Comentário de João 7.17
Por João Calvino
“Se alguém quiser fazer a vontade dele, conhecerá a respeito da doutrina, se ela é de Deus ou se eu falo por mim mesmo.” (João 7.17)
“Se alguém quiser fazer a vontade dele”. Jesus antecipa as objeções que poderiam ser feitas. Porque desde que ele tinha muitos adversários naquele lugar, alguns poderiam facilmente ter murmurado contra ele desta maneira: "Por que te glorias no nome de Deus? Porque nós não conhecemos que tens procedido dele. Por que, então, tu nos pressiona afirmando que não admitimos que nada nos ensina, senão somente aquilo que é pelo mandamento de Deus? "Cristo, portanto, responde que o julgamento flui do temor e da reverência a Deus; de modo que, se suas mentes estivessem bem dispostas ao temor de Deus, eles teriam facilmente percebido se o que ele pregava era verdade ou não. Ele de igual modo lhes administrou, por isso, uma repreensão indireta; porque como não conseguiam distinguir entre falsidade e verdade, porque lhes faltava o principal requisito para o bom entendimento, a saber, a piedade e o desejo sincero de obedecer a Deus.
Esta afirmação é altamente digna de observação. Satanás continuamente nos ataca, e espalha suas redes em todas as direções, para que ele possa nos tomar de surpresa por seus enganos. Aqui Cristo nos previne para tomar cuidado para não nos expormos a qualquer uma de suas imposturas, assegurando-nos que, se estamos preparados para obedecer a Deus, ele nunca deixará de nos iluminar, com a luz de seu Espírito, para que sejamos capazes de distinguir entre a verdade e a mentira. Nada mais, portanto, nos impede de julgar corretamente, mas quando somos indisciplinados e obstinados; e cada vez que Satanás nos engana, somos justamente punidos por nossa hipocrisia. De igual forma Moisés avisa que, quando surgirem falsos profetas, nós somos provados por Deus; porque aqueles cujos corações são retos nunca serão enganados (Deuteronômio 13.3). Por isso, é evidente quão perversa e estupidamente muitas pessoas nos dias de hoje, temendo o perigo de cair em erro, por este grande medo fecham a porta contra todos os desejos para aprender; como se o nosso Salvador não tivesse uma boa base para dizer, “Batam, e a porta será aberta para vocês” (Mateus 7.7).
Pelo contrário, se somos inteiramente dedicados à obediência a Deus, não vamos duvidar que Ele nos dará o espírito de discernimento, para ser nosso contínuo diretor e guia. Se outros optam por vacilar, eles vão por fim, ver quão frágeis são os pretextos para a sua ignorância. E, de fato, vemos que todos os que agora hesitam, e preferem valorizar a sua dúvida, em vez de, por leitura ou audição, da Palavra de Deus, investigar sinceramente onde a verdade de Deus está, têm a audácia de se rebelar contra Deus com base em princípios gerais. Um homem dirá que ele ora pelos mortos, porque, desconfiando de seu próprio julgamento, ele não pode se aventurar a condenar as falsas doutrinas inventadas por homens sobre o purgatório. Outro dirá que ele não possui tanta acuidade para ser capaz de distinguir entre a pura doutrina de Cristo e os artifícios espúrios dos homens, mas ainda assim ele vai ter acuidade suficiente para roubar ou cometer perjúrio. Em suma, todos aqueles que duvidam, que se cobrem com um véu de dúvida em todos os assuntos que são atualmente objeto de controvérsia, exibem um desprezo manifesto de Deus sobre assuntos que não são de todo obscuros.
Não precisamos nos surpreender, portanto, que a doutrina do Evangelho seja recebida por muito poucas pessoas nos dias de hoje, uma vez que há tão pouco temor de Deus no mundo. Além disso, estas palavras de Cristo contêm uma definição da verdadeira religião; isto é, quando estamos preparados de coração para seguir a vontade de Deus, o que ninguém pode fazer, a menos que tenha renunciado a seus próprios pontos de vista.
“Ou se eu falo por mim mesmo”. Devemos observar de que maneira Cristo deseja que uma decisão seja formada sobre qualquer doutrina que seja. ele deseja que o que é de Deus deve ser recebido sem controvérsia, mas nos permite rejeitar livremente tudo o que é do homem; porque essa é a única distinção que ele estabelece, pela qual devemos distinguir entre doutrinas.
Traduzido e adaptado por Silvio Dutra.
(Nota do tradutor: Ao dizer que todo aquele que quisesse fazer a vontade do Pai poderia conhecer que Jesus não falou por si mesmo, pois conheceria a mesma doutrina que ele ensinava da parte do Pai, isto se aplica de modo muito claro ao fato de que a doutrina de Deus é conhecida pela aplicação do Espírito Santo nos crentes, do mesmo modo como o Espírito também atuava no Senhor Jesus Cristo. Não se trata portanto de mero conhecimento intelectual do seu ensino, mas sobretudo de verificar a sua realidade em nossa própria vida.)