FLERTANDO COM A GELADEIRA
Tenho sofrido de insônia. Estou com o sono prejudicado. Minhas noites estão, há um tempo, entrecortadas com despertares noturnos. Não tiro mais uma noite inteira de sono. Mas eu tento, tento mesmo. Mas não consigo evitar de me levantar várias e várias vezes durante a noite. Quando me levando, vou à cozinha, olho em volta, abro a geladeira; como quem procura alguma coisa em seu interior. Mas eu nunca lembro o que quero. A insônia traz como consequência um esquecimento profundo. Ou seria o contrário? Essa relação noturna com a geladeira precisa ser mais detalhada.
Frequentemente eu abro a porta da geladeira para pegar alguma coisa e acabo esquecendo o que eu queria pegar. Isso acontece geralmente a noite, quando tudo é silêncio, e no céu, as estrelas brilham envoltas em um luar convidativo. Então fico olhando para dentro da geladeira, e a geladeira olhando para mim, e nós – a geladeira e eu –, trocando olhares penetrantes, como que flertando um com o outro, enquanto o ar frio nos envolve e nos inebria. É uma sensação aconchegante, sabe? Sem trocar uma palavra, nos entendemos e nos deixamos levar pelo clima.
Ora, o clima se forma por uma junção de fatores: o raciocínio falho entre o sono cansado, a necessidade biológica de alguma coisa indefinida, a ereção noturna etc. Tudo contribui para o clímax do clima. Ela, a geladeira, tem o que eu quero. Mas o que eu quero? Eu esqueço o que eu quero. E ao esquecer o que eu queria com a geladeira, me deixo levar pelos pensamentos divagantes. Tento lembrar o que eu queria pegar na geladeira, por não conseguir, aguço os outros sentidos. Os meus olhos percorrem aquele interior branco, então eu vejo, atenciosamente, os legumes, os refrigerantes, os ovos na bandeja... Eu observo cada detalhe daquele espaço, como um adolescente púbere observa um belo corpo feminino a tomar sol na areia da praia, de biquini e muita saúde. A minha audição se torna perfeita. Ouço o vento, os gatos enamorados no telhado, o som da minha respiração e da geladeira a minha frente. Ela respira, um ar frio...
Há muitas coisas que precisam de explicação, e tratamento, e cura. E então, o que vem depois?
E então, depois de algum tempo, na completa falta do que fazer, eu apenas reflito e digo "deixa pra lá". E após toda aquela troca de olhares, eu fecho a porta da geladeira e volto a dormir. Volto a sonhar. Ah, o amor...
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@nikolaygoncalves