EXTRAVIO
Abriu a porta. O flash de um um relâmpago demarcou seu rosto. Forte aguaceiro, varrido pelo vento, inundou suas vestes. O estouro de um raio partiu os ares. Mesmo assim, não recuou. Sem bagagem, sem guarda-chuva e sem as chaves do carro, após fechar raivosamente a porta, Áspero desapareceu na escuridão da rua.
Dentro de casa, em volta de Rígida, permanecia o clima pesado da discussão que tivera com Áspero. Sem atentar para as descargas elétricas que sibilavam nos céus, ela se acomodou irascível no sofá da sala.
Para Rígida e Áspero pouco importava o vozerio dos fenômenos naturais. A discussão os levara a uma fúria que a tudo suplantava.
Confiada a si mesma, Rígida reconstituiu mentalmente boa parte do conflito. Algum tempo depois, passada a inquietação, ela despertou para os efeitos da tempestade. Foi até a janela, mas não avistou vivalma. Clarões repentinos da tormenta mostravam o agito das flores no jardim. Arbustos apreensivos riscavam a vidraça. A noite estava entregue ao aguaceiro e a rebeldia do vento.
Diante do vigoroso manifesto da natureza, Rígida estimou que a mágoa não persistiria. Por isso, na sala de entrada, sobre a cômoda, dispôs algumas toalhas para acolher Áspero, que por certo logo retornaria liquefeito, ofegante e cordato. E tudo então se resolveria na volúpia de um longo beijo.
Depois de exaustiva espera, vencida pelas exclamações da noite e pelo cansaço das horas, Rígida adormeceu. Antes do amanhecer, a tempestade cessou.
As toalhas ficaram esquecidas na sala por muito tempo.
Áspero nunca retornou.