Comentário de 1 Timóteo 1.4
Por João Calvino
“nem se ocupem com fábulas e genealogias sem fim, que, antes, promovem discussões do que o serviço de Deus, na fé." (1 Timóteo 1.4)
“Nem se ocupem com fábulas”. Em minha opinião, o apóstolo quer dizer, por fábulas, não tanto as falsidades artificiais, senão aquelas coisas sem importância ou tolas que não têm em si nada de sólido; porque é possível que algo que não seja falso possa ainda ser fabuloso. É nesse sentido que Suetônio falou de “história fabulosa”, e Livy usa o verbo fabular, “inventar fábulas”, como denotando falta de uso ou palavrório tolo. E, não há dúvida de que a palavra muthos (que Paulo usa aqui), é equivalente à palavra phluaria, isto é, “bagatelas”. Ainda mais, por se referir a uma classe para servir de exemplo, e quando ele menciona um tipo de fábula como exemplo do que tem em mente, toda dúvida se esvai. Ele inclui entre fábulas as controvérsias sobre genealogias, não porque tudo o que se pode dizer sobre elas seja fictício, mas porque isto é sem utilidade e perda de tempo.
Esta passagem, portanto, pode ser assim explicada: “Que eles não se deem a fábulas daquele caráter e descrição ao qual as genealogias pertencem” E realmente é isso precisamente o que Suetônio quis dizer por história fabulosa, a qual, mesmo entre os homens das letras, tem sido com justa razão criticada pelas pessoas de bom senso; porque era impossível não considerar como ridícula essa curiosidade que, negligenciando o conhecimento útil, gastou toda a vida examinando a genealogia de Aquiles e Ajax, e despendeu suas energias em reconhecer os filhos de Príamo. Se tal coisa é intolerável no aprendizado em salas de aulas, onde há espaço para agradável passatempo, quanto mais intolerável será a mesma para o nosso conhecimento de Deus. Ele fala de genealogias intermináveis, porque a fútil curiosidade não tem limites, mas continuamente passa de um labirinto a outro.
“Que mais produzem questionamentos”. Ele julga a doutrina por seu fruto; porque cada coisa que não edifica deve ser rejeitada, ainda que não tenha nenhum outro defeito; e tudo o que só serve para suscitar controvérsia deve ser duplamente condenado. Tais são as questões sutis nas quais os homens ambiciosos praticam suas habilidades. É mister que nos lembremos de que todas as doutrinas devem ser comprovadas mediante esta regra: aquelas que contribuem para a edificação devem ser aprovadas, mas aquelas que ocasionam motivos para controvérsias infrutíferas devem ser rejeitadas como indignas da Igreja de Deus.
Se este teste tivesse sido aplicado durante muitos séculos, então, ainda que a religião viesse a se corromper por muitos erros, ao menos a arte diabólica das controvérsias ferinas, a qual recebeu a aprovação da teologia escolástica, não haveria prevalecido em grau tão elevado. Pois tal teologia outra coisa não é senão contendas e vãs especulações sem qualquer conteúdo de real valor. Por mais versado que um homem seja nela; mais miserável o devemos considerar. Estou cônscio dos argumentos plausíveis com que isto é defendido, mas jamais descobrirão que Paulo haja falado em vão ao condenar aqui tudo quanto é da mesma natureza.
“Promovem discussões do que o serviço de Deus”. Sutilezas desse gênero edificam os homens na soberba e na vaidade, mas não em Deus. Paulo chama isto “a edificação de Deus”, ou porque Deus o aprova, ou porque isto é concorde com a natureza de Deus.
“Que consiste na fé”. Em seguida Paulo mostra que esta edificação consiste em fé; a por este termo ele não exclui o amor ao nosso próximo, ou o temor a Deus, ou o arrependimento, porque o que são todos estes senão frutos da “fé” que sempre produz o temor de Deus? Sabendo tudo aquilo em que a adoração a Deus é fundada somente na fé, ele reconhece portanto isto como sendo suficiente para mencionar “fé” da qual tudo o mais depende.
Traduzido e adaptado por Silvio Dutra.