. Os professores começaram então a conversa. Dorotheia, que era a maior proprietária da loja, guiou os alunos pelas dependências da loja, mostrando o estoque, os provadores, a área para os funcionários, a área de venda e as prateleiras dos produtos. Explicava como uma loja funciona. Pediu para um dos vendedores explicar como era o cotidiano da loja, do tipo de cliente que mais atendiam e dos pequenos detalhes que só quem trabalha na lida diária conhece. Depois Dorotheia mostrou os diferente produtos, e de como cada um deles estava localizado dentro de uma linha de produtos, que embora não aparecessem articulados na disposição da sua exposição na loja, estavam articulados entre si por afinidade estética, formando conjuntos mais ou menos estruturados, e que deveriam ser vendidos juntos. Essa organização estava presente na cabeça dos vendedores, e, mesmo que na mior parte das vezes não vendessem vários produtos juntos, os compradores voltavam para comprar o sapato que harmoizava melhor com a jaqueta em um outro momento. Alguns deles os vendedores se lembravam e já indicavam. Mas a maior parte dos fregueses já entregava o serviço. Relatavam que tinham comprado a jaqueta tal ou o custume tal, e os vendedores já sabiam que sapato ou cinto apresentar. Foram entendendo aos poucos a dinâmica da loja, e em cinquenta minutos já estavam por dentro do que acontecia por ali. Tomaz e Renart estavam um pouco afastados e Dorotheia se encaminhou em direção a eles com os alunos. Estavam em frente a estante com canetas e outros objetos na qual os alunos haviam reparado antes.

- Esse é o objetivo de vocês terem sido contratados, essa estante aqui – Tomaz falava pela primeira vez para os alunos como um dos proprietários da Maine Coon – Essa estante aqui está em discordância com o que queremos para a nossa marca. Aliás, como vocês podem ver nenhum produto aqui é nosso. Esses produtos na verdade vendem pouco. Não esperamos que seja nosso carro chefe a venda de canetas ou relógios, mas apesar de não darem um lucro grande como produtos, podem gerar um lucro grande quando pensamos em agregar valor à marca. Nossa intenção, como acho que Renart e Dorotheia explicaram para vocês é atingir um mercado de luxo e de exclusividade, mas precisamos ter uma marca identificada com valores que estejam associadas a isso, e precisamos estar associados a esses valores de maneira diferente dos nossos concorrentes, afinal, somos pequenos, e não estamos nos grandes centros de produção de estética e de design. No entanto, nem por isso acreditamos que sejamos periféricos... – Tomaz começou a repetir o mesmo discurso que os alunos já tinham escutado de Renart, falando sobre valores estéticos, e sobre o que significava ser de destaque, e quais características estavam associadas a isso. Repetia os mesmos argumentos, só que de maneira mais barroca, com mais volutas, com raciocínios que sempre retornavam sobre si mesmos. Carol estava achando aquilo extremamente chato. Queria falar “Mas que saco isso” e deitar em um sofá. Somado à atmosfera amarronzada da loja, com seus cheiros de couro e madeiras, aquilo tudo ia causando nela um tédio e um enjoo insuportável. Precisava, como na maior parte do tempo, de estimulação sensorial mais rica, mais sensual. Sem perceber já estava enrolando uma mecha de cabelo vermelho do lado direito da cabeça e acariciando por trás da orelha esquerda. Procurou o braço de Theo, mas tanto ele quanto Karine estavam do outro lado do grupo, depois de Tomaz que ainda estava falando. Dorotheia e Renart impediam que passasse para o lado dos colegas. Fernanda estava atrás do grupo, o que tornava ainda mais difícil sua passagem. Estava se sentindo desamparada. Queria atravessar o grupo e ficar abraçada com Theo. Olhava para ele, mas seus dois amigos, para sua completa surpresa, estavam completamente absorto na explicação de Tomaz. Ela não conseguia entender como conseguiam prestar atenção naquilo. Aquele discurso totalmente sem nexo, sem um fluxo contínuo. Sentia sua mão começando a suar...

- Tomaz, só uma coisa.

- Claro Renart, pode falar.

- Só queria ressaltar que a gente gostaria também que esses valores estivessem associados com uma imagem de riqueza e poder característicos do Brasil. Alguma coisa que tivesse uma raiz bem brasileira...

- Podia inclusive ser mineira né Renart – Carol interrompeu a explicação de Renart enquanto pegava no seu braço, e de maneira involuntária apertou-o levemente para sentir o seu tônus muscular por debaixo da textura suave da camisa branca de algodão. Em um átimo de segundo percebeu que tinha ultrapassado o limite e tentou consertar, soltando o braço de Renart – É, a gente acha que só cafeicultor, senhor de engenho, nobre ou industrial foram ricos no país. Olha só, o cafeicultor, carioca e paulista... tá tinha uns mineiros também, mas os grandes mesmo, foram de lá. Senhor de Engenho, nordeste, nobre, Rio, industrial, paulista. Cadê os mineiros? Tiveram alguns bancários, mas nada rico mesmo. Aliás, os mais ricos de todos, até hoje, na história do Brasil, foram os daqui. Os donos de minas de ouro e de diamante na época do Brasil colônia. Olha só o contratador Fernandes, da Chica da Silva, era o homem mais rico do Império Português. Tá, era português, mas era na prática, daqui. – Havia inventado aquilo naquele momento. Até ela mesma se espantara com a criatividade. Falara tudo de forma natural, e desviou a atenção para seu contato com Renart. Sabia que o seu toque no braço de Renart tinha sido percebido por todos, mas de certa forma, salvara pelo menos a situação naquele momento. Tomaz, com um ar distante, sem olhar para o grupo já parecia envolvido no próprio pensamento, no seu próprio mundo subjetivo. Não saiu de seu mundo interior para começar a falar.

- Sabe que pode ser uma boa idéia. Claro, a gente não perde a perspectiva do que a gente está fazendo não, mas com a idéia dos donos das lavras a gente podia encontrar um bom caminho para usar metais nobres e pedras preciosas nos nossos produtos. Acho que a gente pode seguir por esse caminho mesmo. Olha só o que estou pensando. Como nessa época não exestia relógio direito... bom, já existia, e era um símbolo de luxo... bom, mas não é isso. Olha só, a gente podeia começar três linhas. Uma mais básica, uma intermediária e uma de altissimo luxo... Aliás, todas as três linhas de luxo, mas uma de luxo, uma de luxo chique, e uma de muito luxo mesmo. A, AA, e AAA. O que vocês acham. Dorotheia?

- Olha Tomaz, você é quem sabe. Eu pessoalmente acho que a gente deveria investir no que a gente já está investindo. Fazer algo mais de acordo com o que a gente já tem. Mas não me oponho não. Acho que podemos fazer três desenhos pelo menos, antes de produzir alguma coisa. Mas olha só, acho que tem que ser muito bem fundamentado. E já falei para vocês, eu estou sobrecarregada. Isse tem que ser um trabalho para os alunos. Então, você que sabe.

- E você Renart, o que acha?

Renart ainda estava meio perplexo. Embora muito sutil, o toque de Carol de alguma forma mexera com algo nele. Algo que a muito ele não sentia. Uma malícia velada, tão diferente dos olhos nos olhos, da objetividade confiante de si e da sua liberdade para fazer o que quizesse das mulheres com as quais vinha tendo contato. Da própria disponibilidade esporádica de Dorotheia, que já se escasseava, na medida que tanto ele quanto ela vinham encontrando novos parceiros. Era algo diferente da luz clara, das cartas sobre a mesa, do sentimento expresso abertamente, como se não existissem sentimentos escondidos e obscuros em cada um deles. O toque malicioso e ao mesmo tempo ingênuo por demonstrar um desconhecimento e um não alto-controle de si de Carol trouxera a tona toda essa escuridão, toda culpa de que ele estava fugindo todo esse tempo desde que viera para Belo Horizonte.

- Acho uma boa idéia. Algo barroco, mas ao mesmo tempo moderno. Como se os fundamentos estéticos do barroco e do Rococó mineiro, e nosso barroco não é de forma alguma como o barroco francês, ou todo o resto do barroco europeu, fossem aplicados para o nosso tempo. A inexatidão, a busca por ascensão através de varias voltas, o ambiente escuro e a culpa, a maldade do acoite dos escravos, aleijadinho com hipertricose, sem mãos esculpindo com os formões amarrados nos braços... Acho bom sim. Posso orientar eles nisso Dorotheia, pode deixar. – Dorotheia olhou com desdém para Renart, supondo que este estava se propondo a essa orientação em função da possível disponibilidade que Carol demonstrara. Ela já tinha visto isso em vários momentos, em várias faculdades. Achava um absurdo, mas fingiu não se importar, pois isso daria a Renart uma impressão de que ela estava com raiva por nutrir sentimentos em relação a ele.

- Olha Renart, por mim, se você se propõe a orientar os alunos, tudo bem então. Se vocês dois concordam, sou voto vencido. Mas quero ver o estudo e os desenhos antes de aprovar fazer um modelo verdadeiro.

- Eu concordo com a Dorotheia Renart. Pode ser assim então? Ótimo. Eu vou ter que sair agora. Vocês vão levar eles para conhecer os fornecedores?

- O Renart vai levar, eu também tenho que ir em um compromisso. Aliás, já estou atrasada. Tomaz querido, Assim que puder me liga que quero conversar com você. Tchau Renart. – Olhou para os alunos e se despediu com um educado e formal aceno com a cabeça e saiu.

- Tomaz, acho que talvez a gente pudesse marcar para outro dia a visita aos nossos fornecedores. Pelo horário acho que até a gente chegar, e nessa hora o trânsito já deve estar ruim, a gente não chega a tempo de pegar eles não. Acho melhor o pessoal começar a estudar para fazer o projeto das canetas.

- É, pode ser, vocês se importam de deixar para ir nos fornecedores depois pessoal? Não? Então tá. Isso a gente vai fazendo com o tempo também. Apesar de vocês ficarem mais no projeto das canetas, vocês vão acabar olhando a elaboração das coleções com o resto do povo também, ai vão ter que ir ver os fornecedores de um jeito ou de outro. Até melhor. Hummm, a introdução de vocês de todo jeito já começou. Como A Maine Coon já é um empresa autônoma, não está mais na incubadora da faculdade. Vocês já entregaram os papéis do estágio na faculdade, mas tem que ir lá no escritório agora também, porque é lá que vocês vão ter que trabalhar. Todos sabem onde é? Beleza então. Renart, vou andando então, depois a gente conversa. Pessoal, até mais então também.

Tomaz saiu deixando Renart com os alunos. Renart ainda estava sob o efeito do toque de Carol e reparava nela disfarçadamente quando sentia que seria seguro. Ela se transformara por inteiro num fetiche. Ele obviamente já reparara nas três, mas sempre mantivera seus sentimentos e sua apreciação à distância. Mas naquela hora toda essa distância tinha sido quebrada. Carol reparara que ele a olhava, e sua atitude displicente, como se estivesse disfarçando com um sorriso de naturalidade, também percebida por Renart só fizera aumentar o efeito do toque em seu braço. Algo nele havia despertado. O corpo ao mesmo tempo magro e voluptuoso de Carol, com seus cabelos pretos e vermelhos, seu brincos e piercings, suas roupas provocativas e ao mesmo tempo alegres, seu ar meio tristonho e carente, e principalmente a forma como ela o tempo todo ficava se tocando, tudo isso sugava Renart como o odor de uma planta carnívora atraindo um inseto. Carol estava um pouco tensa ainda, mas com a saida de Dorotheia e Tomaz ficou mais aliviada, e agora sentia uma leve apreensão, como a que antecede um primeiro beijo já esperado. Mas se fazia de desentendida.

- Bom gente, vamos nos encontrar então amanhã na Maine Coon de verdade então. Eu vou começar a separar algum material hoje e vocês vão olhando algo também. Acho que na época não tinha caneta, e o pessoal escrevia com pena, mas, de toda forma, a gente tem que olhar. Então a gente conversa lá depois. Até mais.- Renart se despediu com um toque no ombro de cada um. Não sabia o que esperava ao certo, mas esperava algum sinal de Carol confirmando que não havia sido um engano. Mas não pensou nisso na hora, simplesmente agiu nesse sentido, atitude que não tinha à muito tempo. Desde que seu casamento começara a afundar. Depois, mais tarde viria a refletir que mesmo antes disso as coisas entre ele e sua ex esposa já estavam ruins, e esse tipo de toque, esse sentimento de ser realmente tocado, que ele sentia agora, já não estava presente. Todos os cumprimentaram retribuindo o toque de maneira amigável. Carol retribuiu o toque da mesma forma que os outros mas com um olhar mais disperso. Olhos de ressaca, pensou depois Renart se lembrando de Machado de Assis.

Sanyo
Enviado por Sanyo em 11/10/2011
Código do texto: T3270868
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