Guarde o que Deus te Deu
Por João Calvino
“Mantém o padrão das sãs palavras que de mim ouviste com fé e com o amor que está em Cristo Jesus. Guarda o bom depósito, mediante o Espírito Santo que habita em nós. Estás ciente de que todos os da Ásia me abandonaram; dentre eles cito Fígelo e Hermógenes.” (2 Tim 1.13-15)
“Guarda o bom depósito que te foi confiado.” (1Tim 6.20). Esta exortação tem um escopo mais amplo do que a última, pois o apóstolo diz a Timóteo que refletisse bem no que Deus lhe havia outorgado, e que empregasse nele o cuidado e diligência que seu excelente valor merece. Quando uma coisa é de pouco valor, geralmente não exigimos que se preste dela uma conta tão estrita como exigimos quando uma coisa é de um valor por demais elevado. Considero a expressão, "que te foi confiado", no sentido tanto da dignidade de seu ministério quanto de todos os demais dons concedidos a Timóteo. Alguns restringem seu significado apenas ao seu ministério, mas creio que ele se refere principalmente às suas qualificações para esse ministério, ou seja, todos os dons do Espírito mediante os quais ele se sobressaía. O apóstolo usa o termo “confiou” também por outra razão - para recordar a Timóteo que um dia teria que prestar conta de seu ministério, pois temos que ministrar fielmente tudo quanto Deus nos confiou.
Esse bom depósito, [tokalon], significa algo de alto ou de extraordinário valor. Erasmo o traduziu bem como "o excelente depósito"; e tenho seguido sua versão. Mas, como o mesmo deve ser guardado? Devemos nos precaver para que, por nossa indolência, não se perca nem nos seja tirado o que Deus nos confiou, em razão de nossa ingratidão ou de nosso mau uso. Há muitos que rejeitam a graça divina, e muitos outros que, depois de recebê-la, se privam dela. Visto, porém, que o poder de guardá-la não se encontra em nós, o apóstolo acrescenta: pelo Espírito Santo, como se quisesse dizer: "Não te peço mais do que podes dar, porque o Espírito Santo suprirá a lacuna que porventura em ti exista." Daqui se depreende que não devemos julgar a capacidade humana pelos mandamentos divinos, pois assim como ele ordena através de formas verbais, também escreve suas palavras em nossos corações; e, ao injetar-nos vigor, ele cuida para que sua ordem não caia no esquecimento. Quanto à frase, pelo Espírito Santo que habita em nós, significa que ele está presente para prestar aos crentes constante socorro, contanto que não rejeitem o que lhes é oferecido.
“Estás ciente de que”. E possível que as apostasias mencionadas pelo apóstolo tenham desestruturado muitas mentes e dado origem a infindáveis suspeitas, posto que, geralmente, vemos tudo com o pior pessimismo possível. Paulo enfrenta escândalos desse gênero com heróica coragem, visando a que todas as pessoas piedosas aprendessem a abominar a traição dos que abandonaram o servo de Cristo, numa ocasião em que ele sozinho, pondo em risco sua vida, sustentava a causa comum; e para que não titubeassem ao saber que Paulo não ficara destituído da assistência divina. Ele exibe o nome de dois dos desertores - provavelmente os mais conhecidos - a fim de pôr um ponto final a esses ataques caluniosos. Pois geralmente sucede que os desertores da batalha cristã buscam justificativas para sua própria conduta infeliz, inventando todo tipo de acusações que possam assacar contra os fiéis e honestos ministros do evangelho.
Figelo e Hermógenes, sabendo que sua covardia era com razão considerada pelos crentes uma infâmia, e que ainda eram condenados como culpados de vil traição, não hesitaram em descarregar contra Paulo suas falsas acusações e cinicamente macular sua inocência. E assim Paulo, a fim de desmascarar sua falsidade, os seleciona para a menção que merecem.
Também em nossos dias há muitos que, ou porque não foram admitidos ao ministério aqui em Genebra, ou porque foram destituídos de seu ofício em virtude de sua perversidade, ou porque não nos comprometemos a sustentá-los em sua ociosidade, ou por terem praticado roubo ou fornicação, se veem forçados a fugir, percorrendo imediatamente a França e vagando ao leu na tentativa de estabelecer sua própria inocência, dirigindo contra todos nós o máximo de acusações que podem. E alguns irmãos são bastante insensatos para acusar-nos de crueldade, assim que algum de nós pinta tais homens em suas verdadeiras cores. Seria preferível que todos esses homens tivessem suas frontes marcadas para que pudessem ser reconhecidos à primeira vista.
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